(A Linguística é a ciência que estuda a comunicação humana)
“Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nação brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro”
Oswald de Andrade
Olá!
Clique aqui para acessar os demais tópicos desta série
De vez em quando, eu tenho reuniões com grandões*. Por mais
que meu trabalho se afaste dos centros decisórios, o fato é que não dá para
escapar sempre, e tem momentos em que os requisitos para desenvolver sistemas
precisam ser levantados e validados nas altas esferas. Quando acontece uma
dessas, meus superiores me admoestam com incontáveis recomendações, esquecendo
que eu tenho mais de 50 anos: “procure não fazer muitas perguntas, evite
perturbar o bom sossego”. Que coisa irritante. Mas é real que, diante de tão
perfumadas personalidades, eu adote um tom formal que não costumo usar no
dia-a-dia. É um tal de “governança”, “similitude”, “modelagem”, além dos
inescapáveis anglicismos que povoam a atividade. Al di là dos termos
mais técnicos, também vem uma empolação que só é cabível nos formalismos
escritos, mas que procuramos puxar nesses momentos sombrios. Até um “destarte”
eu soltei na última reunião. Destarte… quem fala isso? Mas é língua portuguesa,
viu?
Quem me vê em uma reunião e depois fala comigo em um boteco
pensa se tratar de duas pessoas diferentes. Tenho o sotaque paulistano dos
bairros mais antigos e gíria dos bairros mais periféricos, fazendo uma
colorida combinação de “meus” e “manos” típica da Paulicéia desvairada.
De uma forma ou de outra, aliás, todo mundo veste essa
persona, podem reparar. Ninguém é formal o tempo todo, nem é coloquial em
qualquer momento, com raras exceções. Isso porque há contextos e contextos, e,
por isso, há diferentes expressões para momentos mais ou menos adequados. E
essa variação que utilizamos na linguagem faz parte da maneira como nós,
humanos, construímos nossas personalidades e sociedades.
Não há nada de errado nisso. A única questão se dá no âmbito
sobre qual é o ângulo de visão lançado sobre a questão. Quando falamos sobre
gramática, nós estamos falando sobre o ponto de vista normativo da língua, que
prescreve como são as regras que devem ser seguidas para que a linguagem cumpra
a sua função de ser precisa. É uma função legítima, porque necessária, mas não
é a única, porque, antes de mais nada, a função da linguagem é comunicar.
Posto isso, e tendo algumas premissas básicas em mente,
podemos afirmar que a linguagem é um objeto de estudo como outro qualquer. É a
essa visão científica que se aplica à linguagem que damos o nome de Linguística,
e sobre ela pousam algumas pequenas confusões, e cabe explicar melhor do que se
trata.
Embora seja comum que façamos divisões entre uma linguagem
dita correta e outra não, sendo que a primeira é mais elaborada e cuidadosa,
enquanto a segunda é mais intuitiva e imediata, a verdade é que esse processo
não funciona unicamente com a chave da norma. É evidente que existem momentos
em que é necessário que a linguagem seja a mais precisa possível:
especificações técnicas, elaboração de leis, prescrições médicas. Estes são momentos
em que a linguagem precisa sofrer o mínimo possível de desvios devido à
ambiguidade. Mas a linguagem normatizada não é a única existente, e não é
suficiente para dar cabo à tarefa de comunicar. Ela recebe influências da
língua coloquial e fornece dados para a mesma. É fácil de perceber isso quando
trazemos um termo mais rebuscado para o nosso quotidiano. A palavra “tosco”,
por exemplo, era utilizada até a década de 90 quase que só no âmbito formal,
com uma cara de arcaísmo, até que alguém achou o termo legal e o trouxe para o
vulgo, e hoje em dia está na boca de todo mundo, embora a nova conotação seja
um pouco diferente do contexto original. Antes, tosco era sinônimo de
rudimentar, enquanto hoje tem o sentido de malfeito ou de desprezível.
Idem se dá no sentido oposto. Quando uma palavra do colóquio
ganha uso formal, porque se torna consagrada, passa a fazer parte da norma
culta, como costuma ocorrer com palavras horrorosas, como “vantajosidade”, que,
apesar de pernóstica, foi errada só até um determinado momento, e hoje consta
em inúmeros contratos e editais. É aquela coisa… se algo tem o sufixo -dade,
parece dar o sentido de ato ou efeito de uma coisa qualquer, só que eu nunca vi
gostoso dar origem a gostosidade, ou gorduroso a gordurosidade. Bem, que se vai
fazer?
