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segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Quatrocentos: a Filosofia serve como consolação?

(De grão em grão, a galinha filosofal enche o papo. Já são quatrocentos textos que redijo por aqui. Perguntam meus poucos leitores: isso me consola? Não sei. Vamos ver)

Olá!

Este é meu texto de número quatrocentos neste blog, e como eu já havia prometido há alguns anos, sempre que fosse tempo de efemérides eu iria filosofar especificamente sobre minha escrita, o que me influencia e leva a redigir da forma como redijo. E, desta vez, vou unir um pouco do que me perguntam com as coisas que me motivam.


Antes e rapidamente, uma estatística bem pontual. Em 138 meses de existência deste humilde espaço, são quatrocentos textos publicados. Isso dá uma média de quase três textos ao mês, e a cada dois anos e nove meses eu tenho uma efeméride como a que eu agora comemoro, o que não está nada mal, no final das contas. É óbvio que há meses extremamente produtivos, onde eu gerei meu pico de nove textos, no ainda pandêmico dezembro de 2021, como há meses em que nem uma linha sequer foi traçada, o que não ocorre desde novembro de 2016. Bom… vamos ao que interessa.

Para que escrever tanto, notadamente sobre Filosofia? Uma das perguntas mais permanentes sobre essa área é sobre sua utilidade. De fato, não dá para desqualificar a filosofia como conhecimento, mas tenho que concordar que a vida tem suas necessidades pragmáticas, e isso colide com a ideia de se assentar por quatro anos em um bacharelado abordando a área. Quando eu estava estagiando, essa foi uma colocação para a classe, que ficou bem dividida. Obviamente há alunos que estão apenas com o corpo presente em aula, mas levando em conta aqueles que têm algum mínimo de interesse, a posição adotada sempre foi muito em função das perspectivas de vida de cada um: os pretendentes a humanas viam belíssimas funções para a coruja de Minerva, enquanto os direcionados para exatas e aplicações práticas achavam uma inútil caceteação. Inclusive havia a divergência entre mim e o professor Arnaldo, meu tutor. Talvez empolgado pela próxima formação, eu achava imprescindível ter noção sobre o substrato do conhecimento para poder transmiti-lo, enquanto o mestre, já tarimbado, alinhava-se aos que não viam utilidade na Filosofia, por entender que o conhecimento por si só já era uma justificativa. Utilidade seria uma função acessória, dispensável no caso.

Só que há uma boa quantidade de contradição nessa pergunta. Se hoje falamos sobre pragmatismo, é porque alguém pensou no pragmatismo, uma atividade filosófica, não é? E, no final das contas, inutilidades geram utilidades. Um jogo de futebol, em si, não tem mais valor do que uma prática de lazer, tão inútil quanto qualquer filosofia. Entretanto, é uma cadeia de valor gigantesca que gira em torno da pelada com mania de grandeza: mercado de jogadores, artigos futebolísticos, praças esportivas, direitos de transmissão, elaboração de contratos, ortopedia, imprensa especializada, e assim muito por diante. O cerne tem utilidade discutível, seja lá o que isso signifique, mas tudo o que gira ao redor tem utilidade prática para lá de consolidada. Idem, portanto, com a Filosofia. Olhada sob um viés fragmentado, de fato não muda muita coisa saber que o ser é e o não-ser não é, mas se pensarmos que é por aí que nasce o questionamento para se chegar na origem de qualquer problema, talvez devamos reconhecer que ela está na pergunta da origem do universo, do mundo, da vida.

Eu teria sempre o argumento de que ensinar Filosofia já é, por si só, um motivo e uma utilidade. Entretanto, manter uma atividade como a minha precisa de propósitos diferentes, já desvinculados do objetivo letivo. Eu não escrevo mais para propor temas aos alunos, mas para propor questionamentos (e algumas tentativas de respostas) a quem se interessar e, como fim último, dar a mim mesmo satisfação pessoal. Não é um belo motivo?

Acontece que o fenômeno do viés de confirmação faz com que acolhamos assertivas e opiniões com as quais já tenhamos concordância, que confirmem o que julgamos conhecer. Quando ocorre de soltar algum texto mais polêmico, como o que escrevi exatamente a cem posts atrás, a reação é mais aguda, do tipo "você acha que a filosofia pode substituir deus na sua vida?". Não acho, simplesmente porque são coisas diferentes. Mas essa categoria de pergunta deixa transparecer uma posição: de que precisamos de algum tipo de sentido e, in extremis, de consolação para nossa existência incerta. Para o quê? Para o fato de nos reconhecermos finitos, provavelmente.

Só que há enganos nesse tipo de pensamento. Primeiro, que deus e filosofia não são irreconciliáveis, como tão bem provaram Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Boécio. E, depois, que a filosofia não tem objetivo de consolar, de confortar, de autoajudar. A Filosofia é outra coisa.

Quando o pensamento filosófico nasce, já possui em si um espírito de desvelar o que estava por trás da realidade, sem importar se o que estava lá era bom ou ruim. Alguns dos mais renomados pré-socráticos viam divindades nos mecanismos de constituição da natureza, e algumas delas eram más, como o intercâmbio entre amor e ódio de Empédocles, e isso não importava, não consolava, não trazia conformação, mas uma visão que o filósofo julgava ser a mais adequada para explicar o universo.

