Olá!
Vou tentar ser rápido. Há muito tempo eu não faço um texto ao correr da pena. Mas o momento exige.
Quando eu era pouco mais do que um menino, eu tinha sonhos
de fazer uma banda e sair pelo mundo tocando minhas mazelas e sandices. A
primeira parte eu consegui, pelo exato tempo que levei para concluir que eu
precisava ganhar a vida, e fui burocratizar minha história em um escritório de
contabilidade. Mas mesmo assim são passagens importantes da minha história, não
só no aspecto artístico, como já pincelei aqui,
aqui
e aqui,
mas de experiência mesmo, como se verá mais adiante. Para isso, vou dar
detalhes de dois momentos em que a música passou para um plano secundário em minha
efêmera carreira.
Tropa de Choque foi o nome de minha segunda banda, uma
agremiação do pós-punk alla Camisa de
Vênus, mais dedicada a covers do que a composições próprias. Queríamos colocar
Boca de Lobo, mas já havia um comboio com esse mesmo nome e mesma proposta
circulando por aí, daí acatamos a sugestão de alguém, nem lembro mais quem. O
projeto nasceu em uma tarde de sol de um domingo desses, através do contato de
um colega de colégio, o Marcos (aka
Argentino, numa coincidência temática apenas ocasional). A ideia da banda nem
nasceu na hora. Veio um pouco de tempo depois, quando um amigo de lá do bairro
queria uma banda de suporte para participar de um festival. A coisa não deu lá
muito certo, mas foi o suficiente para tentarmos a sorte.
Fomos juntando repertório e aperfeiçoando a técnica cada vez
mais, e ficando famosinhos naquele quarteirão da Vila Santa Clara, até o ponto
de começarmos a arriscar uns barzinhos, o que nos exigiu dar uma, digamos,
modificada em alguns documentos, pelo fato de sermos menores de idade, todos.
Mas cinco moleques que mal faziam a barba conseguiam negociar com pais e donos
de bares para tocar a incipiente carreira? Claro que não. É nesse ponto que
entra a figura do Calola.
E quem esse cara? Um rapaz bem mais velho que a gente, muito
do boa pinta, que vivia em trajes sofisticados, como se fosse um advogado. Era
raro vê-lo de jeans e camiseta. É aquele típico cidadão que passa confiança em
uma primeira vista, e se tornou uma espécie de empresário da emergente banda,
conseguindo uma rede cada vez mais ampla de lugares para desfiarmos nossas
cordas.
Se fosse só isso, nada de mais, como diria o peru na porta
do forno. Ocorre que o Calola foi uma espécie de catequista para uma nova
religião: as famosas substâncias. No começo, uma paranguinha fina, para todo
mundo fazer cachimbo da paz no meio dos ensaios sem chances de perdas totais.
Depois, uma perigosa habitualidade, que se tornava mais perigosa ainda naqueles
tempos de repressão mais pesada. A história chegou ao ponto de não nos reunirmos
mais para ensaiar, mas para marolar. A coisa chegou no meu limite quando nosso
papa Calola veio com uns papelotes estranhos, cheios de um negócio que não era
verde, nem feitos para fumar. Ele dizia que era melhor de usar nas entradas dos
shows, para dar uma “liberada nos instintos”, nos dizeres dele.
Eu sempre fui muito cagão para essas coisas, então achei que
era o momento exato de pular fora, o que fiz. De fato, já andava meio
indisposto com os demais colegas. Queria partir para um estilo mais maduro, e
trabalhar com composições próprias, o que foi acontecer mais tarde, com o
Exílio e o Mosaico. Fui franco com os motivos e não fui lá tão bem entendido,
mas no fim das contas não ficou muito ranço pra trás, apenas o aprendizado de
que as coisas não podem ser sempre baseadas em uma solidariedade a um messias
que nos promete o paraíso. O tal Calola foi o único que quis um pouco mais de
satisfações com relação ao meu pedido de conta, mas nada de cano na cabeça ou
dramas de folhetins.