Percebem como a língua é dinâmica? Ela vai se transformando
com o tempo, dialeticamente modificando certos em errados e vice-versa. Por
esse motivo, e tendo a pretensão de ser uma ciência, a Linguística tem por
objeto exatamente a dinâmica da língua, de forma a conseguir descrever seu
funcionamento e depreender como esta interage com o universo que procura
retratar.
A Linguística, ao contrário do que acontece com a maioria
das ciências, tem uma certidão de nascimento, que se dá com os estudos de
Ferdinand de Saussure, pensador suíço que converteu uma filosofia difusa em
objeto de estudo sistemático. É com ele que se estabelece a tríade essencial da
linguagem, signo-significante-significado, onde o primeiro é a representação já
montada de uma imagem psíquica (segundo) que identifica o terceiro, o objeto em
si. A partir dele, várias escolas e correntes linguísticas foram criadas, quase
sempre voltadas para quatro focos:
Fonética e fonologia: investiga como os sons são
articulados para produzir sonoramente os elementos linguísticos. É preciso
lembrar que, antes de ser baixada em escrito, a linguagem passou pelas bocas, e
estudar a maneira como esses sons são produzidos ajuda inclusive a desvendar o
conceito de imagem sonora, uma das três partes da estrutura linguística.
Morfologia: estuda a estrutura da linguagem nos seus
elementos mais fundamentais, para a compreensão de como as palavras são
construídas. É quase como se a Linguística estudasse a estrutura atômica das
palavras, para compreender como elas se formam. Podemos fazer um metaexemplo
com a própria palavra “morfologia”, que é composta pelo radical morfo,
que significa forma ou estrutura e logia, do grego logos que,
neste sentido, significa estudo.
Sintaxe: busca compreender como os diferentes
componentes da linguagem se estruturam para formar composições que formem
sentidos, como as frases e orações. Aqui, estuda-se a articulação das
palavras dentro das frases e das frases dentro dos períodos. É preciso tomar
cuidado para não se confundir a sintaxe linguística com a sintaxe normativa.
Podemos usar o poeminha “Pronominais”, de Oswald de Andrade, que está na
epígrafe deste texto como exemplo. Ele diferencia o português acadêmico baixado
por escrito em documentos formais e da língua falada popularmente. O objetivo
da Linguística como ciência não é decretar qual forma é certa ou errada, mas
compreender como a comunicação se dá através da utilização de sons e palavras. Oswald,
inclusive, dá com este texto uma mostra do que o movimento modernista era
favorável: uma linguagem mais fluida, desatada dos formalismos elitizantes e
mais próxima ao falar das pessoas.
Semântica: estuda os diferentes sentidos que a
linguagem adota de acordo com o contexto em que se encaixa. É a parte mais
subjetiva da Linguística, porque é aquela que tem um olhar mais dinâmico sobre
a questão. Não olharemos aqui apenas para os encaixes dos termos, mas o
significado que eles assumem dentro de um contexto comunicativo. Enquanto na
sintaxe nos ocupamos com as combinações, na semântica o foco é o que cada
palavra quer dizer naquilo que se diz. E também para advertir quando o uso da
linguagem se desvia de um propósito mais autêntico para desembocar na sua
função mais ilusória, mais malandrinha, mais tergiversada, como é o caso das falácias.
É com Ferdinand de Saussure que a Linguística nasce como
ciência, e falei sobre ele neste
texto. A coisa nasce meio que no contexto do Positivismo,
que tem como objetivo transformar qualquer tipo de estudo em ciência, o
verdadeiro conhecimento aproveitável. Sendo assim, a Linguística nasce como uma
ciência humana, que se encaixa no conjunto da sociologia, porque é um dos
ingredientes necessários para que as sociedades existam. Não adianta achar que
as pessoas agrupar-se-iam mudas, ou que, no mínimo, falassem por gestos ou sons
diferentes das falas (que, aliás, são componentes da linguagem). O papel da Linguística,
como ciência, é observar e descrever, sem fazer nenhuma apreciação ética ou
prescritiva. Não há certo ou errado na linguística, apenas a descrição da
realidade dos usos e costumes da língua. Não existe dizer que “Pêrnambuco” é
mais certo do que “Pérnambuco”, ou que “Rorâima” é mais certo que “Roráima”,
quando olhando pelo viés linguístico. O que existe é todo um histórico que faz
com que se fale de uma forma ou de outra.
