(Há muitas dúvidas sobre o Estado laico. Dúvidas, não; o que há são enganos. E isso faz com que certos problemas surjam sem que as enfrentemos da maneira que devem).
Olá!
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Depois de um bom tempo, o atual mandatário do poder federal
conseguiu cumprir uma de suas promessas: nomear, para o STF, um ministro
"terrivelmente evangélico", nas palavras dele. Trata-se de André
Mendonça, que foi aprovado com uma certa má vontade pelo Senado, haja vista ao
longo chá de cadeira que o mesmo tomou. Desde o dia 07 de julho seu nome já
estava indicado, e sua aprovação foi relativamente apertada, mas com
comemorações e manifestações em línguas.
Há problemas substanciais na sua indicação e agora nomeação?
Não no nome em si, afinal de contas parece a mim que ele possui os predicados
necessários para ocupar a vaga: tem mais de 35 anos, notório saber jurídico e
reputação ilibada. O grande susto vem no motivador de sua indicação - o tal
terrível evangelismo. Isso acrescenta um item ao critério que contraria uma
premissa básica da constituição - a laicidade do Estado. Afinal de contas, esse
critério, a exigibilidade de um credo específico para ingressar na corte
guardiã da carta magna causa um arrepio na espinha que poucas vezes eu tive
antes.
O novo ministro prometeu que a Bíblia é para sua vida, e, no
STF, o que regerá sua conduta é a Constituição. É bom que o diga, mas, mais
importante ainda, é bom que o siga. O outro ministro nomeado pelo atual
governo, Nunes Marques, tem tido uma fidelidade canina às posições dos atuais mandatários,
o que pode dar uma mostra do que lhes é exigido. A justificativa de que um país
com trinta por cento de evangélicos tem agora uma representação próxima a 9 por
cento do Supremo é falaciosa. Afinal de contas, as convicções religiosas dos
outros dez membros não foram levadas em consideração na hora da escolha, e,
mesmo que se declarem católicos, como a maioria da população, sabemos que a
prática real dessa religião está muito distante do que dita a igreja em questão.
Mas qual é a razão para o bode todo? Eu já disse lá em cima:
não dá para afirmar que um ministro evangélico seja um atentado ou uma ameaça
ao Estado laico, mas é um daqueles sinais que não podemos deixar de perceber e
de ficar com as orelhas em pé. Afinal de contas, tudo o que não se espera de um
ministro do STF é que ele já esteja enviesado no nascedouro. Ora (direis), qual
deles não é? Sabemos que todos os mandatários escolhem ministros que lhes convêm,
mas eu nunca tinha visto algo tão descaradamente parcial. A laicidade do Estado
é uma das maiores garantias de liberdade que nós gozamos nas democracias, e a
cara com a qual o processo todo está se desenrolando tem um bom cheiro de
feijão queimado.
Só que há um monte de confusões quando uma pessoa qualquer
chama a atenção desse detalhe, como estou fazendo agora. Por esta razão, e
porque muita gente não sabe exatamente o que significa esse conceito, vou
partir para a minha colaboração, respondendo o que ele é e o que ele não é.
O que é Estado?
Este é um daqueles casos em que a pessoas se confundem
quando precisam explicar do que se trata, de tão óbvio que parece. Mas é
preciso tomar um pouco de cuidado, porque misturamos aqui coisas diferentes,
como governo, nação e pátria. Isolando-o dos demais termos, Estado é uma
entidade abstrata que representa todo o conjunto organizacional de um
determinado país, de forma a organizá-lo administrativamente. Ou seja, uma sociedade,
uma vez existente, precisa de alguma forma de organização, onde se estabelecerá
a forma com a qual será governada, qual o escopo de suas leis, a maneira com a
qual a população participará da vida social, os padrões monetários e assim por
diante. Governo é outra coisa. Governo são as pessoas escolhidas para exercer a
administração do Estado, seja por meio de eleição, sucessão hereditária, tomada
de poder ou outro meio. Nação, por sua vez, designa uma população que se
agregou voluntariamente em um determinado território e que possui características
comuns, como a língua e a moeda. Por fim, pátria é a ligação afetiva com o
lugar onde se nasceu ou se adotou como o espaço por onde se desenvolverá a
vida. De todos os termos, é o menos tangível, porque está relacionado a
sentimentos.
