(Por que a Ciência traz resultados discrepantes entre si? O que faz com que uma atividade possa ser considerada científica?)
Olá!
"Vamos iniciar. Entre na cabine, feche a porta e
coloque os fones. Você ouvirá alguns ruídos de frequência que variarão de
intensidade e tom. Avise apenas se ficar insuportável".
"Agora, você ouvirá diversos sinais de intensidade
diferente, primeiro no ouvido direito, depois no esquerdo. A cada vez que ouvir
um destes sinais, aperte o botão do aparelho, mesmo que seja bem
baixinho".
"Vamos agora fazer algo semelhante, só que com palavras.
Eu direi uma palavra e o senhor a repetirá, a não ser que não a entenda. Não
arrisque acertar; se não compreender, simplesmente não responda. Criança…
tijolo… papel… (inaudível)... laranja… quadro… (inaudível)... ovelha… Somente
monossilábicas agora: cão… giz… luz… mãe… sol… flor… lei. Tudo bem, pode sair
da cabine e sentar na poltrona. Vou colar eletrodos em seu rosto”.
"Observe esta barra. O senhor acompanhará as luzes
vermelhas que acenderão diversas vezes, às vezes à direita, às vezes à esquerda.
Faça isso apenas com os olhos, sem mover a cabeça. Depois, faremos o mesmo para
cima e para baixo".
"Neste momento, perceba que há um ponto vermelho na
parede. Vou reclinar a poltrona e rotacionar sua cabeça para a direita. Em
seguida, vamos voltar para a posição original e o senhor fixará seu olhar
naquele ponto, evitando piscar por trinta segundos. Em seguida, faremos a mesma
manobra para a esquerda".
"Vou agora fazer estímulos calóricos nos seus
labirintos. Primeiro, faremos soprar ar frio em ambos os ouvidos. Depois
faremos o mesmo com ar quente. Relate qualquer incômodo que sentir".
"Está concluído. Seu laudo estará disponível em trinta
minutos. Passar bem".
Impedanciometria, audiometria tonal e vocal, nistagmo optocinético
e pendular e o palavrão vectoeletronistagmografia, mais facilmente chamado de VENG.
Essa é a batelada de exames que me passaram para tentar diagnosticar
labirintite, que ameaçou me alcançar no episódio que relatei para vocês neste
texto.
Peguei esse pacote todo e fui numa especialista em
vertigens, que vaticinou: "você tem uma perda auditiva moderada no ouvido
esquerdo. E com relação à labirintite, o resultado é inconclusivo. Passar bem".
Apesar da surdez ser o ápice de um processo degenerativo
irreversível, é com uma ponta de altivez que recebo o diagnóstico. É como se
fosse uma cicatriz de guerra, que mostramos aos nossos netos como prova de
nossa coragem. Mas a minha batalha não envolvia fuzis e bazucas, mas guitarras
e baterias. Eu já contei minha história musical, então não vou repisar tudo de
novo, bastando que os prezados leitores leiam os seguintes textos (se
quiserem): um,
dois,
três
e quatro.
A banda na qual eu passei mais tempo e produzi mais e melhor foi o Exílio,
típico comboio de duas guitarras, baixo e bateria, com os vocais sendo
exercidos em revezamento. Embora as ideias pululassem na cabeça e nas mãos, não
tínhamos orçamento que prestasse, mas, como nem tudo é desgraça, o guitarrista-base
era eletrônico, então conseguíamos fazer renascer velhos equipamentos que os
fregueses deixavam de lado. Com isso, tínhamos instrumentos abaixo da crítica,
mas os amplificadores e caixas não iam mal.
Formamos uma parede sonora bastante respeitável no auge. Um
amplificador a transistor de 500 watts de potência real alimentava um woofer e
duas cornetas próprios, que eram bons para baixo e vozes, e mais uma caixa
acústica daquelas com base de concreto, pesadíssima, um inferno para carregar. Ela
era alimentada por um amplificador valvulado, daqueles que só dão aquele
delicioso fuzz típico dos hardões que tanto amávamos quando seu volume
está devidamente arregaçado. O resultado é que qualquer passagenzinha de som
fazia as paredes tremerem, para nosso gáudio e desespero da vizinhança. Se um
artefato de tijolo e cimento é abalado, o que não se fará com as frágeis
membranas de um tímpano perfurado já na infância.
Ah, sim, preciso contar essa também. Eu-menino, assim como
qualquer guri da minha idade, imitávamos nossos pais no que eles tinham de
pior. O meu velho gostava de limpar os ouvidos com o mesmo palito de fósforo
com o qual acendia seus cigarros, para impaciência da minha mãe. Um dia resolvi
fazer o mesmo, do alto dos meus quatro anos. Sabedor da censura certa, fui
limpar meus ouvidos escondido atrás do tanque, só que com um palito de dentes.
