(É bom ter orgulho das origens, e não podemos ser culpados por causa disso)
“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!”
Fernando Pessoa
Olá!
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No prédio que habito, há um senhor português. Fiquei sabendo
disso quase que por acaso. No entra-e-sai constante e no trafegar dos
corredores, já havia o visto, mas era aquela coisa do bom-dia, boa-tarde,
boa-noite e pouco mais do que isso. Entretanto, ele me viu com uma determinada
camisa no corredor de entrada e ficou quase emocionado, puxando bem meia hora
de papo. Contou-me sobre a infância na comuna de Boticas, na região de
Trás-os-Montes, ao norte, onde se fala com um certo puxadinho do espanhol. Falou
de como seu pai fugiu da ditadura de Salazar e se estabeleceu na zona norte de São
Paulo, abrindo um botequim próximo do Campo de Marte, onde os recrutas da
aeronáutica iam gastar seus parcos soldos com linguiças e cachaças. Contou
ainda como conheceu sua patroa, igualmente portuguesa, e vinda de Penafiel,
igualmente no Norte, mas mais próxima do Porto. Contou dos filhos, dos gatos e
dos peixes, e viramos amigos, um dos poucos que tenho no prédio. Já comi de sua
realmente saborosa bacalhoada e lhe trouxe taiadas e licor de cambuci do Vale
do Paraíba, e, com isso, vamos enfrentando o mau cheiro do centro de São Paulo.
Mas que misteriosa camisa foi essa, que despertou tantas
lembranças doces e fez nascer uma amizade? É essa aí embaixo:
A Portuguesa Santista é mais uma das equipes fundadoras da
Federação Paulista de Futebol, prima-irmã da sua homônima da capital, nascida
da colônia portuguesa da cidade de Santos, ao verem que os espanhóis da cidade
fundaram seu clube Hespanha, hoje Jabaquara, já discorridos por aqui.
Não tem sido bons os últimos tempos da Briosa. Ela foi
rebaixada à terceira divisão do Campeonato Paulista e agora vai ter que penar
para recomeçar sua missão de voltar aos melhores tempos. Estrutura ela tem, já
que se trata de um belo clube, que, como tal, é até mais robusto que seu
vizinho célebre, o Santos. Mas ela padece dos males de vários outros fundadores
da Federação. Ela cumpre a dura missão de compartilhar a cidade com um dos
grandalhões, que cresceu muito exatamente no momento em que as torcidas se
amalgamavam, além de ser muito marcadamente próxima de uma colônia específica,
que, mesmo numerosa, cada vez mais tem se mesclado com a população geral. Isso
faz com que o clube caia na mesma roda de seu conterrâneo, o precitado Jabaquara.
E o círculo vicioso é muito difícil de sair.
Isso tudo não tira as suas virtudes. Além da tradição, houve
momentos em que a Santista esteve mais próxima dos seus rivais, e mesmo hoje
ela tem na sua história um dos principais patrimônios. Como não é possível que
um torneio termine empatado, mesmo onde há o maior equilíbrio possível, sempre
há quem leve e quem apanhe, ou seja, há o primeiro e há o último. Como o Santos
foi acumulando títulos e revelando jogadores meia-boca do tipo Pelé, Juary, Pita,
Coutinho e Edu, a Briosa foi ficando para trás, até atingir o lugar onde está
hoje: um ponto intermediário no futebol paulista.
Entretanto, a Briosa tem uma dor um pouco mais oculta, que
incomoda mais. Não são poucos que a chamam de “burrinha”, em razão do
estereótipo que se formou de que os portugueses são simplórios, faltos de
inteligência, tardos de pensamento. É diferente do que acontece com o Taubaté,
burrinho da Central, em que o animal representa os tropeiros que povoavam a
região. Neste caso, o símbolo é exibido com orgulho, porque traz uma série de
adjetivos positivos e tem conotação histórica. Diferentemente, a origem remota da
atribuição aos portugueses diz respeito, provavelmente, à dificuldade de
compreensão de certos termos utilizados pelo vulgo brasileiro. Como sabemos, na
formação do povo do Brasil há muitos ingredientes que não estão presentes na
cultura portuguesa, especialmente elementos africanos e indígenas. Isso tudo
sem contar que a distância estabelece uma realidade muito distinta entre a
antiga metrópole e colônias, com diferentes usos, costumes e necessidades.
Desta forma, os portugueses interpretam termos forjados no Brasil com
literalidade, enquanto o campo semântico coloquial se desloca para outro
sentido. Inúmeras expressões que utilizamos corriqueiramente em nosso
quotidiano são recebidas com estranheza pelo luso nativo, que pergunta, por
exemplo, como é possível “matar tartarugas a beliscão”, quando queremos, de
fato, dizer que temos poucos recursos para enfrentar dificuldades. Os coloniais
aproveitam, e deitam e rolam, alimentados pelo ressentimento decorrente da
situação de dominação. Vingam-se do grandalhão pisando em sua sombra. São os
ingredientes para o caldo problemático.
