Marcadores

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Navegações de cabotagem - o Parque Bacacheri de Curitiba e as calçadas que sempre deveriam trazer seu balé

(Um parque, antes de mais nada, deve ser uma extensão das calçadas que o rodeiam, e não um mero agregador de valor econômico) 

“As cidades são lugares absolutamente concretos. Ao tentar entender seu desempenho, as boas informações vêm da observação do que ocorre no plano palpável e concreto, e não no plano metafísico” - Jane Jacobs

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

São Paulo e Curitiba são grandes metrópoles, isso é o óbvio. Claro que mencionando meros números, a terra da garoa é mais impressionante, porque aqui o patamar está elevado para o nível mundial. Mas Curitiba não pode ser chamada de aldeia. Muitas coisas são semelhantes entre ambas, com as características típicas e problemas também típicos de quem reúne tanta gente em um espaço limitado. Mas também muita coisa as diferencia, e é isso que dá graça à coisa.

Uma delas sem dúvida se dá na maneira em como Curitiba lida com a questão do verde. Muitos dos parques de SP são praças cercadas, e os verdadeiros são poucos, como o Ibirapuera, o Villalobos e judiado Parque da Luz, enquanto em CWB eles estão mais espalhados e mais presentes na vida dos transeuntes, aquela coisa de fazer parte do caminho diário mesmo. Não por acaso. São Paulo tem um índice de áreas verdes de aproximadamente 16 m2 por habitante. Na Cidade Sorriso, esse mesmo número é de quase 65 m2. Um banho que não tem como fugir à percepção.

Isso acontece porque os parques curitibanos estão no meio do caminho das pessoas, como é o caso do Parque Bacacheri, localizado no bairro de mesmo nome, que é onde meu rebento mais velho habita.

O parque nasceu de um lago que ficava situado em um baixio do Rio Barigui, que formava, há um bom tempo atrás, prainhas onde a população vinha tomar seus banhos.


O nome Bacacheri, pensa-se, vem do tupi-guarani e significa "vaca que escorrega", numa história desconhecida que é possível supor: um belo dia uma vaca descuidada levou um belo tombo e foi parar no fundo do lago, e algum índio espirituoso resolveu apelidar o local com o fato.


Aqui tem o que se espera de mais básico em um parque que não tem atrativos extraordinários, mas que se mistura à vizinhança que lhe cerca. Pistas de caminhada, quiosques, mata preservada e fontes de água.


Há socós, garças e galinhas d'água…

... além de outros bichos que não conheço, que pousam em bandos na reserva nativa, composta essencialmente de árvores de grande porte.


Como eu disse, não há nada de tão distintivo no Parque Bacacheri, a não ser sua integração com o bairro onde se situa, com a proximidade ao Museu Egípcio e os prédios que lhe cercam. Há uma importância que vai para além do lazer: o tanque serve como contenção para a época da cheia, evitando que a região sofra com enchentes.

A existência de um parque desses é o principal contraste que eu vejo entre São Paulo e Curitiba. Não há parques no “meio do caminho” em SP. Um parque não é um caminho pelo qual alguém passa para chegar a algum lugar, salvo raríssimas exceções. O Bacacheri é usado pelo meu moleque não só para levar a cachorra-linguiça para passear, o que é uma das funções modernas de um parque, mas para chegar ao seu serviço, para ir ao mercado. Se formos a uma dita cidade planejada, como é Brasília, as diferenças são ainda mais radicais, com um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar.

Esse papo, tão caro e tão aplicável aos modernos personal organizers, é a premissa fundamental dos adeptos da ordem. O urbanismo dos meados do século XX, que assistiu à explosão das grandes cidades, via na ordenação dos espaços a solução para a expansão das metrópoles, seja na criação dos novos espaços, seja na revitalização dos antigos.

