Marcadores

terça-feira, 6 de maio de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a histórica Portuguesa Santista e as exclusões que estão carimbadas em nossas cabeças

(É bom ter orgulho das origens, e não podemos ser culpados por causa disso)

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!”

Fernando Pessoa

Olá!

Clique aqui para acessar a série toda

No prédio que habito, há um senhor português. Fiquei sabendo disso quase que por acaso. No entra-e-sai constante e no trafegar dos corredores, já havia o visto, mas era aquela coisa do bom-dia, boa-tarde, boa-noite e pouco mais do que isso. Entretanto, ele me viu com uma determinada camisa no corredor de entrada e ficou quase emocionado, puxando bem meia hora de papo. Contou-me sobre a infância na comuna de Boticas, na região de Trás-os-Montes, ao norte, onde se fala com um certo puxadinho do espanhol. Falou de como seu pai fugiu da ditadura de Salazar e se estabeleceu na zona norte de São Paulo, abrindo um botequim próximo do Campo de Marte, onde os recrutas da aeronáutica iam gastar seus parcos soldos com linguiças e cachaças. Contou ainda como conheceu sua patroa, igualmente portuguesa, e vinda de Penafiel, igualmente no Norte, mas mais próxima do Porto. Contou dos filhos, dos gatos e dos peixes, e viramos amigos, um dos poucos que tenho no prédio. Já comi de sua realmente saborosa bacalhoada e lhe trouxe taiadas e licor de cambuci do Vale do Paraíba, e, com isso, vamos enfrentando o mau cheiro do centro de São Paulo.

Mas que misteriosa camisa foi essa, que despertou tantas lembranças doces e fez nascer uma amizade? É essa aí embaixo:

A Portuguesa Santista é mais uma das equipes fundadoras da Federação Paulista de Futebol, prima-irmã da sua homônima da capital, nascida da colônia portuguesa da cidade de Santos, ao verem que os espanhóis da cidade fundaram seu clube Hespanha, hoje Jabaquara, já discorridos por aqui.

Não tem sido bons os últimos tempos da Briosa. Ela foi rebaixada à terceira divisão do Campeonato Paulista e agora vai ter que penar para recomeçar sua missão de voltar aos melhores tempos. Estrutura ela tem, já que se trata de um belo clube, que, como tal, é até mais robusto que seu vizinho célebre, o Santos. Mas ela padece dos males de vários outros fundadores da Federação. Ela cumpre a dura missão de compartilhar a cidade com um dos grandalhões, que cresceu muito exatamente no momento em que as torcidas se amalgamavam, além de ser muito marcadamente próxima de uma colônia específica, que, mesmo numerosa, cada vez mais tem se mesclado com a população geral. Isso faz com que o clube caia na mesma roda de seu conterrâneo, o precitado Jabaquara. E o círculo vicioso é muito difícil de sair.

Isso tudo não tira as suas virtudes. Além da tradição, houve momentos em que a Santista esteve mais próxima dos seus rivais, e mesmo hoje ela tem na sua história um dos principais patrimônios. Como não é possível que um torneio termine empatado, mesmo onde há o maior equilíbrio possível, sempre há quem leve e quem apanhe, ou seja, há o primeiro e há o último. Como o Santos foi acumulando títulos e revelando jogadores meia-boca do tipo Pelé, Juary, Pita, Coutinho e Edu, a Briosa foi ficando para trás, até atingir o lugar onde está hoje: um ponto intermediário no futebol paulista.

Entretanto, a Briosa tem uma dor um pouco mais oculta, que incomoda mais. Não são poucos que a chamam de “burrinha”, em razão do estereótipo que se formou de que os portugueses são simplórios, faltos de inteligência, tardos de pensamento. É diferente do que acontece com o Taubaté, burrinho da Central, em que o animal representa os tropeiros que povoavam a região. Neste caso, o símbolo é exibido com orgulho, porque traz uma série de adjetivos positivos e tem conotação histórica. Diferentemente, a origem remota da atribuição aos portugueses diz respeito, provavelmente, à dificuldade de compreensão de certos termos utilizados pelo vulgo brasileiro. Como sabemos, na formação do povo do Brasil há muitos ingredientes que não estão presentes na cultura portuguesa, especialmente elementos africanos e indígenas. Isso tudo sem contar que a distância estabelece uma realidade muito distinta entre a antiga metrópole e colônias, com diferentes usos, costumes e necessidades. Desta forma, os portugueses interpretam termos forjados no Brasil com literalidade, enquanto o campo semântico coloquial se desloca para outro sentido. Inúmeras expressões que utilizamos corriqueiramente em nosso quotidiano são recebidas com estranheza pelo luso nativo, que pergunta, por exemplo, como é possível “matar tartarugas a beliscão”, quando queremos, de fato, dizer que temos poucos recursos para enfrentar dificuldades. Os coloniais aproveitam, e deitam e rolam, alimentados pelo ressentimento decorrente da situação de dominação. Vingam-se do grandalhão pisando em sua sombra. São os ingredientes para o caldo problemático.

