(Cheguei aos 500. Ora, direis, e daí?)
"A maturidade do homem consiste em haver reencontrado a seriedade que tinha na brincadeira quando era criança"
Nietzsche
Olá!
Números redondos causam uma estranha fascinação em nós,
caniços pensantes. Aniversários de dez, vinte, trinta anos são dias iguais aos
de 11, 21 ou 31 anos, mas damos uma atenção especial aos arredondamentos do
sistema decimal. Talvez seja alguma forma atávica de criar marcos em uma vida
que não sabemos ser longa, talvez seja uma necessidade de dar significado para
coisas onde eles não têm, talvez seja a facilidade de rememoração, só isso. E o
mesmo vai se aplicar não somente a datas, mas a qualquer outra coisa passível
de mensuração numérica, como textos. E eu chego agora ao número 500, o que é um
número razoável. Como combinei com vocês, vou aproveitar esses momentos para
contar um pouco da história da minha escrita, para que vocês entendam um pouco
mais dos meus processos de composição, se, por al, isso lhes vier a interessar.
Esse pequeno trechinho me foi inspirado pelo poeta Olavo
Bilac, o maior representante do Parnasianismo no Brasil, a vertente lírica do
Realismo. Extremamente preocupada com a forma e o resgate da antiguidade
clássica*, a corrente deixou de lado o excesso de sentimentalismo do
Romantismo, mesmo quando trata de temas afins. Afinal de contas, como sua
intenção é o aspecto estético da literatura, uma espécie de arte pela arte,
seus conteúdos possuem somenos importância quando confrontados com a forma,
razão pela qual não são encontrados grandes tratados filosóficos dentre suas
obras. Sua forma canônica é o soneto, uma estrutura composta por dois quartetos
e dois tercetos**, utilizada na Itália da Idade Média pelos trovadores em suas
pequenas canções (daí o nome soneto, do italiano sonetto, pequeno som).
Além disso, possuem uma métrica fixa que busca trazer musicalidade mesmo quando
simplesmente recitada. Qualquer soneto bem feito tem rimas extremamente bem
colocadas e tamanhos exatos, precisos, como se aplicassem a matemática tão cara
ao cientificismo que marcou a época.
Especificamente no meu caso, o poema de onde retiro a
introdução é o Soneto XIII, que, por ser curtinho, reproduzo abaixo:
SONETO XIII
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
‘Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”
Note que há até mesmo uma certa estranheza na maneira com a
qual as palavras são distribuídas nos versos, porque é a forma o que importa, e
não as posições. Embora eu não seja exatamente um admirador do estilo, o fato é
que sempre que estudamos literatura é precisamente este soneto que nos é
apresentado como exemplo do Parnasianismo brasileiro, o que é muito robustecido
pela necessidade de reforços para os vestibulares. Desta forma, quem está nessa
fase costuma ter esses versos decorados como se fosse o hit da semana na parada
de sucessos (ainda existe esse termo?). Passado seu tempo, é esquecido
igualmente, como se esquece de uma novela das seis qualquer.
Não foi o meu caso. Modéstia à parte, sou um bom e eclético
leitor, pouco me importando a idade do texto. Muito pelo contrário, até gosto
de observar maneiras diferentes de expressar um português bem escrito, e isso é
visível nos clássicos. Essa é uma das razões pelas quais os vestibulares exigem
essas leituras: para além da pseudochatice, aprende-se a língua materna lendo
Machado de Assis, Gonçalves Dias, José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Olavo
Bilac.
A poesia em si não tem nada demais, conforme expliquei logo
antes. É uma proclamação do amor como instrumento para aumentar a percepção e a
metafísica por trás da aparência material das coisas. As estrelas, misteriosas
e distantes, são objeto de visões mais líricas da existência, e a perspectiva
mais científica dos realistas de então fazia com que essa espécie de magia
estivesse se perdendo. Sendo assim, o ponto de contato deste soneto com o
universo no qual eu o aplico vai um pouco mais para o substrato.
