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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (38 - Linguística)

(A Linguística é a ciência que estuda a comunicação humana)

“Dê-me um cigarro

Diz a gramática 

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco 

Da nação brasileira 

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro”

Oswald de Andrade 


Olá!

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De vez em quando, eu tenho reuniões com grandões*. Por mais que meu trabalho se afaste dos centros decisórios, o fato é que não dá para escapar sempre, e tem momentos em que os requisitos para desenvolver sistemas precisam ser levantados e validados nas altas esferas. Quando acontece uma dessas, meus superiores me admoestam com incontáveis recomendações, esquecendo que eu tenho mais de 50 anos: “procure não fazer muitas perguntas, evite perturbar o bom sossego”. Que coisa irritante. Mas é real que, diante de tão perfumadas personalidades, eu adote um tom formal que não costumo usar no dia-a-dia. É um tal de “governança”, “similitude”, “modelagem”, além dos inescapáveis anglicismos que povoam a atividade. Al di là dos termos mais técnicos, também vem uma empolação que só é cabível nos formalismos escritos, mas que procuramos puxar nesses momentos sombrios. Até um “destarte” eu soltei na última reunião. Destarte… quem fala isso? Mas é língua portuguesa, viu?

Quem me vê em uma reunião e depois fala comigo em um boteco pensa se tratar de duas pessoas diferentes. Tenho o sotaque paulistano dos bairros mais antigos e gíria dos bairros mais periféricos, fazendo uma colorida combinação de “meus” e “manos” típica da Paulicéia desvairada.

De uma forma ou de outra, aliás, todo mundo veste essa persona, podem reparar. Ninguém é formal o tempo todo, nem é coloquial em qualquer momento, com raras exceções. Isso porque há contextos e contextos, e, por isso, há diferentes expressões para momentos mais ou menos adequados. E essa variação que utilizamos na linguagem faz parte da maneira como nós, humanos, construímos nossas personalidades e sociedades.

Não há nada de errado nisso. A única questão se dá no âmbito sobre qual é o ângulo de visão lançado sobre a questão. Quando falamos sobre gramática, nós estamos falando sobre o ponto de vista normativo da língua, que prescreve como são as regras que devem ser seguidas para que a linguagem cumpra a sua função de ser precisa. É uma função legítima, porque necessária, mas não é a única, porque, antes de mais nada, a função da linguagem é comunicar.

Posto isso, e tendo algumas premissas básicas em mente, podemos afirmar que a linguagem é um objeto de estudo como outro qualquer. É a essa visão científica que se aplica à linguagem que damos o nome de Linguística, e sobre ela pousam algumas pequenas confusões, e cabe explicar melhor do que se trata.


A Linguística é o estudo das línguas em sua dinâmica, ou seja, na maneira como ela se articula com os conteúdos mentais para representá-los na forma de mensagens, como ela se modifica com o passar do tempo e como diferentes falantes se referem a objetos semelhantes. Só que isso não evita que seja necessário entender como a língua funciona em seus aspectos mais miúdos. Se ficou confuso, vou esmiuçar.

Embora seja comum que façamos divisões entre uma linguagem dita correta e outra não, sendo que a primeira é mais elaborada e cuidadosa, enquanto a segunda é mais intuitiva e imediata, a verdade é que esse processo não funciona unicamente com a chave da norma. É evidente que existem momentos em que é necessário que a linguagem seja a mais precisa possível: especificações técnicas, elaboração de leis, prescrições médicas. Estes são momentos em que a linguagem precisa sofrer o mínimo possível de desvios devido à ambiguidade. Mas a linguagem normatizada não é a única existente, e não é suficiente para dar cabo à tarefa de comunicar. Ela recebe influências da língua coloquial e fornece dados para a mesma. É fácil de perceber isso quando trazemos um termo mais rebuscado para o nosso quotidiano. A palavra “tosco”, por exemplo, era utilizada até a década de 90 quase que só no âmbito formal, com uma cara de arcaísmo, até que alguém achou o termo legal e o trouxe para o vulgo, e hoje em dia está na boca de todo mundo, embora a nova conotação seja um pouco diferente do contexto original. Antes, tosco era sinônimo de rudimentar, enquanto hoje tem o sentido de malfeito ou de desprezível. 

