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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Nietzsche versus Sócrates na briga da razão contra o instinto

(A razão é o maior diferencial do ser humano, nossa maior virtude. Será?)

“Sócrates queria morrer. Não foi Atenas, mas ele quem deu para si o cálice com o veneno. Ele impeliu Atenas para o cálice com o veneno. ‘Sócrates não é nenhum médico’, falou ele silenciosamente para si mesmo: apenas a morte é aqui a médica. O próprio Sócrates só estava há muito doente” – Nietzsche

Olá!

Desde muitos anos atrás, a patroa cuida de idosos. Sua cliente mais notável era uma senhora de boas posses e maus bofes, que causava um bocado de desprazer na consorte com suas idiossincrasias. Não durou muito tempo. A tal senhora ganhou uma tabuleta no cemitério da Consolação, liberando a esposa do suplício e dos vencimentos. Há bens que vem para males, por conseguinte. Entretanto, viver em condomínio faz com que se tenha uma certa indiscrição, e os vizinhos ficam sabendo da sua vida. Um comentário aqui, uma choradinha lá, uma maledicência acolá e sua vida se torna o famoso livro aberto. A intencionalidade dos bairros de casas térreas é desnecessária aqui: basta que se esteja na cozinha para que as conversas sejam ouvidas. Sendo assim, mesmo sem que se contasse a ninguém, o prédio todo sabia da atividade da patroinha.

Isso veio a calhar quando a dona Madalena, decana da ordem religiosa que administra o prédio, partiu o osso da perna quando caiu de uma escada. O problema é que a dona Madalena em questão, apesar da aparência de vovozinha que frita bolinhos de chuva, é uma autêntica urtiga. Cabe aqui algumas explicações.

Dona Madalena tem hoje 90 anos, com a saúde correspondente à sua idade. Em priscas eras, era bedel de escola pública, o que justifica muita coisa. No prédio queria ter o mesmo espírito mandatório que tinha perante seus alunos, com um nível de tolerância muito baixo. Portanto, qualquer liquidificador desregulado era objeto de seus brados e ameaças de denúncia por atentado ao sossego condominial, não importando se o horário do incidente fosse às três da tarde. Idem com sua atuação na tal ordem. Qualquer escorregada fora dos preceitos era suficiente para seu prorromper furioso, cominando com o inferno um impenitente que comungasse ou uma mocinha que casasse de branco sem a reputação ilibada.

Essa conduta traz alguns efeitos indesejados. Se por um lado ela conseguia ver atendidas suas demandas, pelo simples fato de se evitar a chateação de suas imprecações, por outro nunca soube o que é fazer uma amizade. Compreende-se, dada sua implicância com as menores coisas, não fosse o fato de que ela é membro de uma ordem religiosa, que deveria amar seu próximo como a si mesma, mas, no momento do acidente retro citado, não se achou nenhum cristão para cuidar da indesejada senhora. Ora (direis), e seus parentes? Responderei: que parentes? Ela não casou, seus irmãos eram padres e freiras e não deixaram descendentes (conhecidos). Primos e outros afins ficaram espalhados pelo interior gaúcho, e nem se sabem reciprocamente de suas existências. O jeito foi apelar para aquela moradora que tinha prática em cuidar de idosos, a tal patroinha daquele gordo que vive andando com camisa de time para cima e para baixo. No caso, eu.

A resposta foi um sim mediante paga, porque não está fácil para ninguém, com a condição de desobrigar o turno noturno e monitoração remota, já que eram somente dois andares de distância. A experiência com a senhora opulenta tinha desgastado a esposa e não havia espaço para caridade no momento. Conta ela que a Dona Madalena apresentou suas credenciais logo no primeiro dia, no que coube reação: ou a senhora me respeita, ou eu viro as costas e daqui me vou agorinha! As coisas amainaram e foram bem até a plena recuperação da macróbia senhora. Hoje, mais de dez anos depois, a cara-metade continua cuidando dos eventuais perrengues dela, já sem cobrar nada, porque o estranhamento inicial acabou virando, agora sim, uma certa amizade.

Ao fim e ao cabo, tenho dó da Dona Madalena, e de todo mundo que hoje é solitário porque não cativou suas amizades em nome de um rigor autoaplicado por conta de noções de pecado e de premiação futura. Eles creem que todo esse sofrimento vale a pena, que estão sozinhos no mundo porque o mundo é fonte inesgotável de perdição e assim por diante, que melhor seria acabar tudo de uma vez e sermos colocados diante do tribunal divino para seja selado o destino de cada um. A noção que carregam de pecados é um fardo ainda mais pesado que os conceitos de finitude de um ateu, porque, para este, acabou e pronto, sem paraíso, mas sem inferno também. Já pessoas assim temem a morte a quem deveriam ansiar como alívio e passagem para a paz divina, porque não há certeza alguma do que é ação diabólica e do que pode causar a pena eterna.