Pensemos novamente em Brasília, mais especificamente no Plano Piloto. Sempre que queremos exemplificar o planejamento urbano, este é um ótimo referencial. Quem observa um mapa viário da cidade, com seu formato de aeronave, percebe o quão poucas são as curvas. Estas são transferidas para parte dos prédios arquitetados por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. A cidade é toda dividida em setores, cada um com sua especialização. As compras são feitas em um lugar, as moradias são em outro, a Esplanada dos Ministérios serve só para isso, com pouco comércio funcional ao redor - bares e restaurantes, por exemplo. Em termos de organização, parece perfeito.

Isso garante uma cidade funcional? A cidade segue os ditames mais modernos da época, especialmente a Carta de Atenas, do célebre arquiteto suíço Le Corbusier. Lá, está descrita a funcionalidade como o principal propósito de uma cidade. Cada problema deve ter descrito para si uma solução clara e eficaz. Isso incluía um primado da setorização, onde as variedades de propósitos e a densidade demográfica seriam minimizados.

Bem… não sei Brasília, mas o fato é que em São Paulo muita coisa não funciona, especialmente no Centro. A principal modificação trazida a partir da década de 50 foi o despovoamento, justamente em região tão bem provida de todos os demais recursos. O afastamento dos contingentes habitacionais não foi somente visto com naturalidade, mas mesmo com incentivo.

Encontro eco nas palavras de Jane Jacobs, jornalista e ativista urbana estadunidense. Quando viu seu Village novaiorquino sofrendo intervenções de cunho radical, trazendo a visão modernista de implantação de grandes avenidas, mergulhou em uma campanha que acabou por impedir a desnaturação do bairro.

Ela preconiza dois termos que se tornarão autênticos motes de campanha para as propostas urbanas no Brasil bem tardiamente, quase quarenta anos depois da edição de sua primeira obra: os olhos nas ruas e o balé da calçada. Isso porque somente no ano 2000 a mesma foi traduzida em Terra Brasilis, e políticos das mais variadas vertentes passaram a tê-la como referência de cabeceira. É preciso compreender que ela entende haver uma organicidade imperceptível na cidade, que nada mais é do que uma ordem natural nas ações, que faz com que haja uma presença permanente de pessoas. Esse balé a que ela se refere não é uma dança no sentido artístico, mas que mesmo assim guarda um aspecto estético de alternância de papéis sociais. Não se trata de um fundo metafísico, mas uma mecânica que é própria do convívio obrigatório das cidades, representado pelas calçadas, o local por excelência onde o homem "natural" urbano, o cidadão, transita. E enquanto há balé, há olhos também. As pessoas se veem, se cruzam, se relacionam, se protegem mutuamente.

Diante dessa maneira de ver as coisas, passo a compará-la com minha própria experiência. Quando eu era criança um pouco mais taludinha, morava na Vila Diva, um bairro operário. Ele vinha à vida logo cedo, porque era preciso que o proletariado se encaminhasse às fábricas, algumas na própria rua, outras bastante distantes. Eu ouvia o Seo Otávio ligando seu táxi para esquentar, sentia o cheiro da padaria do Seo Gaspar, escutava o portão enferrujado do cortiço em frente de casa, em um entra-e-sai que começava ainda no lusco-fusco e ia assim até o escurecer. No alto da rua, era possível escutar o Seo Américo, eternamente mal humorado, rolando as portas da venda para receber suas mercadorias avulsas. Eram pessoas que já iam de macacões, pessoas que voltavam com sacos de pão e leite, alguns poucos com um jornal, muita molecada de avental indo para a escola, alguns com as mães, outros já sozinhos. Bom dia, dona Júlia; bom dia dona Nair.

Mude-se o foco para uma rua adjacente à Praça da Sé. Durante o dia o movimento é intenso. Pessoas circulam de um lado para o outro, namorando as vitrines, puxando carrinhos de frascos, disputando o espaço do leito carroçável com os carros e as motos. Ao cair da noite, a rua se desertifica como tem acontecido com a Amazônia. Por mais que o ambiente diurno não inspire confiança, agora o risco quintuplica. Tem gente morando em três prédios: um no começo da rua e dois no meio. Seus movimentos não são suficientes para trazer vida noturna à rua, que só se mantém habitável por conta da base policial que fica em um dos seus extremos. Se esta sair, acaba a segurança.

