(A razão é o maior diferencial do ser humano, nossa maior virtude. Será?)
“Sócrates queria morrer. Não foi Atenas, mas ele quem deu para si o cálice com o veneno. Ele impeliu Atenas para o cálice com o veneno. ‘Sócrates não é nenhum médico’, falou ele silenciosamente para si mesmo: apenas a morte é aqui a médica. O próprio Sócrates só estava há muito doente” – Nietzsche
Olá!
Desde muitos anos atrás, a patroa cuida de idosos. Sua
cliente mais notável era uma senhora de boas posses e maus bofes, que causava
um bocado de desprazer na consorte com suas idiossincrasias. Não durou muito
tempo. A tal senhora ganhou uma tabuleta no cemitério da Consolação, liberando
a esposa do suplício e dos vencimentos. Há bens que vem para males, por
conseguinte. Entretanto, viver em condomínio faz com que se tenha uma certa
indiscrição, e os vizinhos ficam sabendo da sua vida. Um comentário aqui, uma
choradinha lá, uma maledicência acolá e sua vida se torna o famoso livro
aberto. A intencionalidade dos bairros de casas térreas é desnecessária aqui:
basta que se esteja na cozinha para que as conversas sejam ouvidas. Sendo
assim, mesmo sem que se contasse a ninguém, o prédio todo sabia da atividade da
patroinha.
Isso veio a calhar quando a dona Madalena, decana da ordem
religiosa que administra o prédio, partiu o osso da perna quando caiu de uma
escada. O problema é que a dona Madalena em questão, apesar da aparência de
vovozinha que frita bolinhos de chuva, é uma autêntica urtiga. Cabe aqui
algumas explicações.
Dona Madalena tem hoje 90 anos, com a saúde correspondente à
sua idade. Em priscas eras, era bedel de escola pública, o que justifica muita
coisa. No prédio queria ter o mesmo espírito mandatório que tinha perante seus
alunos, com um nível de tolerância muito baixo. Portanto, qualquer
liquidificador desregulado era objeto de seus brados e ameaças de denúncia por
atentado ao sossego condominial, não importando se o horário do incidente fosse
às três da tarde. Idem com sua atuação na tal ordem. Qualquer escorregada fora
dos preceitos era suficiente para seu prorromper furioso, cominando com o
inferno um impenitente que comungasse ou uma mocinha que casasse de branco sem
a reputação ilibada.
Essa conduta traz alguns efeitos indesejados. Se por um lado
ela conseguia ver atendidas suas demandas, pelo simples fato de se evitar a
chateação de suas imprecações, por outro nunca soube o que é fazer uma amizade.
Compreende-se, dada sua implicância com as menores coisas, não fosse o fato de
que ela é membro de uma ordem religiosa, que deveria amar seu próximo como a si
mesma, mas, no momento do acidente retro citado, não se achou nenhum cristão para
cuidar da indesejada senhora. Ora (direis), e seus parentes? Responderei: que
parentes? Ela não casou, seus irmãos eram padres e freiras e não deixaram
descendentes (conhecidos). Primos e outros afins ficaram espalhados pelo
interior gaúcho, e nem se sabem reciprocamente de suas existências. O jeito foi
apelar para aquela moradora que tinha prática em cuidar de idosos, a tal
patroinha daquele gordo que vive andando com camisa de time para cima e para
baixo. No caso, eu.
A resposta foi um sim mediante paga, porque não está fácil
para ninguém, com a condição de desobrigar o turno noturno e monitoração
remota, já que eram somente dois andares de distância. A experiência com a
senhora opulenta tinha desgastado a esposa e não havia espaço para caridade no
momento. Conta ela que a Dona Madalena apresentou suas credenciais logo no
primeiro dia, no que coube reação: ou a senhora me respeita, ou eu viro as
costas e daqui me vou agorinha! As coisas amainaram e foram bem até a plena
recuperação da macróbia senhora. Hoje, mais de dez anos depois, a cara-metade
continua cuidando dos eventuais perrengues dela, já sem cobrar nada, porque o
estranhamento inicial acabou virando, agora sim, uma certa amizade.
Ao fim e ao cabo, tenho dó da Dona Madalena, e de todo mundo
que hoje é solitário porque não cativou suas amizades em nome de um rigor
autoaplicado por conta de noções de pecado e de premiação futura. Eles creem
que todo esse sofrimento vale a pena, que estão sozinhos no mundo porque o
mundo é fonte inesgotável de perdição e assim por diante, que melhor seria
acabar tudo de uma vez e sermos colocados diante do tribunal divino para seja
selado o destino de cada um. A noção que carregam de pecados é um fardo ainda
mais pesado que os conceitos de finitude de um ateu, porque, para este, acabou
e pronto, sem paraíso, mas sem inferno também. Já pessoas assim temem a morte a
quem deveriam ansiar como alívio e passagem para a paz divina, porque não há
certeza alguma do que é ação diabólica e do que pode causar a pena eterna.
