(É um grande problema quando não há fontes fiáveis para contar a vida dos antigos. Até onde Sócrates é aquele que nos narram seus contemporâneos? E mais uma falácia para o Pequeno Guia)
Olá!
Depois de meio que me mudar para Taubaté*, comecei a fazer
as vezes de agricultor e cuidar de alguns canteiros. Tem couve, alface,
hortelã, capim-cidreira, pitaia, uma jabuticabeira e um mamoeiro, coisa pouca
porque o terreno não é muito. Cuido deles de maneira orgânica, o que faz com eu
tenha um embate jogo limpo com passarinhos: eu sirvo um mamão na casinha deixada
para tanto e eles retribuem não atacando as demais frutas. O mesmo não é tão
fácil de negociar com as lagartas, e vou aprendendo a fazer os controles sem
sujar as plantas com veneno.
Mas meu xodó tem sido os morangueiros, a quem cuido com
carinho e que retribuem dando farta produção. Trouxe as mudas de Terra da
Garoa, onde já faço um cultivo em vasinhos, mas o pouco espaço não permite
grandes safras, embora o sabor das frutas tenha melhorado bastante com o uso de
terras boas e adubos adequados. Aqui, a coisa rende muito mais, a ponto de não
ter necessitado comprar morangos, nem na feira, nem da quitanda.
Uma boa parte do prazer está em uma pequena vingança. É
muito raro conseguir uma venda onde você possa escolher seus morangos, porque
eles já estão confinados em bandejinhas. Entende-se: é uma fruta delicada e a
manipulação constante dá muito desperdício. Entretanto, a sacanagem é
recorrente – por cima, uma camada de primícias motiva a gente a aceitar o preço
caro. Quando você abre a barquinha, no entanto, há um broxante desmanchar de
frutas, uma geleia involuntária das feiuras que restaram esmagadas. Daqui do
canteiro, colho o que quero no tempo certo.
Não é só a questão da desonestidade, mas uma espécie de
amostra grátis da nossa pobre realidade tupiniquim. Para fazer bonito ao
comércio gordo, você exibe a belezura de suas frutas e esconde as feiosas, as
escarradas, as purulentas. Bem, se minha (falecida) vovozinha viesse me visitar,
eu bem que optaria pelas melhores frutas na sua salada, mas aí temos o aspecto
afetivo. Eu lhe serviria a viçosa ou a imatura? A bonita ou a cagada?
É um processo que ficou célebre com cerejas, mais comuns no hemisfério norte do que por estas verdes plagas. Não se trata de um processo que se faça somente com cerejas, mas com qualquer fruta ou legume que se queira fazer boa impressão. Há, inclusive, alguns gabaritos que tornam possível descartar as frutas menores, já filtrando apenas as peças graúdas. Dessas, ainda são selecionadas as mais vistosas, e olhando uma caixa dessas cerejas, temos a nítida impressão de que aquele pomar só gera frutas maravilhosas, o que, sabemos, não é verdade. A cereja feiosa também faz parte da realidade.
É mais ou menos o que acontece com a exportação de produtos.
As brazilian fruits parecem vindas do
paraíso, mas isso só acontece porque é feito um processo rigoroso de seleção
dos frutos que povoaram as mesas ianques. Para os residentes de Terra Papagalia
restarão os feinhos, ou pagar-se-á com o fígado por produto semelhante, o tal
do “tipo exportação”. Com a economia dolarizada, e com a moeda ianque
constantemente acima dos cinco reais, certos produtos estão impossíveis de
comprar. Coisas do capitalismo. Mas, como nas receitas de marinados, vamos
reservar.
Já fiz a experiência com vocês de mentalizar o primeiro
filósofo que viesse em suas cabeças. É muito provável que uma grande parte
tenha pensado em Sócrates. Não é injusto. O grego em questão é uma espécie de
padroeiro laico da filosofia, não porque tenha sido o primeiro a pensar nas
coisas através da lógica, mas por ter inaugurado um método e uma postura que
fizeram sucesso.
O método é a maiêutica, uma espécie de dialética que busca
traçar um itinerário da presunção de sapiência para o reconhecimento da
ignorância, e, a partir daí, sair em busca do conhecimento real (o tema merece
um texto específico), e a postura é uma recusa em obter fortuna e prestígio
através da transmissão do conhecimento, o que o tornou um crítico feroz dos sofistas,
que sabiam fazê-lo muito bem.
Sócrates, à moda de antigos líderes religiosos, não legou
nada escrito, deixando ao encargo de seus discípulos a tarefa de transcrever
seus ensinamentos, assim como Jesus fez posteriormente. Isso traz dois
problemas: as narrativas são feitas por entidades não confiáveis e a história
do homem retratado fica prejudicada, e não do “mito” construído pela doutrina.
E por que isso? Porque o discípulo não é parte completamente
isenta no processo narrativo. É muito difícil separar o que é material próprio
de Sócrates e o que saiu da cabeça de seus seguidores. Eu sei que o papel que
farei é de advogado do diabo, mas ele é necessário.
