(Deixa te contar um segredo: você tem vieses cognitivos. Não acha? Então leia)
Olá!
Eu tenho uma cisma com o número seis há anos, muitos anos.
Houve um tempo em que era neura mesmo, mas depois passou a ser só um incômodo.
Todas as vezes que alguma coisa redundava neste número, saía da minha cabeça
uma espécie de esconjuro, como se o pobre fosse amaldiçoado. “É só um número,
uma entidade puramente abstrata que não quer dizer nada desencaixado de um
contexto”, tentava eu refletir. Contudo, dificilmente eu deixava qualquer coisa
se compor em conjuntos de seis, e ficava com um incômodo transtorno quando
precisava me conformar em pegar meia dúzia de bananas.
Apesar do tom jocoso, a coisa ficou meio séria, afetando
coisas que não deveria. Meus dois filhos teriam nomes de seis letras, mas
dobrei um L de um e meti um H no fim do outro e contornei a questão. Não foi
nada que tenha tornado seus nomes esdrúxulos, cheio de consoantes sem propósito
(certo, Dhiennipher?), e até ficaram mais próximos dos ancestrais, mas traz
algum transtorno para eles, que precisam ficar chamando atenção para cadastros
em geral, adicionando isso, colocando aquilo. Não bastasse o sobrenome complicado
para a língua mãe, esse sim chatíssimo de explicar.
Ora (direis), não és tu alguém que se diz racional, que
alega não tomar parte em superstições, que diz crer na primazia da lógica? Como
maculaste até o nome de teus filhos em função de uma crendice inexplicável?
Bem, a resposta não é tão simples. Temos tantas implicações
mentais que se devem a motivos que parecem não guardar nenhuma relação entre
si, que nem Freud explica. Sempre é possível tentar explicações, mas é difícil
cravar na mosca.
O caso do 6. Na nossa cultura cristã, há um múltiplo famoso
dele, que é o 666. No Apocalipse, esse número é atribuído à besta, o terror dos
evangélicos. Etimologicamente, é uma palavra que não tem nada demais, já que
significa meramente “animal selvagem”, só que, na escatologia cristã, ganha
outro significado, muito mais soturno. Em um primeiro momento, parece ser uma
personificação do diabo, mas uma leitura mais cuidadosa faz perceber que se
trata de instrumento do capiroto para dar cabo da cristandade. Seria alguma
coisa a quem todos iriam reverenciar (quem reverenciaria um monstro de dez
cabeças é o ponto) e que teriam uma de suas marcas, sendo o triplo seis um
deles. O porquê desse número é uma coisa que nunca se chegou a um consenso,
dada a linguagem completamente alegórica com o qual foi redigido o texto. Com
tanto simbolismo, é daqueles casos em que qualquer malabarismo é possível para
encaixá-lo a um desafeto qualquer. Já se disse que era o Império Romano, que
era especificamente o imperador Nero, que é a Igreja Católica, que é um certo
papa ou a própria instituição do papado, que é o comunismo e tantas outras construções.
Uma delas, extremamente simplista, chamou-me a atenção na já longínqua década
de 80. Dizia respeito ao então presidente estadunidense Reagan. Seu nome
completo era Ronald Wilson Reagan - seis letras no primeiro nome, seis no
intermediário, seis no sobrenome: meia-meia-meia. Era quase risível, mas fazia
sentido para quem não gostava do canastrão.
Eu já contei aqui
que eu era um habitué das igrejas desta metrópole da vertigem, e, naturalmente,
ouvi muitas homilias e li um bocado a respeito, embora seja verdade que o
Catolicismo não se prenda tão fortemente quanto as diferentes denominações
evangélicas às ações do Pero Botelho. Pode ser que o tal número maldito tenha
me influenciado a pegar esse ranço com o pobre e vazio de significado número 6?
Pode, mas é estranho que ainda hoje, já afastado da fé, o número ainda me
perturbe, a ponto de não deixar nunca o malvado seis para o final quando quero
resolver um sudoku. Parece coisa de bobo. Não é.
Nenhum de nós está imune a distúrbios psicológicos, sem que
isso significa que sejamos loucos (o que, aliás, é
muito difícil de definir). Dizem até que todos nós deveríamos manter algum
tipo de psicoterapia, no que eu, na minha opinião de leigo, discordo. Não
porque não acredite nos profissionais da área psi, ou que ache terapia
uma frescura, mas porque certos tipos de desvios são normais. Isso mesmo,
normais. Vejamos o exemplo dos vieses.
