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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Maradona e velho problema de esbarrar na loucura a cada instante

Olá!

Vou tentar ser rápido. Há muito tempo eu não faço um texto ao correr da pena. Mas o momento exige.

Quando eu era pouco mais do que um menino, eu tinha sonhos de fazer uma banda e sair pelo mundo tocando minhas mazelas e sandices. A primeira parte eu consegui, pelo exato tempo que levei para concluir que eu precisava ganhar a vida, e fui burocratizar minha história em um escritório de contabilidade. Mas mesmo assim são passagens importantes da minha história, não só no aspecto artístico, como já pincelei aqui, aqui e aqui, mas de experiência mesmo, como se verá mais adiante. Para isso, vou dar detalhes de dois momentos em que a música passou para um plano secundário em minha efêmera carreira.

Tropa de Choque foi o nome de minha segunda banda, uma agremiação do pós-punk alla Camisa de Vênus, mais dedicada a covers do que a composições próprias. Queríamos colocar Boca de Lobo, mas já havia um comboio com esse mesmo nome e mesma proposta circulando por aí, daí acatamos a sugestão de alguém, nem lembro mais quem. O projeto nasceu em uma tarde de sol de um domingo desses, através do contato de um colega de colégio, o Marcos (aka Argentino, numa coincidência temática apenas ocasional). A ideia da banda nem nasceu na hora. Veio um pouco de tempo depois, quando um amigo de lá do bairro queria uma banda de suporte para participar de um festival. A coisa não deu lá muito certo, mas foi o suficiente para tentarmos a sorte.

Fomos juntando repertório e aperfeiçoando a técnica cada vez mais, e ficando famosinhos naquele quarteirão da Vila Santa Clara, até o ponto de começarmos a arriscar uns barzinhos, o que nos exigiu dar uma, digamos, modificada em alguns documentos, pelo fato de sermos menores de idade, todos. Mas cinco moleques que mal faziam a barba conseguiam negociar com pais e donos de bares para tocar a incipiente carreira? Claro que não. É nesse ponto que entra a figura do Calola.

E quem esse cara? Um rapaz bem mais velho que a gente, muito do boa pinta, que vivia em trajes sofisticados, como se fosse um advogado. Era raro vê-lo de jeans e camiseta. É aquele típico cidadão que passa confiança em uma primeira vista, e se tornou uma espécie de empresário da emergente banda, conseguindo uma rede cada vez mais ampla de lugares para desfiarmos nossas cordas.

Se fosse só isso, nada de mais, como diria o peru na porta do forno. Ocorre que o Calola foi uma espécie de catequista para uma nova religião: as famosas substâncias. No começo, uma paranguinha fina, para todo mundo fazer cachimbo da paz no meio dos ensaios sem chances de perdas totais. Depois, uma perigosa habitualidade, que se tornava mais perigosa ainda naqueles tempos de repressão mais pesada. A história chegou ao ponto de não nos reunirmos mais para ensaiar, mas para marolar. A coisa chegou no meu limite quando nosso papa Calola veio com uns papelotes estranhos, cheios de um negócio que não era verde, nem feitos para fumar. Ele dizia que era melhor de usar nas entradas dos shows, para dar uma “liberada nos instintos”, nos dizeres dele.

Eu sempre fui muito cagão para essas coisas, então achei que era o momento exato de pular fora, o que fiz. De fato, já andava meio indisposto com os demais colegas. Queria partir para um estilo mais maduro, e trabalhar com composições próprias, o que foi acontecer mais tarde, com o Exílio e o Mosaico. Fui franco com os motivos e não fui lá tão bem entendido, mas no fim das contas não ficou muito ranço pra trás, apenas o aprendizado de que as coisas não podem ser sempre baseadas em uma solidariedade a um messias que nos promete o paraíso. O tal Calola foi o único que quis um pouco mais de satisfações com relação ao meu pedido de conta, mas nada de cano na cabeça ou dramas de folhetins.