Quem estuda filosofia para encontrar sentidos positivos na vida ou razões para existir, entrou no boteco errado, porque ela não trabalha com esse produto. Eu sei que certos termos induzem a pessoa a fazer confusão. Quando alguém pergunta qual é a sua filosofia de vida, está usando uma figura de linguagem, que se mistura com objetivos, e não filosofia de fato. Filosofia, aqui, é tratada como alegoria para fundamento, para base, para substrato, como o alicerce que dá a vida um sentido, o que é falso. Outros enquadram autoajuda como sistemas de pensamento, o que é uma evidente empulhação. Sistemas de pensamento ou sistemas filosóficos são grandes arranjos lógicos que buscam dar explicação para grande parte dos fenômenos intelectuais que permeiam a humanidade. Platão, Aristóteles, Kant e Hegel são alguns exemplos de pensadores que fizeram grandes encadeamentos de raciocínios para abordar metafísica, epistemologia, ética, estética, política e sociedade, sem discernimentos obrigatórios do que nos traz alegria ou tristeza. Autoajuda não é nada disso. É uma espécie de estimulante para cansados e muleta para inseguros, evitando temas polêmicos ou dolorosos. Filosofia, por outro lado, é verdade posta, natureza escancarada, realidade tal como ela é, mesmo que o filósofo esteja errado, mesmo que a tal verdade não seja possível. Ou seja, se eu tenho que ocultar algo, não é Filosofia.

Mesmo que eu procurasse respostas espinhosas, é ainda necessário ter em mente que filósofos não são imunes a erros e constatações que se demonstram furadas. Muito pelo contrário. Como a Filosofia não se apoia na prova, não tem os grandes experimentos científicos para lhe dar apoio; como não se refugia na fé, não tem uma divindade para lhe servir de ad hoc, e como além de tudo tem que se focar na lógica, não tem a liberdade da arte. Quadros de Dalí e sinfonias de Stockhausen não têm lugar nos meandros filosóficos. Os filósofos são muito bons para detectar as grandes questões e esmiuçar como elas se embaraçam, mas para desenroscar o fio nem sempre se mostram como os melhores proponentes. Marx descreveu lindamente como a história se movimenta pela luta de classes, mas o comunismo não se provou até hoje como a resposta. Kierkegaard narrou como a existência é escolha e angústia, mas sua solução parece a resposta de um padre. Adam Smith enxergou como o mercado se equilibra entre oferta e demanda, só que largado ao sabor do vento se demonstra como uma lavoura de miséria. Em resumo, as respostas da filosofia sempre são estimulantes do pensamento, mas não entregas prontas e acabadas.

Por essas e por outras é que, ao menos no meu caso, a filosofia não serve de consolação, como se fosse um substituto para deus. A não ser que possamos considerar que o conhecimento seja uma maneira válida de se passar os dias, e o saber possa ser considerado uma forma de suprir as ausências que inevitavelmente temos em nossas vidas.

Não digo isso com presunção. Eu sempre procuro dar boa base para as coisas que escrevo, e embora meus textos não sejam acadêmicos, com formatações ABNT e cobertura de fontes a cada letra, até porque quero dar certa leveza a temas áridos, vocês sempre poderão perceber nas indicações que há uma obra na qual os posts são calcados. Evidentemente não tenho todos eles na cabeça. Mas há fatos que acontecem na minha vida para os quais procuro inspiração no que aprendi de filosofia e correlatos. E às vezes vou buscar referências em compêndios mais simples. Nem só de Kant e Hegel a Filosofia viverá, mas de toda palavra que reserve alguma lógica e força especulativa.

E por que digo isso? Desde uns sete ou oito anos para cá, existe uma coleção chamada Grandes Ideias da Humanidade. Ela surgiu em terras ianques e fez sucesso por lá, e aqui nas terras do seo Cabral também acabou emplacando, embora tenham diminuído o formato para economizar no custo sem diminuir no preço. Cada um dos livros é dirigido para uma determinada pauta, e assim temos o Livro da Filosofia, da Política, da Sociologia, dos Negócios e assim por diante. De tempos em tempos, novos volumes são lançados, com novas áreas sendo abordadas, cada vez mais específicas. Todos os livros traçam uma linha temporal e vão costurando os diferentes autores com os principais fatos históricos. Até pouco tempo atrás eu tinha a coleção em dia, mas lançaram cinco novos títulos e eu não estou podendo dispender a grana todo em um só aviamento.

São livros feitos no capricho, há de se convir. Tem um bom projeto gráfico, o papel utilizado é de primeira linha, todos tem capa dura, várias ilustrações e os pesquisadores são eficientes, dificilmente deixando passar em branco algum autor ou ideia importante. É bem verdade que o tamanho reduzido dos últimos lançamentos torna um pouco mais difícil sua leitura por gente pouco privilegiada de visão, como é o caso deste escriba, mas ficam belos na estante e contém informação relevante.