Se você for meu leitor, já terá percebido que escrevi muitos
textos a respeito deles, como o viés de confirmação,
o viés de positividade,
os vieses de pesquisa,
as diversas heurísticas,
as dissonâncias
cognitivas e outros tantos. Os vieses existem não porque sejam alguma forma
de loucura, mas porque somos humanos. Vieses são úteis para a própria
sobrevivência. Quando eu vejo confirmada alguma coisa que eu penso, em um
momento onde é necessária uma solução rápida, tenho uma vantagem biológica.
Idem quando estranho um fato que não coaduna com minha cognição. Não são
defeitos mentais, mas propensões que temos como espécie.
Acontece que os vieses são úteis em sua urgência, quase que
como instintos, e, a partir do momento em que não necessitamos mais de rapidez
de decisão, devemos sobrepô-los, com outra característica inerente aos caniços
pensantes: o raciocínio. Ser racional significa ter balizas por onde a lógica
opere. Só que uma pequena coisa é necessária para isso - o seu reconhecimento.
E nem sempre isso acontece.
Vamos lá pensar. Digamos que eu conte uma piada homofóbica,
e você retruque com outra. Eu posso alegar que, no meu caso, é só uma
brincadeira, uma babaquice momentânea, mas que você de fato é homofóbico. Isso
acontece porque, para mim mesmo, posso verificar os sentimentos que me movem,
enquanto para você só consigo enxergar o comportamento. Pode ser que seja real
que eu faça a piadinha apenas para enturmar, e não tenha verdadeiros
sentimentos de homofobia, mas eu não tenho essa informação do meu interlocutor,
só sei que ele adere à homofobia explícita.
Eu já tratei sobre este tema neste espaço, mais
especificamente aqui.
É um fenômeno psíquico conhecido como assimetria ator/observador, e ela
ajuda a explicar porque temos diferenças nos julgamentos que fazemos de nós
mesmos e dos outros. Disso deriva outro viés cognitivo, que é o viés do
ponto cego, um erro sistêmico do pensamento que impede que reconheçamos em
nós mesmos os vieses que conseguimos observar no outro.
O que é um ponto cego? Nossa retina, que fica lá no fundo do
olho, é encarregada de receber a luz e as imagens que captamos do mundo
exterior. Para além dela, estão os receptores que conduzem os estímulos visuais
aos nervos óticos, e daí por diante a coisa é com o cérebro. Entretanto, a
maneira como isso é feito não é uniforme, e há alguns pontos onde não há
células fotorreceptoras suficientes para decodificar o estímulo vindo de fora.
Isso é uma condição natural e é suprimida por um macete que o cérebro faz,
juntando a visão que vem do outro olho e de extensões dos objetos ao redor, em
processo semelhante ao que acontece com fenômenos descritos pela
Gestalt. Mas certos acometimentos oculares, como o glaucoma e a
degeneração macular, podem fazer com que alguém tenha “buracos” tão grandes que
passam a ser perceptíveis no campo visual.
Esse termo acabou se alastrando para situações do dia-a-dia.
Quem dirige sabe bem, porque existem duas circunstâncias que podem levar esse
nome. Quando estamos guiando por uma rua qualquer, temos uma visão frontal dada
pelo para-brisas, que é o nosso principal meio de controle, e também temos os
espelhos retrovisores, que permitem que tenhamos noção dos fatos que acontecem
atrás de nós, além de uma boa parte dos acontecimentos laterais. Com isso
podemos trafegar com razoável segurança entre as faixas. Acontece que
eventualmente ocorre de levarmos uma bela buzinada (emendada por palavras de
baixo calão) de um motoqueiro ao tentar fazer a conversão. Não se trata de desatenção,
mas de uma falha no aparato visual disponível no automóvel, que não consegue
focar cem por cento da área visual necessária ao desempenho seguro da direção.
O cachorro louco em questão estava situado exatamente em um dos pontos em que a
mera visualização não seria suficiente para detectar sua presença. Outro
exemplo de ponto cego são os picos de elevação ou curvas feitas próximas a
barrancos. São situações em que a visão prolongada que normalmente temos no
plano e nas retas fica prejudicada pela posição do veículo em relação ao
relevo. No aclive, nosso ponto de visada está mais para o céu do que para o
chão, e nas curvas o morro tampa os pontos futuros. Sendo assim, corremos a
arriscada situação de perceber perigos apenas muito em cima da hora, o que demanda
cuidados extras. Portanto, ponto cego é uma situação tal em que não nos damos
conta de algo que deveríamos.