Vou começar exercendo uma comparação: por onde conhecemos a
vida de Jesus? Pelo relato dos evangelhos, naturalmente. Em tese, foram
redigidos por pessoas que estiveram muito próximas de testemunhas oculares de
sua vida. O grande problema está na imparcialidade do que cada um desses
autores nos conta. Todos aqueles que se propuseram a escrever a vida de Jesus
eram devotos, e escreviam com um forte viés de fé. Isso pode servir muito bem
para quem igualmente busca sustentação em sua crença, mas para a historiografia
é um sufoco e tanto. Com isso, é necessário que se busquem fontes externas ao
turbilhão dos fatos, mesmo que sejam igualmente pouco fiáveis, mas que, pelo
bojo informativo, possam trazer alguns elementos de confirmação ou refutação.
A crítica histórica normalmente é favorável à existência de
um Jesus histórico, ainda que haja pouquíssimos elementos externos, como Flávio
Josefo e Cornélio Tácito. Não se busca aqui o Jesus da doutrina, mas o Jesus
homem, que tenha vivido e exercido um ministério público, mesmo que sua
divindade não tenha sido real. O mesmo acontece com Sócrates. Quase não se
discute mais sua existência histórica, só temos dificuldades em estabelecer que
Sócrates foi esse. O consenso acadêmico é que há duas fases bem distintas em
sua vida, aquela que é mais próxima dos filósofos naturalistas e da nova visão
humanista dos sofistas, que é onde se concentram a maior parte de seus
detratores, e uma em momento mais maduro, prenhe de ideias que foram
aproveitadas por Platão e Xenofonte. E aqui também temos um elemento histórico
que suprime a falta de fontes confiáveis tão bem quanto no caso de Jesus: há
uma novidade no pensamento. O antes e depois de Sócrates, assim como o antes e
depois de Cristo, porque há uma transformação de tal monta no pensamento
filosófico que é plenamente compatível com a existência de um pivô em torno do
qual girou esta guinada, assim como houve uma reviravolta no pensamento
religioso no momento em que Jesus supostamente teve sua vida pública.
De todos os discípulos de Sócrates, o mais abundante de
todos é Platão, longe de qualquer dúvida. Ele tomou o mestre como personagem de
inúmeros diálogos, que não sabemos ser de audição dos ensinamentos ou se são de
lavra própria, usando a imagem socrática para passar uma espécie de certidão
sapiencial ou fazer uma homenagem. De uma forma ou de outra, Platão não se
preocupou com os aspectos mais históricos, traçando a trajetória ou a
personalidade, ficando bem mais atido aos aspectos doutrinários de Sócrates, no
que ele foi grande. Platão idealiza no seu mestre o paradigma do sábio, e parecem
ser efetivamente reproduções do ideário socrático os seguintes tópicos: a
psique como a essência do homem, a areté
sendo o próprio conhecimento do homem, a felicidade vinda da própria alma, a
razão como ferramenta da não-violência, o autodomínio do prazer e da dor, o
método dialético, a assunção da ignorância, dentre outros, em sua maioria temas
inéditos ou com nova abordagem, e que guiaram toda a filosofia posterior.
Outro discípulo que deixou registros significativos de
Sócrates foi Xenofonte. Como não era homem da Filosofia, este grego se
preocupou mais com aspectos práticos dos ensinamentos socráticos. Platão trazia
diálogos em que Sócrates discutia os conceitos de coragem e justiça, enquanto
Xenofonte nos trazia exemplos da maiêutica referentes ao preparo dos homens
para governar. Essa visão mais pragmática era favorável ao conhecimento do
Sócrates histórico. Xenofonte traz um Sócrates do dia-a-dia, que dá conselhos
úteis para coisas bem menos filosóficas das que Platão nos trouxe, como a
alimentação, exercícios físicos e tantas outras coisas. No que ambos se parecem
é com o uso da razão: Sócrates sempre desenvolve seus argumentos na forma de
longos raciocínios e jogos de perguntas e respostas.
O grande problema comum a Platão e Xenofonte é denunciado
pelo próprio nome de duas de suas obras: Apologia de Sócrates. Com um título
desses, já nos fica claro que a intenção de ambos era defender as doutrinas e
as condutas de seu mestre, o que, no mínimo, já dá alguma mostra de parcialidade.
Como bem se sabe, a apologia é um estilo literário de defesa e elogio, bastante
utilizado nos textos laudatórios das religiões. É muito provável que nem Platão,
nem Xenofonte tenham colocado o que conheciam sobre Sócrates em seus diferentes
textos, mas unicamente o que lhes interessava ou fazia sentido no que queria
deixar para a posteridade, e, com isso, temos um Sócrates incompleto. Se há
algum tipo de acusação, já é preciso também ouvir o lado de lá.