O resultado foi a perfuração, a correria para o médico e a posterior sova, tão
expressiva de uma época.
Portanto, no final das contas, passa pela cabeça da gente
aquele orgulho besta de quem tem uma história por trás da moléstia, uma
história gloriosa, invejável até, que nos tira do lugar comum e nos dá uma
distinção, e não um mero arrependimento de não ter feito exercícios
regularmente.
Só que para além da proto-surdez havia a tal labirintite. Não
fiquei feliz de não saber a causa exata das minhas tonteiras. Toda a narrativa
que abre este texto demorou uns 40 minutos, e embora nem de longe tenha sido o
pior exame que eu já fiz, não dá para dizer que virou um programa a ser
repetido por prazer. E o que é pior: falta de diagnóstico representa tratamento
claudicante, meio que na base da tentativa e erro. Por enquanto, só tenho a
recomendação de evitar daqueles fones intra-auriculares e maneirar com volumes
altos. Também devo ficar atento com alterações perceptivas com certas comidas e
bebidas, e ça tout. Passe bem e volte se piorar.
Mas aqui cabe lembrar que a medicina está no campo da
Ciência, e, por conta disso, os médicos, cientistas que são, não têm certezas.
Quem tem certezas são curandeiros, pajés e outros ofertadores de curas
milagrosas que multiplicam os dólares em programas de tevê. Com o resultado que
tão bem conhecemos.
Mas se a Ciência se diz tão rigorosa com provas e
experimentos, por que suas conclusões são tão imprecisas, por que seus
resultados são tão variáveis, por que o que vale hoje não vale mais amanhã? Já
notaram quantas vezes o ovo fazia mal, para depois fazer bem?
Para responder bem a esta pergunta, vou precisar retomar um
antigo texto deste espaço (esse
aqui) e formulá-lo melhor, com mais detalhes. Ele foi bom, mas todas as
vezes que eu o releio, sinto falta de informações que o situam mais
precisamente no tempo e na atual maneira de fazer Ciência. Chegou a hora, vamos
nessa. Mas calma, não vou reescrever o projeto da roda.
O grande problema é que ambas as concepções carregavam
consigo dificuldades inerentes. O Racionalismo faz com que a Ciência nunca se
descole da Metafísica, porque, embora a expressão matemática e a formulação
lógica sejam úteis e necessárias, não se pode chegar a resultado algum sem que
se olhe para o próprio cosmos. Já o Empirismo sofre de uma doença já detectada
pelo próprio David Hume, um dos seus defensores: o problema
da indução. Para que esta funcionasse a contento, precisaríamos de um
universo estático e com visão da totalidade das coisas; do contrário, sempre
poderemos ter um caso particular que divirja da generalização obtida. Uma
indução é sempre incompleta.
O que há de comum em ambas as concepções? De uma forma ou de
outra, ambas tentam retratar a realidade. Seja pela via da racionalização, seja
pela via da observação, ambas buscam representações do cosmos que nos cerca, e
entendem que seu objetivo é obtê-lo de maneira precisa.
Entretanto, desde Kant tornou-se consensual que a
racionalidade existe, participa do processo cognitivo, mas que não é nada sem
os conteúdos empíricos. Dessa forma, toda a Ciência que se praticou daí por
diante deu grande ênfase ao processo indutivo, aquele que é extraído da
experiência direta. Por esse motivo, a premissa básica da metodologia
científica que imperou desde o Positivismo foi a verificabilidade. Proposta
científica, portanto, é aquela que pode ser provada.
Isso andou nesses passos até o início do século XX. Eram
épocas onde a Filosofia da Ciência era fortemente influenciada por três sendas:
o Neopositivismo do Círculo de Viena (Wiener Kreis), a Filosofia Analítica
e, um pouco mais tarde, a marxista Escola de Frankfurt. Karl Popper, pai do
atual método científico, era contrário às três, embora seja vinculado pelos
historiadores da Filosofia à primeira por questões de naturalidade. Dos frankfurtianos,
dizia defenderem teorias sem cientificidade. Aos analíticos, reservava a
crítica de que não somente as palavras são capazes de sustentar a Filosofia e,
principalmente dos Neopositivistas de Viena, entendia que o critério de
verificabilidade era insuficiente para tornar a metodologia científica de então
algo que verdadeiramente traduzisse as reais possibilidades de conhecimento.
Estes filósofos eram assim chamados porque retomavam o
princípio geral do Positivismo,
que dizia ser apenas o conhecimento científico aquele verdadeiramente válido.
Isso colocava qualquer outra forma de conhecimento, inclusive filosofias
ligadas à Metafísica, no plano do pensamento inútil. Estabeleceram um critério
para diferenciar as Ciências dos demais campos do conhecimento: Ciência era o
conhecimento verificável. Tudo o mais eram conjecturas sem valor de verdade.