Anos depois, já mais estabelecido e trabalhando com minhas cançõezinhas próprias na retrocitada Exílio, fui dar um socorro para uma galera que tentava iniciar sua vida artística. Novamente eram companheiros de escola, com um nome bem mais thrash: Sentença de Fogo. O dono da bola era bem cheio de grana, filho de empresário que era, e tinha todos os equipamentos necessários para alegrar o coração dos pobres músicos desvalidos, que compravam microfones a prestação. Bons amplificadores, espaço à vontade e um baixo Rickenbacker 4001 que era absolutamente inalcançável para alguém da minha laia. Entretanto, meu papel lá era outro – fazer vocal e bateria enquanto eles não conseguissem nomes ideais para as duas tarefas. Uma delas era para o irmão mais novo, com o bulímico apelido de Porco, que estava tentando dominar seu ímpeto nos tambores, e a outra foi se espalhando por vários candidatos (modéstia a parte, todos piores que eu). Com isso, fui ficando, ficando e ficando. Coelho na guitarra e Tio no baixo eram bons músicos, e estavam em franca evolução, e às vezes eu tinha até um pouco de vontade de permanecer, embora não quisesse ficar tocando covers de bandas de heavy metal a vida inteira. Como eu já contei, meu barato era outro.

Entretanto, um belo dia apareceu aquele pacotinho que eu já tinha visto nas mãos do pregresso Calola. Ali, não havia riscos, a não ser do pai dos meninos descer com uma peia em nossas costas. Só que eu cocei o piolho na hora, relembrando os dias nem tão longínquos de Tropa de Choque e concluí que, para mim, já tinha dado. Desta vez, aleguei que o Porco (o tal irmão mais novo) tinha que começar a tocar junto com a galera, senão nunca pegaria noção de grupo. E quanto aos vocais, não seria difícil de conseguir, bastando sair da acomodação de ter alguém fazendo a dupla função. Eles ficaram entre tristes e putos, mas sério... meu instinto de conservação e bunda volumosa – ainda bem – não deixaram eu prosseguir naquela casa. Melhor voltar para o velho Exílio, onde as drogas mais pesadas eram a cafeína e a nicotina, consumidas aos borbotões*.

Contei essas duas histórias apenas para lembrar como várias vezes tangenciamos a questão da drogadição ao longo de nossas vidas. E eu só mencionei dois exemplos que foram bem marcantes, porque esses momentos ocorreram incontáveis vezes, às vezes até mesmo em uma inocente viagem. Vamos esbarrando no tema em cada esquina, cada bar, cada faculdade, cada show, cada jogo. E há quem consiga se desviar, há quem não.

No dia de ontem, 25/11 do ano da graça de 2020, morreu Diego Armando Maradona, que nasceu pobre e em condições precárias, em uma favela de Buenos Aires, até ser reconhecido como um dos maiores jogadores de todos os tempos. Aliás, essa dúvida só não ocorre no Brasil, onde Pelé é o rei, e na Argentina, onde Maradona é Deus, com “D” maiúsculo. Como sua morte é recentíssima, a internet está apinhada de material sobre o craque. Mesmo assim, senti-me motivado a falar sobre seu passamento por dois motivos.

O primeiro foi logo que recebei a notícia. Estava em meu home office enfadonhamente costumeiro e minha filha mais nova sentada lá perto, vasculhando o mundo através de seu celular. Ela mesma falou: “Ixe, o Maradona morreu”.  Minha reação foi uma esperada surpresa e ligar a televisão – velho tem dessas coisas. Caiu em uma entrevista ao Casagrande, um dos meus jogadores favoritos da juventude. Ele estava verdadeiramente consternado, por um motivo muito humano: menos que o jogador, é o adicto que falou. “A morte de um dependente químico como o Maradona é a morte de todo dependente químico”, ele falou. Esse foi o principal insight que me levou a escrever este texto.

Mas não é só. O segundo motivo é que eu sou apaixonado por futebol, que acho uma das melhores ferramentas para falar sobre Filosofia, como espelho da vida que é. Usei tantas vezes o esporte bretão como referência neste espaço que daria um belo compêndio. Para quem se interessar, fiz uma listinha incompleta lá no fim deste texto.

Eu nunca fui um fã incondicional do Maradona, dado o fato de ser argentino, o que é uma grande bobagem que hoje eu recordo com vergonha. É um dos maiores gênios do futebol que a humanidade já viu, mas, ao contrário de Pelé, Messi, Zico ou Zidane, foi um tremendo vida torta. Sempre se envolveu em rematadas polêmicas e cansou de fazer bobagens. E é exatamente isso que lhe dá todo o encantamento. Enquanto os jogadores que eu citei formam a beleza dentro do campo, Maradona é um cara que ia para além disso. Ele está na mesma prateleira de esportistas como Nelson Piquet e sua relação tempestuosa com a imprensa, ou como Sócrates e seu engajamento político, ou ainda como Mike Tyson e sua perigosa relação com a criminalidade. São mais que atletas, são personagens que moldaram um modo de ver o mundo que suplanta aquela imagem do herói perfeito, apolíneo. São, antes disso, cada um a seu modo, descendentes de Dionísio, com o amor pelo anticonvencional. Eu resumo a coisa da seguinte forma: jamais gostaria de ter Maradona como genro, mas sua biografia é certamente muito mais interessante de ler do que qualquer um dos perfeitos. Sua vida não é só uma história; é um romance, cheio de percalços.