Eu aqui, pequenininho, tenho esse tipo de percepção com relação a esses dualismos. Não sei se estou certo ou errado, somente posso colocar a coisa em termos de palpite. Se eu tiver que um dia me ver com deus, ver-me-ei, fazer o que? Explicarei a ele que houve um determinado momento em que não via motivos para crer em uma divindade, e parei de me cometer autoengano. Se ele for misericordioso como dizem que é, saberá compreender, e me destinará uma pena mais leve; se não, assumo a bronca e tento segurar a peteca. Vamos ver quando chegar a hora.

Mas minha opinião não é relevante para fins filosóficos. Há gente de porte graúdo (e muito) que pensou o dualismo e gente igualmente grande (e como) que o criticou. Falo de Sócrates, Platão e Nietzsche. Na esteira de meu último texto sobre o ateniense, achei importante fazer esses tipos de distinção.


Sócrates, além de todos os predicados que já discorremos neste blog, produziu outra novidade bastante significativa na Filosofia antiga. O método dialético socrático junta à essência do homem sua própria psiquê, porque é nela que ocorrem as ilusões de saber, e que a maiêutica consegue provar como falsas. Os processos dialógicos tão caros a Sócrates eram maneiras de se fazer exames da alma. A sequência de questionamentos fazia aflorar uma confissão de ignorância, que, no fundo, levantavam perguntas sobre as mais arraigadas convicções, religiões inclusas. Por isso, ele era essencialmente um filósofo ético, mais do que gnosiológico.

Esse novo estatuto da alma mais elevada na relação com o corpo conduziu a um pensamento que isolava radicalmente mundos físico e ideal. Como eu já disse anteriormente, é muito difícil discernir o que é propriamente socrático e o que é ideário próprio em Platão, mas é certo que o autoconhecimento, a declaração de ignorância e o jogo das respostas dialéticas influenciaram a maneira com a qual Platão desenvolveu sua forma de pensar. Ou seja, o que diz Platão sempre é socrático de alguma forma.

O que temos é que estes filósofos clássicos separavam o mundo da mesma forma que separavam os corpos das ideias. Havia um mundo perfeito, onde todos os objetos e ações tinham um modo paradigmático que era plasmado para o mundo que temos ao nosso redor. Aqui, temos todas as imperfeições possíveis de quem reproduz uma cópia. Por melhor que seja o pintor, algum tipo de diferença haverá com relação ao modelo ideal e, sendo que esse modelo ideal representa a imperfeição, a cópia é uma degeneração. Nada no mundo físico é melhor do que no mundo das ideias, atingível unicamente pelo intelecto, pela psiquê, pela alma.

Esse paradigma calçou perfeitamente o número do Cristianismo, que tão logo se viu livre das perseguições romanas, formalizou sua Filosofia a partir do pensamento socrático-platônico. A partir da Patrística, o mundo das ideias foi convolado em paraíso, o lugar onde Deus impera e onde tudo emana de seu intelecto, com a perfeição que lhe é atribuída. O nosso mundo físico, imperfeito, empobrecido, cúpido, hediondo, impróprio, é o lugar de expiação desde que a cópia de Deus, o homem, subverteu a perfeição de quem emanou.

A conclusão é de que o mundo em que vivemos não pode ser um objetivo em si mesmo, porque se distancia da perfeição vinda de Deus. Todo prazer sensório é transitivo e destinado ao fim, além de causar o mal maior de arraigar a própria existência do homem ao agarrá-lo ao mundo, e afastá-lo do objetivo ideal de ir ao encontro da divindade.

Sabendo que o Cristianismo é a principal religião mundial até os dias de hoje, e que continuamos dizendo que a principal diferenciação entre o ser humano e os demais animais é a capacidade racional, podemos dizer que este modelo socrático-platônico continua em plena prática, com a concordância de inúmeras vozes e cabeças. Mas há bastantes contestações também.

Nietzsche, o filósofo do martelo, é talvez aquele que tece as críticas mais ácidas e virulentas ao sistema socrático. Ele atribui ao grego a destruição do antigo espírito heroico, muito mais próximo à vida, transformando-a em doença. Lembremo-nos de que o alemão fundamentava sua visão de realidade em outro tipo de dualismo: o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da ordenação, da boa medida, da moderação e da expressão justa das coisas, ligado ao racional e ao lógico. Já Dioniso é o deus da criatividade, do caos, do êxtase, das paixões e do homem próximo à natureza, ligado ao instintivo e aos sentidos. É no equilíbrio entre as forças representadas por essas duas deidades que se desenvolve a vida tal qual foi criada, sintetizado na expressão da arte, especialmente da tragédia grega.