Anos depois, já mais estabelecido e trabalhando com minhas
cançõezinhas próprias na retrocitada Exílio, fui dar um socorro para uma galera
que tentava iniciar sua vida artística. Novamente eram companheiros de escola, com
um nome bem mais thrash: Sentença de
Fogo. O dono da bola era bem cheio de grana, filho de empresário que era, e
tinha todos os equipamentos necessários para alegrar o coração dos pobres
músicos desvalidos, que compravam microfones a prestação. Bons amplificadores,
espaço à vontade e um baixo Rickenbacker 4001 que era absolutamente
inalcançável para alguém da minha laia. Entretanto, meu papel lá era outro –
fazer vocal e bateria enquanto eles não conseguissem nomes ideais para as duas
tarefas. Uma delas era para o irmão mais novo, com o bulímico apelido de Porco,
que estava tentando dominar seu ímpeto nos tambores, e a outra foi se
espalhando por vários candidatos (modéstia a parte, todos piores que eu). Com
isso, fui ficando, ficando e ficando. Coelho na guitarra e Tio no baixo eram
bons músicos, e estavam em franca evolução, e às vezes eu tinha até um pouco de
vontade de permanecer, embora não quisesse ficar tocando covers de bandas de
heavy metal a vida inteira. Como eu já contei, meu barato era outro.
Entretanto, um belo dia apareceu aquele pacotinho que eu já
tinha visto nas mãos do pregresso Calola. Ali, não havia riscos, a não ser do
pai dos meninos descer com uma peia em nossas costas. Só que eu cocei o piolho
na hora, relembrando os dias nem tão longínquos de Tropa de Choque e concluí
que, para mim, já tinha dado. Desta vez, aleguei que o Porco (o tal irmão mais
novo) tinha que começar a tocar junto com a galera, senão nunca pegaria noção
de grupo. E quanto aos vocais, não seria difícil de conseguir, bastando sair da
acomodação de ter alguém fazendo a dupla função. Eles ficaram entre tristes e
putos, mas sério... meu instinto de conservação e bunda volumosa – ainda bem –
não deixaram eu prosseguir naquela casa. Melhor voltar para o velho Exílio,
onde as drogas mais pesadas eram a cafeína e a nicotina, consumidas aos
borbotões*.
Contei essas duas histórias apenas para lembrar como várias
vezes tangenciamos a questão da drogadição ao longo de nossas vidas. E eu só
mencionei dois exemplos que foram bem marcantes, porque esses momentos
ocorreram incontáveis vezes, às vezes até mesmo em uma inocente
viagem. Vamos esbarrando no tema em cada esquina, cada bar, cada faculdade,
cada show, cada jogo. E há quem consiga se desviar, há quem não.
No dia de ontem, 25/11 do ano da graça de 2020, morreu Diego
Armando Maradona, que nasceu pobre e em condições precárias, em uma favela de
Buenos Aires, até ser reconhecido como um dos maiores jogadores de todos os
tempos. Aliás, essa dúvida só não ocorre no Brasil, onde Pelé é o rei, e na
Argentina, onde Maradona é Deus, com “D” maiúsculo. Como sua morte é
recentíssima, a internet está apinhada de material sobre o craque. Mesmo assim,
senti-me motivado a falar sobre seu passamento por dois motivos.
O primeiro foi logo que recebei a notícia. Estava em meu
home office enfadonhamente costumeiro e minha filha mais nova sentada lá perto,
vasculhando o mundo através de seu celular. Ela mesma falou: “Ixe, o Maradona
morreu”. Minha reação foi uma esperada
surpresa e ligar a televisão – velho tem dessas coisas. Caiu em uma entrevista
ao Casagrande, um dos meus jogadores favoritos da juventude. Ele estava
verdadeiramente consternado, por um motivo muito humano: menos que o jogador, é
o adicto que falou. “A morte de um dependente químico como o Maradona é a morte
de todo dependente químico”, ele falou. Esse foi o principal insight que me
levou a escrever este texto.
Mas não é só. O segundo motivo é que eu sou apaixonado por
futebol, que acho uma das melhores ferramentas para falar sobre Filosofia,
como espelho da vida que é. Usei tantas vezes o esporte bretão como referência
neste espaço que daria um belo compêndio. Para quem se interessar, fiz uma
listinha incompleta lá no fim deste texto.
Eu nunca fui um fã incondicional do Maradona, dado o fato de
ser argentino, o que é uma grande bobagem que hoje eu recordo com vergonha. É
um dos maiores gênios do futebol que a humanidade já viu, mas, ao contrário de
Pelé, Messi, Zico ou Zidane, foi um tremendo vida torta. Sempre se envolveu em rematadas
polêmicas e cansou de fazer bobagens. E é exatamente isso que lhe dá todo o
encantamento. Enquanto os jogadores que eu citei formam a beleza dentro do
campo, Maradona é um cara que ia para além disso. Ele está na mesma prateleira
de esportistas como Nelson Piquet e sua relação tempestuosa com a imprensa, ou
como Sócrates e seu engajamento político, ou ainda como Mike Tyson e sua
perigosa relação com a criminalidade. São mais que atletas, são personagens que
moldaram um modo de ver o mundo que suplanta aquela imagem do herói perfeito,
apolíneo. São, antes disso, cada um a seu modo, descendentes de Dionísio, com o
amor pelo anticonvencional. Eu resumo a coisa da seguinte forma: jamais
gostaria de ter Maradona como genro, mas sua biografia é certamente muito mais
interessante de ler do que qualquer um dos perfeitos. Sua vida não é só uma
história; é um romance, cheio de percalços.