Percebam que Bilac dialoga com um sujeito indeterminado, uma
espécie de voz geral que se opunha e, de certa forma, ironizava seus costumes e
sua abstração, dada a maneira com a qual o considera louco. É um interlocutor
inespecífico, uma síntese da voz cientificista de então. Provavelmente não se
trata de um sujeito real, que lhe foi perturbar o lirismo, mas de uma instância
dialética imaginária, criada para se opor filosoficamente às suas linhas de
pensamento. Tendo esse tipo de tese desafiante em vista, transpus a dita cuja
para uma boa parte de meus textos, especialmente quando eu mesmo faço esse
zigue-zague de oposições ao meu próprio pensamento.
Acho que é uma boa maneira de pensar. Não só porque é um
exercício acerca das dúvidas que os outros podem ter sobre nossas colocações, o
que não deixa de ser algo empático, mas também porque levantamos as dúvidas que
temos dentro de nós mesmos, o que é essencial em Filosofia. Além disso, é um
recurso estético de primeira e não deixa de ser uma bela remissão para a
literatura de primeiro nível de Terra Brasilis. Espero sinceramente que a
curiosidade atiçada por um fato tão prosaico sirva de estímulo para vocês,
jovens leitores, rever os livros que te foram empurrados goela abaixo com um
olhar mais livre, mais proveitoso.
Novamente eu coloco a questão aqui. É comum pensarmos que os
membros da Academia Brasileira de Letras são nomeados por pura bajulação. Não
vou dizer que isso nunca existiu, mas meia dúzia de indicações mais políticas
que linguísticas não tiram sua principal função: a de serem guardiães da
língua. Não fosse assim, os acordos ortográficos não passariam por seus crivos.
Isso significa que depositamos neles a autoridade pelo que é certo ou errado em
norma culta, assim como depositamos nas universidades a responsabilidade pelo
bom conhecimento.
Ora (direis), justo você, que enche este espaço de gírias,
estrangeirismos e neologismos, que defende a
liberdade dos recursos linguísticos para trazer a melhor expressão possível
de uma ideia vem proclamar a primazia de um certo diante de um errado? Então
dizes que há uma hierarquia entre as línguas? Você tem quase razão,
interlocutor imaginário, não fosse um detalhe - a comunicação precisa ser
balizada quando buscamos sentidos precisos. Numa especificação funcional
precisamos de acurácia e sentidos unívocos, sob pena de causarmos ambiguidades,
compreende?
Isso significa que não estou hierarquizando, mas colocando
cada coisa em seu devido lugar. Não se escreve artigos científicos com poesia,
mas com linguagem precisa, a menos contraditória possível, enquanto não se é
lírico com números e tabelas, mas com versos. É sobre isso que eu digo.
Fiz a contagem das vezes que utilizei o “ora direis” e
cheguei a um número de 55, o que representa 11% do total de 500. Nada mal. Dá para
dizer que é um recurso que uso frequentemente, de fato, e que acabo explicando
para vocês. Afinal de contas, esse interlocutor imaginário também é um papel
que pode ser assumido pelos meus leitores, e é a prova de que sua voz faz parte
do momento em que estou escrevendo, razão pela qual reservo meus agradecimentos
a todos os que passam por aqui.
Para finalizar, e de maneira completamente aleatória, retomo
uma moda que espocou há alguns anos nesses facebooks da vida, aproveitando
ainda a paráfrase dos 500, para relacionar 50 fatos sobre mim, que vão logo
após a recomendação de leitura.
Até daqui a alguns anos, quando eu chegar no texto 600… Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Obviamente é um livro de Bilac, uma coletânea de suas
poesias. Saboreiem o português como a língua bela que é, dispam-se de
preconceitos e ganhem mais um campo para exercer seus prazeres.
BILAC, Olavo. Antologia. Via Láctea. São Paulo:
Martin Claret, 2002
*O próprio nome do movimento é uma referência ao Monte
Parnaso, um dos três mais importantes da mitologia, lar das musas e, por
extensão, da poesia.
**Quartetos são estrofes de quatro versos, enquanto tercetos
são estrofes de três versos.
Esta é uma pequena lista de fatos os mais aleatórios
possíveis sobre mim e minha vida, apenas para cumprir uma moda tardia e provar
que não tenho pensamentos filosóficos a todo momento. Uma coisa meio
blogueirinha do começo da década passada, que provavelmente ninguém esperaria
que eu colocasse por aqui. Foi uma sugestão de uns dez anos atrás, não lembro
de qual das minhas afilhadas, que não foi levada a sério na época, mas que
ficou adormecida e está saindo agora. É aquela velha história: no banheiro, há
dias de pensar em Nietzsche e há dias de pensar em merda mesmo. Como homenagem a esses meus antigos leitores, que foram os primeiros impulsionadores deste espaço, uma juventude do ensino médio, e que adora essas coisas, finalmente solto a lista. Um beijo para vocês todos. Vamos lá!