Com relação aos princípios científicos em voga, já havia uma
série de críticas ao mecanismo indutivo tão caro ao círculo de Viena. Popper
relembra do exercício mental do peru indutivista de Bertrand Russell,
que usa do sarcasmo para demonstrar a deficiência do método. Ele é mais ou
menos assim: imaginem que um jovem peru tenha chegado no começo do ano a uma
granja. Ao receber seu alimento, percebe que ele foi dado às nove horas da
manhã. Todos os dias a mesma experiência se repetia - nove horas, ração
colocada. O acúmulo de repetições por dias e meses fez com que o peru
indutivista conseguisse estabelecer uma regra, e que poderia esperar sua quota
de alimentação todos os dias no mesmo horário. Pena que ele percebeu isso no
dia 24 de dezembro, véspera de quando ele deixaria de ser alimentado para virar
alimento.
A ironia de Russell não é gratuita, porque de fato estamos
diante de uma base frágil demais se a pretensão é calcar a verdade, como
queriam os positivistas lógicos. Basta uma única ocorrência discrepante para
que toda uma teoria seja derrubada. Acompanhando esse raciocínio, Popper ensina
que a indução simplesmente não existe, ao menos como geradora de certezas. Ele
dá dois exemplos que se tornaram clássicos: sempre se poderá dizer que todos os
cisnes são brancos, até se encontrar um que seja negro, e também que todas as
moléculas de água serão compostas por dois átomos de hidrogênio e um de
oxigênio, o que não pode ser uma certeza fechada até que se consiga verificar
TODAS as moléculas de água do universo.
Outra crítica dizia respeito à suposta neutralidade
do pesquisador. Segundo os vienenses, o cientista deveria se despir de todo
juízo prévio antes de realizar suas observações, como na tabula rasa de
John Locke. Popper chama essa atitude de observativismo, e dizia que a
neutralidade almejada era um mito. A mente de qualquer pessoa não é um papel em
branco, mas um quadro-negro, repleto de sinais deixados pelos usos anteriores. Percebem
como ficam as lousas apagadas das aulas anteriores? Mesmo sem os riscos de giz,
há tantos traços e resíduos que podem mesmo atrapalhar a compreensão da próxima
lição que será escrita. Essa metáfora indica que estamos plenos de traços
culturais, concepções já absorvidas, informações adquiridas desde o nascimento
e, obviamente, preconceitos, em qualquer sentido que se pense. Não há como
impedir que toda esse patrimônio preexistente se imbrique com o novo conhecimento
pretendido.
Como há toda essa carga cognitiva e cultural já embutida não
somente no pesquisador, mas em qualquer ser humano, toda observação nasce não
como uma mera atividade, mas como um problema, no seu contexto negativo mesmo:
uma perturbação a uma ordem preestabelecida que precisa ser resolvida. Sempre
teorizamos as resoluções dos problemas, não há algo como uma mente pura que
observa um fenômeno como se fosse uma criança.
Mas então, Popper pensa que a ciência é impossível? Não,
apenas que precisa mudar seus próprios paradigmas, o que implica em ajustar sua
metodologia e seu objetivo final.
Popper dá a letra de sua filosofia: qualquer quantidade de
observações que confirme uma teoria não servirá para prová-la verdadeira, mas
uma única observação que a contradiga torná-la-á falsa. Então é isso que um
procedimento científico deve procurar - meios de falsificar uma teoria, de provar
que ela está errada, e não de confirmá-la.
Como uma experiência de cunho científico nasce de um
problema, a sua resolução envolve sempre uma proposta que precisa ser
averiguada, uma concatenação lógica de ideias que pressupõe ser uma resposta
ou, em uma só palavra, uma hipótese. Hipótese é um termo de origem grega que
significa algo como "estar abaixo de uma posição". A hipótese não é
uma solução definitiva, mas o nascedouro de uma tese.
Quando um cientista estabelece um objeto de observação, não
abrirá mão do processo indutivo. Ele vai utilizá-lo até chegar a um ponto em
que o estudo de casos particulares permita estabelecer uma hipótese. É neste
ponto, no entanto, que o processo investigativo se estabelecerá. Ele já tem uma
premissa universal estabelecida pela hipótese, e seu objetivo será não mais
criar uma coleção de casos particulares, prosseguindo assim com o caminho
indutivo, mas procurará pontos em que essa sua hipótese será provada falsa. Ele
não procurará novos cisnes brancos, mas os cisnes negros. Ele vai combater a
própria hipótese, e a cada vez que ela resistir, mais e mais consolidada se
tornará. Esse é o seu novo método científico, conhecido como hipotético-dedutivo.