Idem se dá no sentido oposto. Quando uma palavra do colóquio ganha uso formal, porque se torna consagrada, passa a fazer parte da norma culta, como costuma ocorrer com palavras horrorosas, como “vantajosidade”, que, apesar de pernóstica, foi errada só até um determinado momento, e hoje consta em inúmeros contratos e editais. É aquela coisa… se algo tem o sufixo -dade, parece dar o sentido de ato ou efeito de uma coisa qualquer, só que eu nunca vi gostoso dar origem a gostosidade, ou gorduroso a gordurosidade. Bem, que se vai fazer?

Percebem como a língua é dinâmica? Ela vai se transformando com o tempo, dialeticamente modificando certos em errados e vice-versa. Por esse motivo, e tendo a pretensão de ser uma ciência, a Linguística tem por objeto exatamente a dinâmica da língua, de forma a conseguir descrever seu funcionamento e depreender como esta interage com o universo que procura retratar.

A Linguística, ao contrário do que acontece com a maioria das ciências, tem uma certidão de nascimento, que se dá com os estudos de Ferdinand de Saussure, pensador suíço que converteu uma filosofia difusa em objeto de estudo sistemático. É com ele que se estabelece a tríade essencial da linguagem, signo-significante-significado, onde o primeiro é a representação já montada de uma imagem psíquica (segundo) que identifica o terceiro, o objeto em si. A partir dele, várias escolas e correntes linguísticas foram criadas, quase sempre voltadas para quatro focos:

Fonética e fonologia: investiga como os sons são articulados para produzir sonoramente os elementos linguísticos. É preciso lembrar que, antes de ser baixada em escrito, a linguagem passou pelas bocas, e estudar a maneira como esses sons são produzidos ajuda inclusive a desvendar o conceito de imagem sonora, uma das três partes da estrutura linguística.

Morfologia: estuda a estrutura da linguagem nos seus elementos mais fundamentais, para a compreensão de como as palavras são construídas. É quase como se a Linguística estudasse a estrutura atômica das palavras, para compreender como elas se formam. Podemos fazer um metaexemplo com a própria palavra “morfologia”, que é composta pelo radical morfo, que significa forma ou estrutura e logia, do grego logos que, neste sentido, significa estudo.

Sintaxe: busca compreender como os diferentes componentes da linguagem se estruturam para formar composições que formem sentidos, como as frases e orações.  Aqui, estuda-se a articulação das palavras dentro das frases e das frases dentro dos períodos. É preciso tomar cuidado para não se confundir a sintaxe linguística com a sintaxe normativa. Podemos usar o poeminha “Pronominais”, de Oswald de Andrade, que está na epígrafe deste texto como exemplo. Ele diferencia o português acadêmico baixado por escrito em documentos formais e da língua falada popularmente. O objetivo da Linguística como ciência não é decretar qual forma é certa ou errada, mas compreender como a comunicação se dá através da utilização de sons e palavras. Oswald, inclusive, dá com este texto uma mostra do que o movimento modernista era favorável: uma linguagem mais fluida, desatada dos formalismos elitizantes e mais próxima ao falar das pessoas. 

Semântica: estuda os diferentes sentidos que a linguagem adota de acordo com o contexto em que se encaixa. É a parte mais subjetiva da Linguística, porque é aquela que tem um olhar mais dinâmico sobre a questão. Não olharemos aqui apenas para os encaixes dos termos, mas o significado que eles assumem dentro de um contexto comunicativo. Enquanto na sintaxe nos ocupamos com as combinações, na semântica o foco é o que cada palavra quer dizer naquilo que se diz. E também para advertir quando o uso da linguagem se desvia de um propósito mais autêntico para desembocar na sua função mais ilusória, mais malandrinha, mais tergiversada, como é o caso das falácias.

É com Ferdinand de Saussure que a Linguística nasce como ciência, e falei sobre ele neste texto. A coisa nasce meio que no contexto do Positivismo, que tem como objetivo transformar qualquer tipo de estudo em ciência, o verdadeiro conhecimento aproveitável. Sendo assim, a Linguística nasce como uma ciência humana, que se encaixa no conjunto da sociologia, porque é um dos ingredientes necessários para que as sociedades existam. Não adianta achar que as pessoas agrupar-se-iam mudas, ou que, no mínimo, falassem por gestos ou sons diferentes das falas (que, aliás, são componentes da linguagem). O papel da Linguística, como ciência, é observar e descrever, sem fazer nenhuma apreciação ética ou prescritiva. Não há certo ou errado na linguística, apenas a descrição da realidade dos usos e costumes da língua. Não existe dizer que “Pêrnambuco” é mais certo do que “Pérnambuco”, ou que “Rorâima” é mais certo que “Roráima”, quando olhando pelo viés linguístico. O que existe é todo um histórico que faz com que se fale de uma forma ou de outra.