A instância psicológica do ponto cego pode ser resumida, por equivalência, a uma cegueira com relação aos vieses, aos erros de pensamento, às modificações das memórias e tantos outros caracteres mentais. Um determinado fenômeno que vemos ocorrer em outrem é irreconhecível para nós mesmos, como se atingisse exatamente aquele ponto cego do retrovisor, onde existe algo que não sabemos existir. Melhor dizendo - sabemos que existe nos outros, mas não em nós.
É um exercício a se fazer para saber se nós mesmos não somos
vítimas deste viés. Imagine, por exemplo, que você vá ao mercado com seu
cônjuge. Todas as compras que você faz são feitas para o bom funcionamento do
lar, enquanto o do(a) parceiro(a) inclui uma boa dose de exageros, não é
verdade? Podemos ter aqui um belo viés que você não reconhece. A não ser que
sua situação esteja muito apertada ou que seja rematado muquirana, o fato é que
você também compra coisas que o companheiro acharia desnecessárias. É o efeito
ator/observador agindo sem que você perceba.
Outro exemplo: você é corintiano e concorda com tudo o que o
Chico Lang fala, acha que por trás de sua crítica bandeirosa está um fundamento
bem ponderado e racional. Você acha ainda que seu coleguinha palmeirense
deveria se envergonhar das análises tendenciosas e pseudossofisticadas do Mauro
Beting? Pois é… os dois são afetados pelo viés de confirmação, mas se você só
percebe isso no adversário, tenho a má notícia, além de ser vítima do mesmo
viés, você ainda sofre com o ponto cego.
Há armadilhas em não se reconhecer vieses. Se nós conhecemos
uma propensão em termos doenças cardíacas, evitaremos comidas gordurosas,
faremos exercícios e procuraremos o médico com regularidade. Se sabemos que uma
rua é perigosa, evitaremos passar por ela à noite, ou o faremos sempre em
companhia. Quando não sabemos nada disso, de repente nos vemos na arapuca, em
um belo enfarte ou caindo nas garras do malandro. Por que seria diferente com
os vieses? Se eu entendo que estou sujeito a eles, tenho como me defender, seja
antecipadamente, seja a posteriori. Evitar vieses de seleção, por exemplo, fará
com que minhas pesquisas fiquem mais confiáveis. Lidar bem com vieses de disponibilidade
me fará ser mais cuidadoso em minhas compras, e compreender o viés de
confirmação pode ser até saudável para reforçar nossas convicções.
O grande problema de não reconhecer vieses é que nos
tornamos mais vulneráveis a eles. Há inúmeras situações em que é necessário que
façamos julgamentos os mais isentos possíveis, e ser tendencioso em um momento
desses é tudo o que não precisamos. Se nos consideramos autossuficientes a
ponto de dispensar as observações alheias ou, pior ainda, não reconhecer que
podemos ter nosso pensamento dirigido por nossos vieses, estaremos fazendo o
exato oposto do que manda as regras do pensamento crítico. Por mais que nossos
conjuntos de valores sejam preciosos, é preciso estar com a autocrítica em dia
para perceber quando eles nos conduzem a pensamentos errados, especialmente na
prepotência de achar que os problemas estão sempre nos outros.
Pensando filosoficamente, perguntamo-nos o que é a mente, o
que é um erro e porque este último pode ocorrer na primeira. Em apertadíssima
síntese, podemos dizer que um erro é uma quebra de uma expectativa de realidade
e que a mente é o mecanismo com o qual um organismo processa o mundo que o
cerca. Sendo assim, nosso fluxo de percepções espera receber o mundo de uma
determinada forma, que, uma vez cumprida, determina a perfeição. Sendo que o conjunto
da humanidade é composto por indivíduos, tendemos a realizar esse fluxo de
maneira ainda mais natural para nós mesmos. Só que a nuvem que parece algodão é
nuvem, e não algodão. Com isso, temos que o erro está na própria porta de
entrada dos sentidos, e que é processado pela mente como se fosse o que não é.
Daí por diante, tudo se torna imperfeito, mesmo que vejamos as coisas muito
mais belas do que efetivamente são, muito mais corretas, muito mais
concertadas, e isso ocorre com todos, mesmo com aqueles que dizem que o algodão,
na verdade, é água evaporada.
A chave de ouro é: não existe nada perfeito no universo.
Nada. E isso inclui nossa capacidade de nos autoperceber. Os vieses não são
fáceis de notar porque a) atentam contra nossa prepotência; b) atuam
inconscientemente e c) como são mais fáceis de aceitar nos outros, aperfeiçoam
nossa condição de cereja do bolo. Mas, lamento, cerejas também são comidas, e
eu, você e todos os seres humanos seguimos vieses. Não notar isso já é um viés,
como pudemos notar. O melhor é saber conviver com eles. Bons ventos a todos!
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