A principal questão é entender por que a ofensa se mantém mesmo após perder seu sentido original, dada uma inversão nas relações. Hoje, os portugueses reclamam do abrasileiramento dos seus linguajares, o que é um distintivo da mudança de direção nas influências culturais. O diabo é que começamos a fazer as coisas sem nem perceber direito porque as fazemos. É aquela mesma coisa de tentar explicar a origem de um olho. Depois de tantas transformações, é óbvio que os elementos presentes atualmente não se explicam por si só, e parece que as coisas sempre foram do jeito que são agora. Mas o olho um dia foi um mero nervo sensível à luminosidade, para depois ganhar um abaulamento que lhe permitiu captar luz de partes distintas, e ganhar membranas, e contratilidade, e esfericidade, até se tornar irreconhecível para o que foi sua origem mais remota. Hoje em dia, não faz mais sentido pensar em uma relação de dominante e dominado. Não é mais justificável a vingança possível, porque os motivos palpáveis sumiram, mas o vestígio ficou, e a ridicularização que sobrou se dirige a quem não a merece.

Meu amigo português se melindra dessa mesma pecha que lhe é imposta no particular. Eu, contemporizador, digo-lhe para não ligar, para entender que a tendência diminui a cada dia e, politicamente incorreto, que as loiras têm dividido a inglória com eles. Mas ele ainda insiste que não há conforto em ser chamado de burro a vida inteira. Concordo.

A situação é de exclusão. Ser burro é coisa de quem está alijado da intelectualidade, e está ligado a uma pretensa incapacidade de até mesmo pensar por si só, quanto mais gerir coisas importantes. O subterfúgio de dizer que é só uma brincadeira não se sustenta quando você recebe a notícia de que o professor que te ensinará é um português e os ponteiros do seu desconfiômetro são acionados. Isso vale para qualquer forma de preconceito.

Ser excluído não é fácil, e eu, homem, branco, paulistano, classe média baixa, heterossexual e cisgênero, tenho dificuldades para me encaixar em situações de real exclusão para assumir o ponto de vista de quem sofre o preconceito. É bem verdade que minha posição não-religiosa é boa candidata, mas eu não milito nessas questões, e pouca gente sabe do meu ateísmo. Mas, de tanto raciocinar, achei um bom exemplinho caseiro, que vem da minha condição de diabético.

Se há algo que posso falar sobre minha parentagem é que as palavras planejamento e organização não fazem sentido para os seus membros. É extremamente comum que só decidamos coisas de Natal, Páscoa, Dia das Mães e outras festividades na véspera (ou até no próprio dia). Isso vai influenciar em tudo - se não sabemos nem onde vamos comer, obviamente não sabemos o que vamos comer. Só que a vida caótica pode até ser divertida, porque gera muitas histórias para contar, mas tem seu preço.

Eu sou diabético, já contei para vocês. Isso significa que é preciso um pouco mais de cuidado no preparo de minhas comidas, como é óbvio. No meio do pandemônio, é um pratinho minúsculo que precisa ser feito para atender minha necessidade, e que normalmente acaba ficando para o final, para quando a anarquia já houver ganho governo. Faz sentido até, porque fazer uma panela de doce rende para muita gente, basicamente todo mundo, fora eu. Mas quase todo ano acontece de não dar tempo de fazer a minha tacinha, o meu pratinho, a minha sobremesinha. Como normalmente o estado é de balbúrdia, falo para deixar para lá, pego uma fruta, como só um pedacinho, porque prefiro a paz possível ao doce impossível. Mas, ainda que eu procure não me importar, fato concreto é que eu sobro no dopopranzo. E não há como dizer que não fico na condição de excluído, que eu não sinta isso. Não que eu quisesse um doce a qualquer custo. O que eu queria mesmo é não ser diabético para não dar trabalho a ninguém e não me fazer passar vontades.

Essa condição é tão arraigada que eu acabo tendendo a achá-la natural. É básico em um pensamento utilitarista que o melhor benefício deve ser distribuído para o maior número de pessoas possível, então fazemos associações. O maior benefício possível certamente não vem de doces dietéticos, muito mais caros. Portanto, a maior distribuição possível está para os não diabéticos. 

O mercado precifica os produtos diet de acordo com a necessidade dos consumidores, porque o custo não é uma justificativa plena. Um bom exemplo é o das bananadas que tem ingredientes a menos nos artigos zero, e mesmo assim custam mais. Leia as composições e veja que nada há a mais no produto mais caro, mas a menos.

No final, é coisa assim: só dá para fazer um doce zero, então nem basta para todo mundo. Já do doce padrão pode ser feito dois ou três, atingindo todos, menos um. Eu entendo e me conformo, mas é óbvio que, se eu levar de cabo e a rabo, há uma lógica excludente aí.

Não dá para dizer que uma vida inteira levada na exclusão é fácil, é justa. Então sou obrigado a me alinhar com meu amigo português, e concordar que há tempos que começam e tempos que se encerram, como diz sabiamente o Eclesiastes, aquele livro completamente fora da curva na Bíblia. Idem com o time que tem uma mascote tão criativa e representativa, a Cachopinha, uma dançarina de bailarico com seus trajes típicos, cabelos morenos e cores do país e do time, um time cuja história ora é um fado, com sua poesia triste, e ora é um vira, celebrante da alegria, o que, no final das contas, é um espelho da vida de todos nós. Alguém tão igual a nós não pode ser considerada maior ou menor por conta de sua procedência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É o livro do centenário da Portuguesa Santista, que relata suas aventuras e desventuras década a década.

SILVEIRA, Álvaro; ROGÉRIO, Paulo. 100 anos: Sou Mais Briosa. Santos: Realejo, 2017.

Nenhum comentário:

Postar um comentário