A partir da observação linguística, começamos a perceber uma série de informações que nem passam pela nossa cabeça no quotidiano. Por exemplo: toda língua tem um sedimento arbitrário. Quando miramos um objeto qualquer, não colocamos nele o nome que bem entendemos. Independentemente de como surgiu, usamos o nome que a coletividade lhe impôs. Dessa forma, chamamos um aparelho motorizado com quatro rodas de carro porque há o consenso social de que este é seu designativo. Como foi que alguém um belo dia resolveu chamar essa coisa de carro, é outro estudo. Ou seja, um nome é imposto para a sociedade, e não escolhido democraticamente por cada um dos seus membros.

Só que esse princípio de arbitrariedade é muito mais extenso, porque ele vai além da mera formação das palavras. Toda a estrutura gramatical vai no mesmo sentido, em um processo de tradição das normas que, nascidas do uso, vão parar nas regras. A gramática é assim porque seu uso a consagrou, e só se modifica aos poucos, a partir da obtenção de novos consensos. Novamente, ela não nasce dos manuais, mas da tradição linguística de uma comunidade, que, aí sim, uma vez sistematizada, dá origem a uma descrição daquilo que é aceito como correto. Vejam como, neste ponto, gramática e linguística se imbricam, ou, melhor dizendo, uma dá explicação à outra.

Quando levada a níveis mais profundos, a linguística consegue perceber como a linguagem é um fenômeno social derivante de uma capacidade orgânica humana. Isso significa que organismos humanos evoluíram ao ponto de se adaptar para fazer cognições adequadas de sentidos. Um cérebro está preparado não somente para perceber correlações entre significantes e significados, mas a estabelecer coerência entre suas articulações. Pegue um cão e diga a ele uma frase bem construída ou totalmente desconexa. Você perceberá que não haverá diferença alguma em sua reação. Já um humano diferencia uma afirmação como “hoje está frio” de outra que diz que “hoje está mole”. Nesse segundo caso, a carga semântica do adjetivo precisa ser enriquecida com mais informações, senão não fará sentido. Essa característica de estranheza dispara ações neuronais que fazem com que não fiquemos meramente passivos diante da desconectividade, ainda que seja exatamente para forçar a ausência de reação.

Óbvio que a real existência de fenômenos neurais dando base para o desenrolar da linguagem não justifica ciladas que nos oferecem, como a PNL (vide), mas nos demonstra como a temática da linguística pode se tornar mais e mais profunda. Seus estudos sobre o processamento da linguagem a nível mental fazem melhorar a compreensão de como as línguas de sinais podem reproduzir cada vez melhor os mesmos signos das línguas verbalizadas, e, mais importante ainda, como os dois métodos podem identificar pontos de coincidência para interagir entre si de maneira mais eficaz. Inclusão é isso.

E qual é a relação entre Linguística e Filosofia da Linguagem? Bem, a parte filosófica está mais no âmbito dos conceitos, e isso faz com que a Linguística os use de maneira já dadas, para que se dedique mais especificamente ao aspecto científico. Assim, enquanto a Linguística estuda o que é o significado das palavras, a Filosofia já tratou de trazer a interpretação ao conceito de significado. Enquanto a Linguística traduz como os nomes traduzem objetos, a Filosofia da Linguagem já discutiu se os nomes são coisas intrínsecas aos objetos ou se são atribuições convencionais. Ou seja, a Linguística trafega pelo asfalto que a Filosofia da Linguagem pavimentou.

Essa era a pequena pincelada que eu queria trazer sobre essa especialidade tão vasta, que por vezes se confunde e se mistura com tantas outras áreas do conhecimento, pelo simples motivo de que ele, o saber, não existe sem uma linguagem que o registre e transmita. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Vou recomendar o canal da Janaísa Martins Viscardi, a Jana, que milita a um bom tempo no YouTube nessa especialidade, e que se descola do simples método professoral, trazendo discussões que pode não ser de total agrado, mas que estão no mundo, para concordar ou não.

https://www.youtube.com/@JanaViscardi

 

*Apesar de militar na Filosofia, meu ganha-pão é na área de informática.

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