- Eu adoro ficar descalço. Provavelmente deve estar ligado à infância, mas o fato é que meias e sapatos me incomodam permanentemente;
- Sou um cara noturno. Isso não quer dizer necessariamente que eu durma tarde todos os dias, mas sim que eu funciono melhor à noite;
- Tive três filhos, mas o mais velho de todos morreu ainda nenê. É um clichê, mas um clichê de verdade: não há dor maior do que enterrar um filho;
- Falando em dor, costumo ser acometido anualmente por belas cólicas de rim. Minhas pedras costumam ser pequenas demais para serem implodidas, mas doem do mesmo jeito;
- Tenho pouquíssimas restrições alimentares, geralmente mais ligadas a nojo do que a sabores. Não há doce que eu não goste, o que é péssimo para um diabético;
- Sou destro, tanto de mão quanto de pé;
- Quando eu era muito criança, furei meu tímpano com um palito de fósforo. Desde então, ganhei uma diferença em acuidade auditiva digna de nota;
- Embora pareça que eu seja extrovertido, dada à quantidade de textos que escrevo, a verdade é que sou tímido, e luto diariamente contra essa característica;
- Dizem que é uma forma extravagante de vaidade, mas o fato é que sou extremamente largado. Ando na rua como se estivesse andando em casa, exceção feita aos dias de trabalho, por força das chefias que me mandam andar elegante;
- Sou descendente de italianos e espanhóis, mas um daqueles testes de ancestralidade acusou uma ascendência armênia que me era completamente desconhecida. Bari aravot!
- O primeiro livro estritamente de Filosofia que eu li foi “O Mundo como Vontade e Representação”, de Schopenhauer. Comecei batendo forte!
- Não sou fã do uso indiscriminado de anglicismos, mas sou um coffee lover desde criancinha, e passei esse dom para os filhos;
- Eu alterno quase que de maneira bipolar meus períodos de paciência e ansiedade. Não tive até hoje capacidade de conseguir interpretar esses momentos. O negócio é procurar um psicólogo;
- Qualquer assunto relacionado a gestão, governança, curadoria me provoca sono imediato e irresistível. Não é metafórico, mas patológico;
- Comecei a fumar com doze anos, mesma idade que me pus a fazer a barba. Não sei dizer quando parei, mas faz tempo;
- Não sou muito para frente em termos de cinema, sendo um autêntico peixe fora d’água quando os colegas comentam sobre os últimos lançamentos. Mas gosto muito de teatro;
- Nunca fiz cirurgias. Que permaneça assim;
- Tenho cinco tatuagens, todas relacionadas a música: uma bateria tribal, um baixo minimalista e três trechos de partituras, uma de Stairway to Heaven e duas de músicas minhas;
- Eu morei na beira de uma avenida onde se praticavam “rachas”. Uma vez livrei a cara de um desconhecido do baculejo dado pelos hômi, dizendo que era meu irmão. Foi pura compaixão inexplicável;
- Embora eu fale de Filosofia, meu trabalho remunerado é na área de Informática, como já falei bastante por aqui. Mas por doze anos militei na área da Contabilidade. Muito louco esse mundo;
- Tenho pouquíssimas fotos da minha infância, e menos ainda da minha juventude. Fotografia era um negócio caro, que envolvia não somente uma máquina na mão, mas também filmes, revelações, pilhas e, em alguns casos, flashes descartáveis. Não dava para abusar;
- Contei para vocês em várias partes deste espaço que eu tive várias bandas na juventude, algumas delas como baixista, outras como baterista, sempre como vocalista. O que eu não lhes disse é que eu tenho mais de cento e cinquenta músicas prontinhas. Mais da metade delas me dá vergonha hoje em dia;
- Passo a maior parte do meu tempo em Taubaté, mas, como meu domicílio eleitoral permanece em São Paulo, tecnicamente ainda moro lá;
- Minha preferência musical é por rock progressivo, mas sou absolutamente eclético no quesito música;
- É completamente irrelevante para mim, mas ok: sou geminiano. E meu signo chinês é o cachorro;