O que é laicidade?
Já ouviu falar daquela frase “não junta lé com cré”? Ela vem
de uma comparação antiga, entre LEigos e CRÉrigos, no dizer popular. Não saber
juntar leigos com clérigos significa não saber diferenciá-los, mas a coisa é
bem simples. Leigos (ou laicos) são aqueles que não são versados ou iniciados
nas religiões, de forma a não serem sacerdotes válidos. A laicidade, portanto,
é a qualidade daquilo que está fora do contexto religioso, muito embora o
conceito de leigo signifique, em algumas religiões, todos aqueles que são
membros não investidos de uma comunidade.
Então, o que é Estado laico?
O Estado laico é aquele em que há uma clara separação entre
a organização político-administrativa e a Igreja, de modo que um não interfira
no outro. Nem a Igreja ditará regras e normas para o Estado, e nem o Estado
especificará como a Igreja deverá exercer seus cultos.
Como surge a ideia de um Estado laico?
Como acontece com as divisões de poderes, o Estado de
direito e a participação popular na gestão da coisa pública, a separação entre
Estado e Igreja vem da Revolução Francesa. É preciso lembrar que a França
pré-revolucionária era dividida entre três estamentos, sendo que o primeiro,
circunscrito ao clero, tinha uma fatia de poder tão poderosa quanto a dos
membros do segundo, os nobres. Essas duas camadas geralmente aliavam seus
interesses para dar as diretrizes aos governos de então, de forma a existir uma
intervenção marcante da Igreja sobre o Estado. Isso representava uma conformação
do Estado aos moldes de uma Igreja específica, o que excluía qualquer outra (ou
mesmo sua ausência) das esferas de poder.
Isso significa que o Estado laico é uma ideia moderna?
Mais ou menos. É bem verdade que a sua consagração veio com
o advento da Revolução Francesa e com o expressivo reforço da 1ª emenda da Constituição
dos Estados Unidos, mas há vários precursores da filosofia de não misturar
Estado e Igreja, um deles até bem conhecido, um tal de Jesus. Ele dizia que
deveria se dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (Mt 22, 21),
que seu reino não era deste mundo (Jo 18, 36) e ainda tratava de pagar seus
impostos (Mt 17, 24-27). Mas há autores medievais que já defendiam o abandono
do poder secular pelos membros do clero. Um deles é Marsílio de Pádua, cuja
obra Defensor Pacis (citada mais abaixo), ainda no século XIV, faz entender
que a doutrina de “plenitude de poder” dada aos papas era um engano gerador de
abusos. Como custodiantes das verdades divinas, os membros do clero deveriam se
afastar de objetos de corrupção, dos quais o poder secular dos reinos e
impérios eram prenhes. Seu prêmio foi ganhar um selo de herético na testa e com
ele conviver pelo resto dos seus dias, mas já fazia notar como o poder
eclesiástico fazia mal à sociedade quando interferia no poder secular. Marsílio
comparava um reino a um organismo físico, onde cada órgão exerce uma função
adequada a ele, e que não se presta a outra coisa além disso. Fora dessa
estrutura orgânica, a sociedade não funciona como deveria. Imagine, por
exemplo, um fígado no lugar do coração, uma glândula substituindo um músculo. Assim
são os clérigos – devem se ocupar das igrejas, e não dos governos.
Quer dizer que Estado laico é igual a Estado ateu?