Por conta disso, Maradona era um daqueles anti-heróis tão
caros à filosofia nitzscheana do amor
fati, alguém que se apegou tanto à própria vida que acabou morto por
ela. Uma vítima da tragédia grega que é a vida vivida em intensidade maior do
que a mesma pode suportar. É aquilo que chamaríamos de louco, mas o que é um
louco? Erasmo
de Roterdã já utilizou da ironia para definir a loucura como indefinível, e
Nietzsche, em sua obra Aurora, sugere-nos
como temos o direito a ser loucos, porque é a moral ditada pelos donos do poder
que arbitra o que é sanidade. E, ainda que de forma inconsequente, a felicidade
é pessoal:
“Ao indivíduo, à
medida que procura sua felicidade, não se deve dar nenhum preceito sobre o
caminho que leva à felicidade: pois a felicidade individual brota segundo suas
próprias leis, ignoradas por todos, de modo que só pode ser bloqueado e detido
por preceitos que vêm de fora - os preceitos a que chamamos 'morais' são na
verdade dirigidos contra os indivíduos e não desejam de modo algum sua
felicidade”.
É exatamente quando entendemos que os preceitos que nos apontam focam a uma conformidade que vem de cima que podemos entrar em perigo. Eu corri os riscos que Maradona assumiu, e isso ocorreu, como eu disse, a cada instante. Como não sei bem o que é a loucura (e de resto ninguém sabe), poderia hoje estar no seu mesmíssimo papel, no ponto pequeno do meu universo. Quem mais não é assim?
Maradona foi um louco, na medida em que viveu sua vida
louca, e não podemos julgar se sua loucura é pior ou melhor que as nossas
próprias. Mas podemos guardar a imagem da luz que se apaga sobre uma camisa dez
da Argentina que será infinita, porque a arte dele já tinha sido a nós entregue
e estão inscritas nos nossos cânones e memórias, ainda que não desejemos sua
trajetória para nós mesmos. Sua arte é legado para o futebol; sua história
trágica, para a humanidade.
Não consegui evitar a verve sentimentalóide, mas eu já sou um “jovem” senhor, que viveu o auge da carreira de Dom Diego Armando exatamente no auge da minha própria vida. Não chorei, mas fiquei de fato mexido, como fiquei na morte do Raul Seixas, do Lemmy, do Garrincha e de tantos outros. Peço minhas desculpas. Bons ventos a todos e vida eterna à memória do Pibe de Oro.
Recomendações:
A referência para a obra menciona de Nietzsche é a seguinte:
NIETSZCHE, Friedrich. Aurora.
São Paulo: Escala, 2013.
Coletâneas de jogos e gols de Maradona são encontradas às
pilhas na internet. Talvez seja mais interessante entender seu caráter
complicado através da carreira errática de treinador. Há uma boa série de
documentários disponível na Netflix para ver esse seu lado menos conhecido.
MCQUEEN, Angus. Maradona
no México. Documentário. Episódios entre 26 – 39 minutos. Cor. Los Gatos (EUA):
Netflix, 2019.
* Voltei a dar minhas voltas com o mundo dos tóxicos em
minha passagem pelo Mosaico, mas essa história eu já contei em um dos textos
indicados neste post.
Sobre
goleadas e a dialética que explica os vexames no futebol
Pequeno
guia das grandes falácias - 12º tomo - A afirmação do consequente
País
do futebol: o que precisamos avaliar para saber se isso é ou não uma verdade
A
Portuguesa e a tragédia grega posta em prática - Até quando há de brilhar a
cruz dos teus brasões?
Sobre
couraças psicológicas e pênaltis mal batidos
Tá,
só não saquei bem o que é essa tal de (18 – Filosofia da Linguagem)
Tentativa
simples de explicar a metodologia científica com o uso do futebol
E tantos outros...
Nenhum comentário:
Postar um comentário