- Tenho quatro modelos de sonhos recorrentes: o mar invadindo a terra e eu me pondo a salvo; eu montando minhas parafernálias para tocar e algo impedindo; eu tentando voltar para casa à noite com todas as luzes do bairro apagadas, e a mais estranha, com uma empresa que trabalhei por pouco tempo, há tempos. Esse é o mais inexplicável deles, porque é o que mais recorre, e não tive nada de especial lá;
- Como quase todo mundo, não gosto de trabalhos domésticos. Entretanto, até curto cuidar da louça, meu momento de podcasts e vídeos;
- Entre mim e minha patroa, temos uma diferença que é o maior reforçador de estereótipos possível: enquanto eu me arrumo em cinco minutos, esse tempo não dá nem para ela escolher a cor do batom;
- Falando nisso, ela tem um apelido interno de Fô, apócope para flor, flor de maracujá. Quem vê aquela fruta toda amarrotada não imagina o quanto a flor é bonita;
- Embora eu considere que cante bem, não gosto da minha voz falada, o que é um fator para não gravar vídeos;
- Mas o fator principal é mesmo a falta de tempo para contentar meu perfeccionismo;
- Não sei por que, mas quando eu era criança eu detestava ficar no meio do que fosse: andando na rua, no banco do carro, no sofá;
- Não tenho uma expressão que seja muito característica minha, a não ser os paulistanismos típicos: mano, tá ligado, orra véi, essas coisas;
- Gibis: tive uma fase Marvel, onde li a história que mais me chocou: a morte da Fênix. Lembro até hoje de estar com os fones de ouvido escutando Listen to the Music, do Doobie Brothers, quando cheguei no desfecho. Falei mentalmente “pára tudo” e fui imediatamente pegar toda a série, desde o início, para chegar na conclusão calmamente. Foi uma espécie de apoteose para meu costume de quadrinhos;
- Isso tudo porque depois que casei eu abandonei o hábito, o que se deu a trinta e cinco anos nesta data;
- Nunca me dei bem com óculos escuros. Já me disseram que eu mudo de opinião se fizer um com os graus indicados para meus problemas oculares, mas estou com outras prioridades;
- Ouço as pessoas dizerem que gostam do frio ou do valor. Eu coloco as coisas nestes termos: funciono bem na faixa que vai dos 20 aos 30 graus;
- O primeiro disco que comprei por livre escolha foi Peter Frampton Special, e o tenho até hoje. Já com meu próprio dinheiro, foi Saints and Sinners, do Whitesnake;
- Que eu lembre: primeiro filme no cinema: Star Wars; primeiro circo: Vostok; primeira peça: uma chamada Bolívar. Primeiro jogo ao vivo: um do Desafio ao Galo, torneio de várzea famoso na década de 70; no profissional, Juventus x Guarani na rua Javari, ambos com meu avô;
- Aprendi violão praticamente sozinho, muito por conta dos colegas de escola que via fazendo sucesso com a galera;
- Doce ou salgado? Ambos;
- Não sou um bebedor contumaz. Na verdade, porre de verdade só tive um na vida, em uma daquelas festinhas dançantes dadas nos quintais das periferias, precursoras dos pancadões. Passei tão mal que foi suficiente. Era década de 80, e dada minha já citada falta de talento com a dança, fiquei cuidando do som. Deram a mim três garrafas de batida e sequei todas. Não preciso falar mais nada;
- Não sou daqueles malucos aficionados por carros. Talvez o fato de que meu primeiro carro tenha sido um Fiat 147 contribua para isso. Não dá para gostar de carros e ter um 147 na mesma relação;
- Minhas duas avós eram Marias: Mariquinha e Mariuccia. Acho que 90% das avós são Marias;
- Depois de velho, fiquei com a síndrome do jaleco branco. Ou será que eu estou com a pressão ruim mesmo?
- Nem nas tetas da minha mãe eu mamei: detesto leite;
- Quando eu era bem criança, um estabilizador caiu na minha cabeça. Isso explica muita coisa;
- Nunca viajei para o exterior;
- Nunca tive um apelido que tenha pegado. Deve ser porque nunca liguei para isso;
- Minha maior virtude é a paciência; pior defeito, a inconveniência.
Tá bom assim, né? Fui!
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