Por estranho que possa parecer, uma boa fonte para as
detrações a Sócrates veio dos comediógrafos, Aristófanes à frente. Em sua peça
chamada As Nuvens, ele nos apresenta
um Sócrates altamente caricaturizado, com uma atitude muito semelhante à dos
sofistas, que arrotavam conhecimento e o vendia a um bom preço. Além disso, em
certos momentos o filósofo era colocado como centro do próprio universo que
criou: o Pensatório, uma espécie de escola como era comum naquela época. Lá,
toda sorte de bobagem era elevada à condição de causa universal. Além disso, o
Sócrates de Aristófanes despreza a religião pública, trazendo novas divindades
para o panteão de sua instituição.
É óbvio que o trabalho de Aristófanes contém um sem número
de argumentos ad
hominem e apelos
ao ridículo. Devemos sempre lembrar que estamos no campo da comédia,
terreno da mofa, do escárnio e do maldizer. Mas também devemos lembrar que, a
parte dos exageros típicos, há também uma carga de crítica muito evidente que é
peculiar ao humor e ao chiste, de modo que é preciso escavar o angu para
verificar se por baixo não há carne. As críticas de Aristófanes, de certa
forma, são as mesmas que levaram Sócrates à condenação, o que é um motivador
muito mais sério. De fato, como já pudemos ver, Sócrates foi acusado de
impiedade e de subverter a juventude, e sua atitude na peça corresponde
exatamente à acusação, porque ele proclama as Nuvens como divindades e elabora
um sistema que atrai muitos discípulos.
Qual é o verdadeiro Sócrates? O mestre racional de Platão, o
homem prático de Xenofonte ou o fanfarrão de Aristófanes? É muito difícil de
identificar pelo simples relato, porque acabamos por tomar um partido de cada
uma das leituras. Como sempre, a verdade deve estar em um ponto entre os
diferentes sujeitos dessa história e seu respectivo objeto, como
diria Theodor Adorno. E, para cada versão, o seu autor seleciona o que de
melhor convém para o que quer transmitir.
Vamos resgatar a história lá do começo. Sabemos da
predisposição que temos em expor o que temos de melhor, e varrer para debaixo
do tapete tudo aquilo que não nos interessa mostrar. Isso não acontece somente
com histórias ou cerejas, mas com todo argumento que construímos. Da mesma
forma que aqueles agricultores que fazem suas frutas passar pelos gabaritos
para nos fazer crer que sua terra somente produz os frutos da mais alta
excelência, também deixamos de levar em conta muito escolho que faria nossos
argumentos serem insuficientes em si mesmos.
Isso é falacioso, e é conhecida por dois nomes. O mais
técnico é chamado de evidência suprimida,
que ocorre quando sabemos de pontos que invalidam ou enfraquecem nossos
argumentos e deixamo-los encostados. O apelido carinhoso é cherry picking, o
processo de escolha das cerejas, que aqui são metáforas para a seleção
maliciosa dos dados que melhor comprovam nossas hipóteses. É incrivelmente
comum em pseudociências
ou em defesa religiosa. No primeiro caso, porque todas as variáveis de uma
teoria e todas as amostras coletadas precisam ser levadas em consideração em
uma pesquisa, não sendo possível descartar injustificadamente aquelas que não
concordam com a tese central. No segundo, porque sabemos que há vários itens
dos livros sagrados que, embora refutados, são colocados na conta do
relativismo, sendo que outros vão para o rol dos argumentos válidos
concretamente.
Platão e Xenofonte colhiam suas cerejas relativamente a
Sócrates? Parece indubitável que sim, mas o lado de lá, Aristófanes, também o
faz. Às vezes acontece de fazermos isso também, nem sempre porque queremos
maquiar uma lógica, mas porque não damos atenção devida a fatos que, apesar de
não os considerar significativos, existem. Isso é um cuidado que devemos sempre
ter. Bons ventos a todos!
Recomendações de leitura:
Já mencionei a Apologia escrita por Platão, mas, como a
mencionei aqui, segue novamente a recomendação:
PLATÃO. Apologia
de Sócrates. Porto Alegre: L&PM, 2008.
A obra de Xenofonte tem o longo nome de Ditos e Feitos
Memoráveis de Sócrates, mas é conhecida pelo seu nome mais curto. Cito esta
obra por ser mais completa do que a sua Apologia.
XENOFONTE. Memoráveis.
Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 2009.
Por fim, segue a indicação da peça teatral de Aristófanes,
que, aliás, volta e meia é encenada por estas bandas. Fiquem de olho nos
teatros de suas cidades.
ARISTÓFANES. As Nuvens.
São Paulo: Zahar, 1995.
* Como a história é meio longa, coloco-a aqui no fim para
não tolher o ritmo do texto. Eu não mudei completamente para Taubaté. Ainda
tenho o mesmíssimo apê alugado no centro velho de São Paulo, e estou
aproveitando um cômodo da casa da minha filha mais nova como dormitório, escritório
e oficina. Por conta do home office,
passo mais tempo aqui do que lá, a ponto de adotar este endereço como meu
domicílio. Taubaté é muito legal por ser um hub
que facilita o acesso a muita terra legal. Quem sabe eu não acabe me fixando
por aqui?
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