Nietzsche fala mal de Sócrates com gosto. Dizia ser baixinho, feio, corpulento, desagradável como figura, um sujeito doente. Atribui a ele a morte do espírito dionisíaco que permeava o pensamento grego de até então, aniquilando toda a porção mais próxima à existência e a relegando a um racionalismo permanentemente absurdo. A vida passa a ser castigo, e se opta por não mais vivê-la.

Nietzche tem uma visão de virtude que é completamente antagônica à de Sócrates e dos demais pensadores clássicos. Estes entendiam que a grande virtude do ser humano estava em se buscar uma racionalização permanente de tudo, para concluir que tudo no mundo estava errado, e isso explicava a insatisfação, o sofrimento, a discórdia. Tanto o Platonismo quanto o Cristianismo buscavam o afastamento do mundo por julgá-lo torto e inadequado, e viver era o principal problema filosófico a ser resolvido: como ser virtuoso em meio a um turbilhão de contingências.

Nietzsche dizia que, se há alguma coisa torta, é exatamente nessa maneira de pensar. Apolo e Dioniso representam forças opostas, mas ainda assim forças, que simplesmente são inevitáveis. Buscar como solução a supressão de uma delas é, além de inútil, uma bobagem. Como o alemão era meio doido, ele dava a solução de se atirar no turbilhão, e não fugir dele. Toda manifestação individual é tolhida pela força reativa da razão quando tentamos reprimir o dionisíaco que habita em nós. E por que força reativa? Porque ela reage em sentido contrário à ação espontânea de uma vontade. Digamos que eu queria dançar, ou cantar, ou trepar, ou encher a cara. A reação da minha razão será: não, é ridículo; não, eu não sei fazer; não, é pecado; não, faz mal. Toda racionalização é um brochante para a minha vontade de potência, a coisa mais autêntica que eu tenho em mim e que partilho com todos os demais seres humanos.

Essa vontade de potência é todo impulso vital que está contido em um ser humano. Tire-me a razão, e eu ainda terei meu instinto e minhas forças mais primevas, mais atávicas, mais próximas à natureza. É a vontade de potência que faz o mundo girar, e prendê-la dentro de um quartinho é descaracterizar o que temos de melhor.

Nietzsche entende que por trás disso tudo está uma moral dos fracos, que usa a única ferramenta que tem à sua disposição para justificar sua existência: uma retórica que anule as verdadeiras virtudes. Porque nada mais resta ao impotente do que declarar que a potência é um mal em si. Nada mais resta ao feio do que dizer que a beleza é decadente. Nada mais resta ao fraco do que afirmar que a força é imoral. Criar uma moral onde a fraqueza seja vista como real virtude é o ponto de conformação que foi criado com tanto sucesso por aqueles que nada tem de favorável à vida para oferecer – quantas vezes não ouvimos que o comedimento, a moderação, a temperança, a paciência são preferíveis àquilo que os impulsos vitais nos apontam para fazer?

Sócrates falava da razão como guia das condutas. Platão fala em um demiurgo que urdia o mundo sensível a partir do mundo ideal, e o Cristianismo colocou Deus na condição de imperador do mundo do além-vida. Segundo o bigodudo, entre eles só há a diferença de se mudar a divindade que está no posto maior. Um por outro, são todos ídolos. Diferentemente do sentido baconiano, que explicitei neste texto, aqui os ídolos são as imagens belas de forma, mas ocas de valor, que representam todos os modelos mentais que servem para escravizar a vida, para demover as forças vitais das pessoas e torná-las vazias de vontade.

Só resta a arte, diria Nietzsche. Só na arte ainda temos liberdade de produzirmos de acordo com o que efetivamente pensamos e queremos, e por isso ele dava tanta importância para a tragédia, porque o herói trágico não renegava seu próprio destino. A aceitação da vida como ela é deve ser vista com grande alegria. A vida é um pacote que traz consigo as alegrias e os infortúnios, e a arte é sua máxima expressão. Viver artisticamente é dar a máxima vazão à vontade de potência, martelando os ídolos e relegando os fracos que querem negá-la à sua própria insignificância.

Tudo isso segundo Nietzsche. Bons ventos a todos e bom 2022.

Recomendação de leitura:

O Caso Sócrates ou o Problema de Sócrates, de acordo com a tradução, está contido no livro abaixo recomendado:

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Ou Como Filosofar a Marteladas. São Paulo: Escala, s. d.

2 comentários:

  1. Então, segundo Nietzsche, Sócrates foi um grande estraga-prazer, hehe...Embora não seja um leitor constante do alemão bigodudo, sempre apreciei a maneira dele de ver a arte.

    Mais uma vez, ótima postagem. Um abraço.

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    1. Se fosse meu avô, diria que Sócrates era um empata-baile; já meu pai diria que é um empata-foda... hehehehe

      Obrigado pelo comentário

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