Eu aqui, pequenininho, tenho esse tipo de percepção com
relação a esses dualismos. Não sei se estou certo ou errado, somente posso
colocar a coisa em termos de palpite. Se eu tiver que um dia me ver com deus,
ver-me-ei, fazer o que? Explicarei a ele que houve um determinado momento em
que não
via motivos para crer em uma divindade, e parei de me cometer autoengano.
Se ele for misericordioso como dizem que é, saberá compreender, e me destinará
uma pena mais leve; se não, assumo a bronca e tento segurar a peteca. Vamos ver
quando chegar a hora.
Mas minha opinião não é relevante para fins filosóficos. Há
gente de porte graúdo (e muito) que pensou o dualismo e gente igualmente grande
(e como) que o criticou. Falo de Sócrates, Platão e Nietzsche. Na esteira de
meu último
texto sobre o ateniense, achei importante fazer esses tipos de distinção.
Esse novo estatuto da alma mais elevada na relação com o corpo conduziu a um
pensamento que isolava radicalmente mundos físico e ideal. Como eu já disse
anteriormente, é muito difícil discernir o que é propriamente socrático e o que
é ideário próprio em Platão, mas é certo que o autoconhecimento, a declaração
de ignorância e o jogo das respostas dialéticas influenciaram a maneira com a
qual Platão desenvolveu sua forma de pensar. Ou seja, o que diz Platão sempre é
socrático de alguma forma.
O que temos é que estes filósofos clássicos separavam o mundo
da mesma forma que separavam os corpos das ideias. Havia um mundo perfeito,
onde todos os objetos e ações tinham um modo paradigmático que era plasmado
para o mundo que temos ao nosso redor. Aqui, temos todas as imperfeições
possíveis de quem reproduz uma cópia. Por melhor que seja o pintor, algum tipo
de diferença haverá com relação ao modelo ideal e, sendo que esse modelo ideal
representa a imperfeição, a cópia é uma degeneração. Nada no mundo físico é
melhor do que no mundo das ideias, atingível unicamente pelo intelecto, pela
psiquê, pela alma.
Esse paradigma calçou perfeitamente o número do
Cristianismo, que tão logo se
viu livre das perseguições romanas, formalizou sua Filosofia a partir do
pensamento socrático-platônico. A partir da Patrística, o mundo das ideias foi
convolado em paraíso, o lugar onde Deus impera e onde tudo emana de seu
intelecto, com a perfeição que lhe é atribuída. O nosso mundo físico,
imperfeito, empobrecido, cúpido, hediondo, impróprio, é o lugar de expiação
desde que a cópia de Deus, o homem, subverteu a perfeição de quem emanou.
A conclusão é de que o mundo em que vivemos não pode ser um
objetivo em si mesmo, porque se distancia da perfeição vinda de Deus. Todo
prazer sensório é transitivo e destinado ao fim, além de causar o mal maior de arraigar
a própria existência do homem ao agarrá-lo ao mundo, e afastá-lo do objetivo
ideal de ir ao encontro da divindade.
Sabendo que o Cristianismo é a principal religião mundial
até os dias de hoje, e que continuamos dizendo que a principal diferenciação
entre o ser humano e os demais animais é a capacidade racional, podemos dizer
que este modelo socrático-platônico continua em plena prática, com a
concordância de inúmeras vozes e cabeças. Mas há bastantes contestações também.
Nietzsche, o filósofo do martelo, é talvez aquele que tece
as críticas mais ácidas e virulentas ao sistema socrático. Ele atribui ao grego
a destruição do antigo espírito heroico, muito mais próximo à vida, transformando-a
em doença. Lembremo-nos de que o alemão fundamentava sua visão de realidade em
outro tipo de dualismo: o
apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da ordenação, da boa medida, da
moderação e da expressão justa das coisas, ligado ao racional e ao lógico. Já
Dioniso é o deus da criatividade, do caos, do êxtase, das paixões e do homem
próximo à natureza, ligado ao instintivo e aos sentidos. É no equilíbrio entre as
forças representadas por essas duas deidades que se desenvolve a vida tal qual
foi criada, sintetizado na expressão da arte, especialmente da tragédia grega.
Nietzsche fala mal de Sócrates com gosto. Dizia ser
baixinho, feio, corpulento, desagradável como figura, um sujeito doente.