A partir da observação linguística, começamos a perceber uma
série de informações que nem passam pela nossa cabeça no quotidiano. Por
exemplo: toda língua tem um sedimento arbitrário. Quando miramos um objeto
qualquer, não colocamos nele o nome que bem entendemos. Independentemente de
como surgiu, usamos o nome que a coletividade lhe impôs. Dessa forma, chamamos
um aparelho motorizado com quatro rodas de carro porque há o consenso social de
que este é seu designativo. Como foi que alguém um belo dia resolveu chamar
essa coisa de carro, é outro estudo. Ou seja, um nome é imposto para a
sociedade, e não escolhido democraticamente por cada um dos seus membros.
Só que esse princípio de arbitrariedade é muito mais
extenso, porque ele vai além da mera formação das palavras. Toda a estrutura
gramatical vai no mesmo sentido, em um processo de tradição das normas que,
nascidas do uso, vão parar nas regras. A gramática é assim porque seu uso a consagrou,
e só se modifica aos poucos, a partir da obtenção de novos consensos.
Novamente, ela não nasce dos manuais, mas da tradição linguística de uma
comunidade, que, aí sim, uma vez sistematizada, dá origem a uma descrição
daquilo que é aceito como correto. Vejam como, neste ponto, gramática e
linguística se imbricam, ou, melhor dizendo, uma dá explicação à outra.
Quando levada a níveis mais profundos, a linguística
consegue perceber como a linguagem é um fenômeno social derivante de uma
capacidade orgânica humana. Isso significa que organismos humanos evoluíram ao
ponto de se adaptar para fazer cognições adequadas de sentidos. Um cérebro está
preparado não somente para perceber correlações entre significantes e
significados, mas a estabelecer coerência entre suas articulações. Pegue um cão
e diga a ele uma frase bem construída ou totalmente desconexa. Você perceberá
que não haverá diferença alguma em sua reação. Já um humano diferencia uma
afirmação como “hoje está frio” de outra que diz que “hoje está mole”. Nesse
segundo caso, a carga semântica do adjetivo precisa ser enriquecida com mais
informações, senão não fará sentido. Essa característica de estranheza dispara
ações neuronais que fazem com que não fiquemos meramente passivos diante da
desconectividade, ainda que seja exatamente para forçar a ausência de reação.
Óbvio que a real existência de fenômenos neurais dando base
para o desenrolar da linguagem não justifica ciladas que nos oferecem, como a PNL
(vide),
mas nos demonstra como a temática da linguística pode se tornar mais e mais
profunda. Seus estudos sobre o processamento da linguagem a nível mental fazem
melhorar a compreensão de como as línguas de sinais podem reproduzir cada vez
melhor os mesmos signos das línguas verbalizadas, e, mais importante ainda,
como os dois métodos podem identificar pontos de coincidência para interagir
entre si de maneira mais eficaz. Inclusão é isso.
E qual é a relação entre Linguística e Filosofia da Linguagem?
Bem, a parte filosófica está mais no âmbito dos conceitos, e isso faz com que a
Linguística os use de maneira já dadas, para que se dedique mais especificamente
ao aspecto científico. Assim, enquanto a Linguística estuda o que é o
significado das palavras, a Filosofia já tratou de trazer a interpretação ao
conceito de significado. Enquanto a Linguística traduz como os nomes traduzem
objetos, a Filosofia da Linguagem já discutiu se os nomes são coisas
intrínsecas aos objetos ou se são atribuições convencionais. Ou seja, a Linguística
trafega pelo asfalto que a Filosofia da Linguagem pavimentou.
Essa era a pequena pincelada que eu queria trazer sobre essa
especialidade tão vasta, que por vezes se confunde e se mistura com tantas
outras áreas do conhecimento, pelo simples motivo de que ele, o saber, não
existe sem uma linguagem que o registre e transmita. Bons ventos a todos!
Recomendação de canal:
Vou recomendar o canal da Janaísa Martins Viscardi, a Jana,
que milita a um bom tempo no YouTube nessa especialidade, e que se descola do
simples método professoral, trazendo discussões que pode não ser de total
agrado, mas que estão no mundo, para concordar ou não.
https://www.youtube.com/@JanaViscardi
*Apesar de militar na Filosofia, meu ganha-pão é na área de
informática.
Nenhum comentário:
Postar um comentário