Por conta disso, Maradona era um daqueles anti-heróis tão caros à filosofia nitzscheana do amor fati, alguém que se apegou tanto à própria vida que acabou morto por ela. Uma vítima da tragédia grega que é a vida vivida em intensidade maior do que a mesma pode suportar. É aquilo que chamaríamos de louco, mas o que é um louco? Erasmo de Roterdã já utilizou da ironia para definir a loucura como indefinível, e Nietzsche, em sua obra Aurora, sugere-nos como temos o direito a ser loucos, porque é a moral ditada pelos donos do poder que arbitra o que é sanidade. E, ainda que de forma inconsequente, a felicidade é pessoal:

“Ao indivíduo, à medida que procura sua felicidade, não se deve dar nenhum preceito sobre o caminho que leva à felicidade: pois a felicidade individual brota segundo suas próprias leis, ignoradas por todos, de modo que só pode ser bloqueado e detido por preceitos que vêm de fora - os preceitos a que chamamos 'morais' são na verdade dirigidos contra os indivíduos e não desejam de modo algum sua felicidade”.

É exatamente quando entendemos que os preceitos que nos apontam focam a uma conformidade que vem de cima que podemos entrar em perigo. Eu corri os riscos que Maradona assumiu, e isso ocorreu, como eu disse, a cada instante. Como não sei bem o que é a loucura (e de resto ninguém sabe), poderia hoje estar no seu mesmíssimo papel, no ponto pequeno do meu universo. Quem mais não é assim?

Maradona foi um louco, na medida em que viveu sua vida louca, e não podemos julgar se sua loucura é pior ou melhor que as nossas próprias. Mas podemos guardar a imagem da luz que se apaga sobre uma camisa dez da Argentina que será infinita, porque a arte dele já tinha sido a nós entregue e estão inscritas nos nossos cânones e memórias, ainda que não desejemos sua trajetória para nós mesmos. Sua arte é legado para o futebol; sua história trágica, para a humanidade.


Não consegui evitar a verve sentimentalóide, mas eu já sou um “jovem” senhor, que viveu o auge da carreira de Dom Diego Armando exatamente no auge da minha própria vida. Não chorei, mas fiquei de fato mexido, como fiquei na morte do Raul Seixas, do Lemmy, do Garrincha e de tantos outros. Peço minhas desculpas. Bons ventos a todos e vida eterna à memória do Pibe de Oro.

Recomendações:

A referência para a obra menciona de Nietzsche é a seguinte:

NIETSZCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Escala, 2013.

Coletâneas de jogos e gols de Maradona são encontradas às pilhas na internet. Talvez seja mais interessante entender seu caráter complicado através da carreira errática de treinador. Há uma boa série de documentários disponível na Netflix para ver esse seu lado menos conhecido.

MCQUEEN, Angus. Maradona no México. Documentário. Episódios entre 26 – 39 minutos. Cor. Los Gatos (EUA): Netflix, 2019.

* Voltei a dar minhas voltas com o mundo dos tóxicos em minha passagem pelo Mosaico, mas essa história eu já contei em um dos textos indicados neste post.

Sobre goleadas e a dialética que explica os vexames no futebol

Pequeno guia das grandes falácias - 12º tomo - A afirmação do consequente

País do futebol: o que precisamos avaliar para saber se isso é ou não uma verdade

A Portuguesa e a tragédia grega posta em prática - Até quando há de brilhar a cruz dos teus brasões?

Sobre couraças psicológicas e pênaltis mal batidos

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (18 – Filosofia da Linguagem)

O comportamento de manada explica porque temos tanta dificuldade em pensar por nós mesmos (Pequeno Guia das Grandes Falácias – 44º tomo: o Bandwagon, ou Argumentum ad judicium [Apelo à maioria])

Navegações de cabotagem – Um campinho de futebol em Pedro de Toledo e a pergunta que perturba: nós existimos de fato ou somos frutos de alguma percepção?

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 10ª mirada (2ª parte): o distrito de Luís Carlos evocando os princípios e leis da Gestalt

Inferências diversas como matéria-prima para a metodologia científica, ou tempos de saber melhor como funciona a Ciência

Tentativa simples de explicar a metodologia científica com o uso do futebol

E tantos outros...

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