Mas e se a hipótese for falseada? Neste caso, será
descartada e uma nova hipótese deverá ser criada. Em casos menos decisivos, no
mínimo a hipótese deverá ser corrigida. E isso dá o tom geral na nova Ciência:
ela precisa ter a pretensão da verdade, bem como a consciência de sua
inatingibilidade, de seu caráter provisório, de sua incerteza. Uma hipótese
nunca é provada – o que ocorre é que uma experiência que a coloque a prova pode
confirmá-la ou refutá-la. Se a confirma, pode fortalecê-la, mas jamais dar-lhe
estatuto de verdade definitiva. Isso acontece porque há uma assimetria lógica
entre a verificabilidade e o falseamento. É tipo assim: enquanto o time da
verificação vai fazendo gols, ele vai ganhando o jogo; assim que o time da
falsificação faz o seu primeiro tento, já ganha o jogo, mesmo que esteja 25 a
1. Para um time, o objetivo é fazer o máximo de gols possível e não tomar
nenhum; para o outro, é só fazer unzinho, uma espécie de morte súbita.
Esse é o motivo pelo qual muda-se a demarcação da Ciência.
Uma teoria somente pode ganhar o estatuto de científica quando receber o selo
de falseabilidade. É um processo que garante claramente o alcance da ciência,
bem como onde ela não pode chegar. Não tenta retratar a realidade como queriam
tanto racionalistas quanto empiristas, mas aproximar-se dela, o mais possível e
pelo maior tempo que der, mas sempre sujeita a ser revista no dia seguinte. O
conhecimento gerado por ela não é verdade absoluta, mas verossímil. Nunca
teremos teorias definitivas, mas precisamos desafiá-las. É por isso que
conhecimentos metafísicos e religiosos costumam se dar mal com o princípio da
falseabilidade. Quem prova Deus? Quem demonstra os anjos e as almas? Todas as
vezes em que se tentar achar pontos de falseabilidade para teorias envolvendo
disposições metafísicas, falhar-se-á. Mas ainda aqui há um certo respeito pela
parte de Popper. Pior para ele são as pseudociências (mencionadas aqui),
que se travestem de carapaça científica sem o serem. Ele coloca nesse balaio o
Historicismo de Marx, a Psicanálise de Freud e a Psicologia Individual de
Adler, porque sempre que são mostradas falsas, encontram modos de tergiversar.
A Revolução Proletária não ocorreu porque ainda os camponeses e operários estão
na alienação, os processos psíquicos sempre são passíveis de ser explicados
pela neurose e pela sublimação, e o sentimento de inferioridade possui uma
plástica que permite adaptá-lo a qualquer circunstância. As coisas que são
apresentadas como contraprovas a essas teorias são todas absorvidas pela sua maleabilidade,
como se fossem mistérios divinos. Tudo isso impossibilita pontos de
falseamento. E gera inimigos.
Sendo assim, se não há resultado definitivo para meus exames
de labirintite, nada mais me resta a não ser se conformar ou procurar outros
especialistas que possam se pronunciar no assunto, como um neurologista, por
exemplo. Não adianta esperar por um espírito que venha me rastrear os males da
alma. Não no âmbito da Ciência.
É claro que, apesar de todo consenso que atingiu nas
academias científicas de todo o mundo, as teorias de Popper não são imunes às
críticas. Alguns outros filósofos da Ciência, como Paul Feyerabend e Thomas
Kuhn, já teceram outras teorias para explicar como pode se dar o
desenvolvimento da Ciência. Além disso, as Ciências Humanas tem dificuldades em
apresentar pontos de falseabilidade, não porque eles sejam impossíveis, mas
porque são difíceis de atingir, como eu já havia dito neste
texto. E há uma última questão: qual é o ponto de falseabilidade da teoria
da falseabilidade? Onde ela pode ser provada errada?
Para este último ponto, a resposta é simples. Por mais que
envolva diretamente a Ciência e seus métodos, trata-se de uma questão
filosófica, e não científica. Ela tem um nascedouro especulativo, propõe-se a
tratar do fenômeno em sua essência e é todo coberto pela lógica, sem que se
precise provar nada a seu respeito. É por isso que Filosofia e Ciência não são
a mesma coisa e precisam ter escopos distintos. E há quem diga que a Filosofia
não sirva para nada... Bons ventos a todos!
Recomendações de leitura:
Impossível não fazer novamente remissão à magnum opus
de Popper:
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica.
São Paulo: Cultrix, 1993.
Mas também é possível adicionar outras leituras, como a
coletânea de artigos que segue abaixo:
POPPER, Karl. O Mito do Contexto. Em Defesa da
Ciência e da Racionalidade. Coimbra: Edições 70, 2016.
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