Não. Esse é um dos maiores enganos a respeito do Estado
laico. A laicidade do Estado não significa que nenhuma religião será admitida
ao exercício da população, mas que ela terá plena liberdade religiosa, sem que
isso constitua nenhum óbice ao exercício de seus direitos. Um Estado ateu seria
aquele que proibiria o exercício de qualquer religião, como fizeram alguns
governos comunistas no século XX. A confusão se dá porque o Estado laico é uma
das poucas bandeiras que são erguidas por ateus e agnósticos em geral.
Então por que os ateus vivem defendendo o Estado laico?
Porque a liberdade religiosa inclui a “opção” de não adotar
religião alguma, e que a legislação não penderá para qualquer tipo de crença.
Coloco essa palavra entre aspas porque ninguém opta por ser religioso ou
não. A coisa acontece, muito simplesmente. Se vocês quiserem saber do meu
exemplo, aconselho à leitura deste
texto.
Não bastaria que o Estado não fosse teocrático?
Não bastaria. A teocracia é uma forma de governo em que o
núcleo do Estado fica sob administração de uma religião, que passa a transmitir
seus valores como únicos válidos e vigentes. Entretanto, é possível que um
governo leigo traga elementos religiosos para a vida social de toda a
população. Isso acontece quando, por exemplo, são invocados motivos de fundo
religioso para que um direito seja negado.
Se na cultura de uma população prepondera o elemento religioso,
qual a vantagem de se ter um Estado laico?
É bem verdade que todo o ordenamento de uma sociedade acaba
sofrendo influência das religiões que a compõe. Ocorre que, uma vez formatado,
esse “jeito de ser” se desprende do elemento religioso e vai fazer parte do
sentido comum que conduz a população. Vejam como muitos dos mandamentos
cristãos fazem parte do corpus legislativo de nosso país: não roubar,
não matar, cuidar dos desvalidos e assim por diante. Ocorre que, se você
retirar a religião e não colocar nada em seu lugar, hoje em dia esses valores
serão mantidos da mesma forma, porque já se encontram arraigados em nosso meio.
O mesmo não pode se dizer sobre a questão da castidade. Como diz respeito à
individualidade da pessoa, e não do mecanismo social, exigir pureza sexual dos
componentes sociais é uma intervenção injustificável.
E os candidatos afiliados a uma religião? Deveriam ser
vetados?
Não a princípio, mas os mesmos não deveriam usar o mote da
religião para buscarem ser eleitos. Isso porque, quando alguém vai fazer parte
do governo em um Estado laico, não será representante unicamente da camada
populacional que o elegeu, mas de toda a população. A lei que um legislador
propuser que estiver calcada em sua convicção religiosa atingirá uma parte da
população que não compartilha da mesma convicção, podendo até mesmo prejudicá-la.
A questão mais óbvia que temos hoje em dia diz respeito ao casamento entre
pessoas do mesmo sexo. A proibição deste ato visaria dar satisfação aos eleitores
do político religioso meramente no sentido moral, porque os mesmos não
adquirirão nenhum benefício, enquanto as pessoas atingidas verão seus direitos
sofrerem um retrocesso.
Mas a democracia não é uma ditadura da maioria?
Não, isso é falacioso.
E repito: a maioria vota por representantes que devem zelar não somente pelos
direitos de seus eleitos, mas da população inteira. A pretensa ditadura da
maioria é aplicável à escolha dos representantes em si, e não na ausência de
representação para as minorias. Já pensou que bonitinho se a maioria escolhesse
representantes que fossem contrários ao direito de propriedade? Você não
gostaria de ter seu direito mantido mesmo sendo integrante da minoria dos
proprietários?
E todo o aparato religioso já arraigado no dia-a-dia,
deve ser extinto?