Mas a grande questão: livros desse tipo, que contém informação enciclopédica, são de fato uma boa fonte para consulta?

A resposta é simples e, em parte, opinativa. Sim, são uma ótima fonte para consulta. Mas isso tudo nos termos corretos, que vou tentar destrinchar agora.

Essas enciclopédias trazem inúmeras referências que podem ser úteis. Imagine que se queira saber mais sobre um tema específico, digamos Epistemologia. Se você localizar qualquer autor que trate sobre o tema, conseguirá fazer inúmeros links sobre outros autores, até se conseguir formar uma visão um pouco mais ampla. Então Sócrates puxará Platão, que puxará Aristóteles, que puxará Descartes, que puxará Kant e assim até o término, formando um compêndio bastante razoável sobre Epistemologia. É quase a mesma coisa que faço, muito mais humildemente, neste espaço. Eu jamais poderei esgotar um assunto aqui, porque não é minha proposta e não tenho forças para tanto, mas há um encadeamento que procuro dar através de links e resumos de temas que espero serem instigantes o bastante para estimular, aí sim, a pesquisa mais aprofundada.

Entretanto, é preciso não cair na armadilha de se achar um intelectual apenas por ter esse tipo de livro na estante. O conhecimento que eles fornecem é superficial, uma espécie de guia para correr atrás de profundidade. Se, por exemplo, percebo que eu tendo a puxar sotaque todas as vezes que vou para uma cidade diferente da minha, e encontro uma referência sobre o assunto em um desses livros, ganho fontes para correr atrás. É um fenômeno chamado mere exposition, e que ocorre quando somos apresentados a determinados fatores ambientais que fazem com que adaptemos nossas condutas sem que percebamos. Não fosse a existência de um tópico desses na coleção, dificilmente eu o conheceria e procuraria em compêndios mais especializados. Esse é exatamente o caso de uma consulta a livros dessa coleção que redundou em uma consulta mais profunda e que terminou neste texto.

Volto ao cerne do texto. A questão de se sentir consolado pela filosofia é, na verdade, uma assertiva meio falsa. Não no sentido de se não ser possível encontrar no conhecimento uma causa para defender na vida ou para encontrar propostas para dúvidas que são angustiantes de fato. Mas isso não é um conforto para o fim, e sim um motivador para não se desesperar em uma vida sem sentido. Esses sentidos podem ser tremendamente simples, como já preconizavam os epicureus há mais de dois milênios atrás. Tudo pode ser motivo de prazer se não formos exigentes com o mundo que nos cerca. Por exemplo: as coisas que eu escrevo aqui hoje bastam por si mesmas. Se eu fosse criar expectativa por um número gigantesco de leituras, eu já teria procurado outra turma. Se eu fosse para o YouTube, teria que ter muito mais gasto e ocupação, e podendo atingir unicamente mais frustração. Se abrisse uma conta no Instagram, talvez houvesse mais gente percebendo minhas olheiras do que prestando atenção em que estou dizendo. Tudo isso poderia se tornar um grande peso se minhas expectativas forem muito altas.

Mas a vida ensina. A gente baixa o nível de expectativas e, com isso, sofre menos… Bom, aí já é estoicismo. E eu nem sei bem qual caminho ético é melhor, mas também não importa. O que é legal na história da filosofia é que você percebe que muita gente já se defrontou com os mesmos problemas que nós, e isso sim é um motivo de grande consolação, porque demonstra que somos muito parecidos nessa barca chamada humanidade. Alguém, em algum momento, já pensou nos mesmos dilemas que vivemos hoje. Ele coloca isso na pedra e tempos depois nos sentimos acolhidos por uma proposta de solução, que podemos guardar e aperfeiçoar, ou simplesmente aprender com ela. Todas as vezes que eu coloco um texto neste blog, tenho a esperança de que alguém venha aqui e ao menos se sinta induzido a saber mais, mesmo que seja para se opor. E isso, agora sim, me consola, porque me dá um lugar no mundo. Se (e somente se) isso serve de consolação, então a resposta se torna positiva. Bons ventos a todos e até a próxima efeméride, daqui a uns dois ou três anos. Mas continuem lendo os textos não redondos.

Recomendação de leitura:

Como eu já bem falei no corpo do texto, recomendo toda a coleção Grandes Ideias da Humanidade, da Editora Globo, sempre com o espírito de se ter o início do início em um determinado tema.

2 comentários:

  1. Parabéns por chegar à marca dos 400. E sentir-se motivado para continuar escrevendo.

    Também penso que "entrou no boteco errado" quem procura na filosofia uma forma de consolação.

    Não sei se é o caso, mas essa tentativa de preencher a vida com positividade via textos filosóficos me lembra aquele livro que até vendeu bem um tempo atrás, "Mais Platão, menos prozac" - e que me pareceu meio cascaqueteiro e ajudou a embalar a onda da chamada filosofia "clínica" (aliás, não sei se você já abordou esse tema aqui no seu blog; fica a sugestão). Um abraço.

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  2. Obrigado! Boa sugestão, já foi para a fila.

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