A principal questão é entender por que a ofensa se mantém
mesmo após perder seu sentido original, dada uma inversão nas relações. Hoje,
os portugueses reclamam do abrasileiramento dos seus linguajares, o que é um
distintivo da mudança de direção nas influências culturais. O diabo é que
começamos a fazer as coisas sem nem perceber direito porque as fazemos. É
aquela mesma coisa de tentar explicar a origem de um olho. Depois de tantas
transformações, é óbvio que os elementos presentes atualmente não se explicam
por si só, e parece que as coisas sempre foram do jeito que são agora. Mas o
olho um dia foi um mero nervo sensível à luminosidade, para depois ganhar um
abaulamento que lhe permitiu captar luz de partes distintas, e ganhar membranas,
e contratilidade, e esfericidade, até se tornar irreconhecível para o que foi
sua origem mais remota. Hoje em dia, não faz mais sentido pensar em uma relação
de dominante e dominado. Não é mais justificável a vingança possível, porque os
motivos palpáveis sumiram, mas o vestígio ficou, e a ridicularização que sobrou
se dirige a quem não a merece.
Meu amigo português se melindra dessa mesma pecha que lhe é
imposta no particular. Eu, contemporizador, digo-lhe para não ligar, para
entender que a tendência diminui a cada dia e, politicamente incorreto, que as
loiras têm dividido a inglória com eles. Mas ele ainda insiste que não há
conforto em ser chamado de burro a vida inteira. Concordo.
A situação é de exclusão. Ser burro é coisa de quem está
alijado da intelectualidade, e está ligado a uma pretensa incapacidade de até
mesmo pensar por si só, quanto mais gerir coisas importantes. O subterfúgio de
dizer que é só uma brincadeira não se sustenta quando você recebe a notícia de
que o professor que te ensinará é um português e os ponteiros do seu
desconfiômetro são acionados. Isso vale para qualquer forma de preconceito.
Ser excluído não é fácil, e eu, homem, branco, paulistano,
classe média baixa, heterossexual e cisgênero, tenho dificuldades para me
encaixar em situações de real exclusão para assumir o ponto de vista de quem
sofre o preconceito. É bem verdade que minha posição não-religiosa é boa
candidata, mas eu não milito nessas questões, e pouca gente sabe do meu ateísmo.
Mas, de tanto raciocinar, achei um bom exemplinho caseiro, que vem da minha
condição de diabético.
Se há algo que posso falar sobre minha parentagem é que as
palavras planejamento e organização não fazem sentido para os seus membros. É
extremamente comum que só decidamos coisas de Natal, Páscoa, Dia das Mães e
outras festividades na véspera (ou até no próprio dia). Isso vai influenciar em
tudo - se não sabemos nem onde vamos comer, obviamente não sabemos o que vamos
comer. Só que a vida caótica pode até ser divertida, porque gera muitas
histórias para contar, mas tem seu preço.
Eu sou diabético, já contei para vocês. Isso significa que é
preciso um pouco mais de cuidado no preparo de minhas comidas, como é óbvio. No
meio do pandemônio, é um pratinho minúsculo que precisa ser feito para atender
minha necessidade, e que normalmente acaba ficando para o final, para quando a
anarquia já houver ganho governo. Faz sentido até, porque fazer uma panela de
doce rende para muita gente, basicamente todo mundo, fora eu. Mas quase todo
ano acontece de não dar tempo de fazer a minha tacinha, o meu pratinho, a minha
sobremesinha. Como normalmente o estado é de balbúrdia, falo para deixar para
lá, pego uma fruta, como só um pedacinho, porque prefiro a paz possível ao doce
impossível. Mas, ainda que eu procure não me importar, fato concreto é que eu
sobro no dopopranzo. E não há como dizer que não fico na condição de
excluído, que eu não sinta isso. Não que eu quisesse um doce a qualquer custo.
O que eu queria mesmo é não ser diabético para não dar trabalho a ninguém e não
me fazer passar vontades.
Essa condição é tão arraigada que eu acabo tendendo a
achá-la natural. É básico em um pensamento utilitarista que o melhor benefício
deve ser distribuído para o maior número de pessoas possível, então fazemos
associações. O maior benefício possível certamente não vem de doces dietéticos,
muito mais caros. Portanto, a maior distribuição possível está para os não
diabéticos.
O mercado precifica os produtos diet de acordo com a
necessidade dos consumidores, porque o custo não é uma justificativa plena. Um
bom exemplo é o das bananadas que tem ingredientes a menos nos artigos zero, e
mesmo assim custam mais. Leia as composições e veja que nada há a mais no
produto mais caro, mas a menos.
No final, é coisa assim: só dá para fazer um doce zero,
então nem basta para todo mundo. Já do doce padrão pode ser feito dois ou três,
atingindo todos, menos um. Eu entendo e me conformo, mas é óbvio que, se eu
levar de cabo e a rabo, há uma lógica excludente aí.
Não dá para dizer que uma vida inteira levada na exclusão é
fácil, é justa. Então sou obrigado a me alinhar com meu amigo português, e
concordar que há tempos que começam e tempos que se encerram, como diz
sabiamente o Eclesiastes,
aquele livro completamente fora da curva na Bíblia. Idem com o time que tem uma
mascote tão criativa e representativa, a Cachopinha, uma dançarina de bailarico
com seus trajes típicos, cabelos morenos e cores do país e do time, um time
cuja história ora é um fado, com sua poesia triste, e ora é um vira, celebrante
da alegria, o que, no final das contas, é um espelho da vida de todos nós.
Alguém tão igual a nós não pode ser considerada maior ou menor por conta de sua
procedência. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
É o livro do centenário da Portuguesa Santista, que relata
suas aventuras e desventuras década a década.
SILVEIRA, Álvaro; ROGÉRIO, Paulo. 100 anos: Sou Mais
Briosa. Santos: Realejo, 2017.
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