Aí é que está. Há coisas como feriados e nomes de
logradouros que, de fato, ferem o Estado laico, mas sejamos francos: quando
você fala que vai a São Paulo está pensando no santo barbudo com uma espada na
mão e uma epístola na outra? Não, né? São coisas culturalmente marcadas e que,
de certo modo, já perderam o sentido original. A cidade de São Paulo está
pouquíssimo vinculada à personagem bíblica São Paulo. Isso significa que, na
ordem de prioridades para um Estado legitimamente laico, há coisas que são
muito mais importantes. Fere muito mais a laicidade do Estado os cultos realizados
nas casas legislativas e nos tribunais, a adoção de ensino religioso específico
nas escolas públicas e os contenciosos entre criacionismo
e evolucionismo que ameaçam dividir as aulas de Ciências do que um “deus
seja louvado” em um dinheiro qualquer. Além disso, também aqui há uma
participação do aparato cultural, já que exigir a extinção de feriados
importantes como o Natal ou a Páscoa mexem com as tradições sociais. E um
feriadinho é sempre bom, não é mesmo?
Dizem que o Estado laico é causa para uma sociedade cada
vez mais secular. Laicidade e secularismo são a mesma coisa?
Não. A laicidade é a garantia de que o Estado não interferirá
na religiosidade das pessoas, enquanto a secularização diz respeito a um
movimento de redução de importância das religiões nos mecanismos sociais. Vou
dar um exemplo bem fácil de secularização. Quando eu era pequeno e começava a
me sentir com uma pontinha de febre, minha mãe me levava até a casa da dona
Luzia benzedeira, que “tirava quebranto”. Hoje, meus filhos darão aos meus
netos quinze gotas de paracetamol. Isso é porque o Estado é laico? Não, mas
porque o meio científico dispõe de artefatos mais rápidos e seguros do que
aqueles movidos pela fé, e, com isso, o mundo vai paulatinamente deslocando
funções do meio religioso para outras fontes de conhecimento.
Os defensores do Estado laico parecem sempre voltar seus
canhões contra os evangélicos, mais do que contra qualquer outra camada. Por
que isso acontece?
Porque estamos no Brasil e aqui o fenômeno evangélico tem
algumas características que lhe tornam peculiares: um alto nível de
engajamento, uma fé quase cega em seus pastores e uma participação política
inexistente em outras religiões. É claro que quem mais aparece mais serve de
vidraça. Os evangélicos não têm nenhuma vergonha em se mostrar como tais. E
vamos combinar que há certas lideranças extremamente barulhentas, fazendo o
fenômeno da grita parecer maior do que verdadeiramente é.
Por que você digitou a palavra Estado com a inicial
maiúscula por todo este texto?
São especificidades da língua portuguesa. Quando queremos
exprimir este termo como uma instituição, mandam os bons Cegallas e Cerejas que
utilizemos a inicial maiúscula. As minúsculas caberão para os casos de divisões
territoriais, para dar um exemplo.
Se alguém achar justo que eu tente responder mais alguma dessas
perguntas, não se faça de rogado e escreva-a nos comentários. Espero ter sido
útil neste momento complicado da nossa existência tupiniquim.
Recomendação de leitura:
Conforme dito na pergunta adequada, segue a indicação da
obra de Marsílio de Pádua, que precisou ser mais corajoso do que nós porque laicidade
de Estado não era coisa que se conhecesse em sua época, nem de passagem.
MARSÍLIO (de Pádua). O Defensor da Paz. São Paulo:
Vozes, 1997.
Olá. Cheguei ao seu blog há alguns meses. Gostaria de parabenizá-lo pela qualidade das postagens. Tenho grande interesse por Filosofia (cheguei a cursar por quatro semestres, mas tive que abandonar) e seus textos ajudam a compreender melhor esse ramo do conhecimento (gostei muito da postagem sobre os ídolos de Francis Bacon).
ResponderExcluirQuanto ao tema da laicidade do Estado, concordo com todos os pontos, mas achei especialmente importante você alertar que é falacioso considerar a democracia como "a ditadura da maioria" e mencionar o incômodo que é a estridência de algumas lideranças evangélicas.
Enfim, mais uma vez congratulações pelo atividade blogueira, sobretudo por estar tanto tempo nessa empreitada internética.
Um abraço.
Olá, Halem. Muito obrigado por cada uma de seus palavras. Seja sempre bem-vindo a este espaço.
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