Atribui a ele a morte do espírito dionisíaco que permeava o pensamento grego de
até então, aniquilando toda a porção mais próxima à existência e a relegando a
um racionalismo permanentemente absurdo. A vida passa a ser castigo, e se opta
por não mais vivê-la.
Nietzche tem uma visão de virtude que é completamente
antagônica à de Sócrates e dos demais pensadores clássicos. Estes entendiam que
a grande virtude do ser humano estava em se buscar uma racionalização
permanente de tudo, para concluir que tudo no mundo estava errado, e isso
explicava a insatisfação, o sofrimento, a discórdia. Tanto o Platonismo quanto
o Cristianismo buscavam o afastamento do mundo por julgá-lo torto e inadequado,
e viver era o principal problema filosófico a ser resolvido: como ser virtuoso
em meio a um turbilhão de contingências.
Nietzsche dizia que, se há alguma coisa torta, é exatamente
nessa maneira de pensar. Apolo e Dioniso representam forças opostas, mas ainda
assim forças, que simplesmente são inevitáveis. Buscar como solução a supressão
de uma delas é, além de inútil, uma bobagem. Como o alemão era meio doido, ele
dava a solução de se atirar no turbilhão, e não fugir dele. Toda manifestação
individual é tolhida pela força reativa da razão quando tentamos reprimir o
dionisíaco que habita em nós. E por que força reativa? Porque ela reage em
sentido contrário à ação espontânea de uma vontade. Digamos que eu queria
dançar, ou cantar, ou trepar, ou encher a cara. A reação da minha razão será:
não, é ridículo; não, eu não sei fazer; não, é pecado; não, faz mal. Toda
racionalização é um brochante para a minha vontade
de potência, a coisa mais autêntica que eu tenho em mim e que partilho com
todos os demais seres humanos.
Essa vontade de potência é todo impulso vital que está
contido em um ser humano. Tire-me a razão, e eu ainda terei meu instinto e
minhas forças mais primevas, mais atávicas, mais próximas à natureza. É a
vontade de potência que faz o mundo girar, e prendê-la dentro de um quartinho é
descaracterizar o que temos de melhor.
Nietzsche entende que por trás disso tudo está uma moral dos
fracos, que usa a única ferramenta que tem à sua disposição para justificar sua
existência: uma retórica que anule as verdadeiras virtudes. Porque nada mais
resta ao impotente do que declarar que a potência é um mal em si. Nada mais
resta ao feio do que dizer que a beleza é decadente. Nada mais resta ao fraco
do que afirmar que a força é imoral. Criar uma moral onde a fraqueza seja vista
como real virtude é o ponto de conformação que foi criado com tanto sucesso por
aqueles que nada tem de favorável à vida para oferecer – quantas vezes não ouvimos
que o comedimento, a moderação, a temperança, a paciência são preferíveis àquilo
que os impulsos vitais nos apontam para fazer?
Sócrates falava da razão como guia das condutas. Platão fala
em um demiurgo que urdia o mundo sensível a partir do mundo ideal, e o
Cristianismo colocou Deus na condição de imperador do mundo do além-vida.
Segundo o bigodudo, entre eles só há a diferença de se mudar a divindade que
está no posto maior. Um por outro, são todos ídolos. Diferentemente do sentido
baconiano, que explicitei neste
texto, aqui os ídolos são as imagens belas de forma, mas ocas de valor, que
representam todos os modelos mentais que servem para escravizar a vida, para
demover as forças vitais das pessoas e torná-las vazias de vontade.
Só resta a arte, diria Nietzsche. Só na arte ainda temos liberdade
de produzirmos de acordo com o que efetivamente pensamos e queremos, e por isso
ele dava tanta importância para a tragédia,
porque o herói trágico não renegava seu próprio destino. A aceitação da vida
como ela é deve ser vista com grande alegria. A vida é um pacote que traz
consigo as alegrias e os infortúnios, e a arte é sua máxima expressão. Viver
artisticamente é dar a máxima vazão à vontade de potência, martelando os ídolos
e relegando os fracos que querem negá-la à sua própria insignificância.
Tudo isso segundo Nietzsche. Bons ventos a todos e bom 2022.
Recomendação de leitura:
O Caso Sócrates ou o Problema de Sócrates, de
acordo com a tradução, está contido no livro abaixo recomendado:
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Ou Como
Filosofar a Marteladas. São Paulo: Escala, s. d.
Então, segundo Nietzsche, Sócrates foi um grande estraga-prazer, hehe...Embora não seja um leitor constante do alemão bigodudo, sempre apreciei a maneira dele de ver a arte.
ResponderExcluirMais uma vez, ótima postagem. Um abraço.
Se fosse meu avô, diria que Sócrates era um empata-baile; já meu pai diria que é um empata-foda... hehehehe
ExcluirObrigado pelo comentário