Qual é a principal diferença entre as duas ruas, e mesmo da rua do Centro no dia e na noite? O pressuposto inconsciente de que não se está sozinho em momentos de adversidade, no que Jacobs resume na palavra confiança. São as pequenas redes de relacionamento fortuito que levam olhos para a rua, que fazem com que a confiança das pessoas as retirem de uma atitude meramente passiva diante do perigo. É essa a maneira ideal de manter a segurança de um certo logradouro. A segurança dada pela polícia é absolutamente necessária, mas não pode ser considerada uma normalidade em termos civilizatórios. Uma rua tranquila porque está policiada significa que ela foi tomada pela barbárie, e que as pessoas perderam a confiança natural do convívio. Esse é o defeito da minha rua, especialmente à noite, e que não existia na antiga Vila Diva. Aquela constância matutina se repetia à noite, tanto no movimento de retorno, quanto na presença das crianças nas ruas para brincar, nos homens que iam tomar suas talagadas, nas mulheres que se sentavam nos banquinhos para fazer seu WhatsApp analógico. Não se trata de saudosismo, mas da constatação de que a vida moderna, com seus imensos prós, tem também os seus contras.

A cidade não é primordialmente prédios e carros, mas relações sociais. Grandes avenidas e setorização de atividades eliminam todo o aparente caos que é, na verdade, a vibração das atividades de pessoas que são muito diversas entre si, e que tem interesses muito diferentes, que procuram por residências adequadas a seus orçamentos e conveniências, e que tem necessidades e possibilidades únicas. Somente essa calçada viva denuncia que uma rua reflete sua autêntica função.

Com os parques, a coisa funciona da mesma forma. Podemos dizer que eles cumprem sua função não apenas olhando para o que acontece dentro dele, mas em suas cercanias. Um parque cercado por monotonia reflete a mesma em si, ou se estiver em área degradada, trará essa degradação para dentro de si. A diversidade física funcional adjacente vai, mais dia, menos dia, transportar-se para seu interior. As calçadas internas de um parque também são calçadas.

Jacobs demonstra o engano que há em se transfigurar uma cidade em uma peça funcional quando se dá um desvirtuamento de seus propósitos, e o faz pelo próprio exemplo do parque:

“(...) não há por que levar os parques onde as pessoas estão se, ao fazê-lo, as razões que motivam as pessoas a estar lá forem eliminadas e o parque tornar-se um substituto para elas. Esse é um dos erros fundamentais dos projetos de conjuntos residenciais e centros administrativos e culturais. Os parques urbanos não conseguem de maneira alguma substituir a diversidade urbana plena. Os que têm sucesso nunca funcionam como barreira ou obstáculo ao funcionamento complexo da cidade que os rodeia. Ao contrário, ajudam a alinhavar as atividades vizinhas diversificadas, proporcionando-lhes um local de confluência agradável; ao mesmo tempo, somam-se à diversidade como um elemento novo e valorizado e prestam um serviço ao entorno (...)” 

Talvez tenhamos aí o diferencial curitibano, de ter seus parques mais integrados à cidade. Há aqui outros parques mais espetaculares, mas é a existência desses pequenos lugarejos realmente inseridos na vida social que lhes dá o verdadeiro sentido que um equipamento público deve ter. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

A primeira e mais importante obra de Jane Jacobs pode ter muitos pontos críticos, mas, em geral, remove todo o ranço tecnicista de quem vê a cidade como algo que tem funcionar antes de ser sede de convívio.

JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

E este é o endereço do Parque Bacacheri:

Parque General Iberê de Matos (Bacacheri)
Rua Paulo Naldony, nº 136
Bacacheri
Curitiba/PR
A aproximadamente 400km do centro de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário