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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Pequeno guia das grandes falácias - 63º tomo: a evidência suprimida (cherry picking) e as dificuldades de encontrar o Sócrates histórico

(É um grande problema quando não há fontes fiáveis para contar a vida dos antigos. Até onde Sócrates é aquele que nos narram seus contemporâneos? E mais uma falácia para o Pequeno Guia) 

Olá!

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Depois de meio que me mudar para Taubaté*, comecei a fazer as vezes de agricultor e cuidar de alguns canteiros. Tem couve, alface, hortelã, capim-cidreira, pitaia, uma jabuticabeira e um mamoeiro, coisa pouca porque o terreno não é muito. Cuido deles de maneira orgânica, o que faz com eu tenha um embate jogo limpo com passarinhos: eu sirvo um mamão na casinha deixada para tanto e eles retribuem não atacando as demais frutas. O mesmo não é tão fácil de negociar com as lagartas, e vou aprendendo a fazer os controles sem sujar as plantas com veneno.

Mas meu xodó tem sido os morangueiros, a quem cuido com carinho e que retribuem dando farta produção. Trouxe as mudas de Terra da Garoa, onde já faço um cultivo em vasinhos, mas o pouco espaço não permite grandes safras, embora o sabor das frutas tenha melhorado bastante com o uso de terras boas e adubos adequados. Aqui, a coisa rende muito mais, a ponto de não ter necessitado comprar morangos, nem na feira, nem da quitanda.

Uma boa parte do prazer está em uma pequena vingança. É muito raro conseguir uma venda onde você possa escolher seus morangos, porque eles já estão confinados em bandejinhas. Entende-se: é uma fruta delicada e a manipulação constante dá muito desperdício. Entretanto, a sacanagem é recorrente – por cima, uma camada de primícias motiva a gente a aceitar o preço caro. Quando você abre a barquinha, no entanto, há um broxante desmanchar de frutas, uma geleia involuntária das feiuras que restaram esmagadas. Daqui do canteiro, colho o que quero no tempo certo.

Não é só a questão da desonestidade, mas uma espécie de amostra grátis da nossa pobre realidade tupiniquim. Para fazer bonito ao comércio gordo, você exibe a belezura de suas frutas e esconde as feiosas, as escarradas, as purulentas. Bem, se minha (falecida) vovozinha viesse me visitar, eu bem que optaria pelas melhores frutas na sua salada, mas aí temos o aspecto afetivo. Eu lhe serviria a viçosa ou a imatura? A bonita ou a cagada?


É um processo que ficou célebre com cerejas, mais comuns no hemisfério norte do que por estas verdes plagas. Não se trata de um processo que se faça somente com cerejas, mas com qualquer fruta ou legume que se queira fazer boa impressão. Há, inclusive, alguns gabaritos que tornam possível descartar as frutas menores, já filtrando apenas as peças graúdas. Dessas, ainda são selecionadas as mais vistosas, e olhando uma caixa dessas cerejas, temos a nítida impressão de que aquele pomar só gera frutas maravilhosas, o que, sabemos, não é verdade. A cereja feiosa também faz parte da realidade. 

É mais ou menos o que acontece com a exportação de produtos. As brazilian fruits parecem vindas do paraíso, mas isso só acontece porque é feito um processo rigoroso de seleção dos frutos que povoaram as mesas ianques. Para os residentes de Terra Papagalia restarão os feinhos, ou pagar-se-á com o fígado por produto semelhante, o tal do “tipo exportação”. Com a economia dolarizada, e com a moeda ianque constantemente acima dos cinco reais, certos produtos estão impossíveis de comprar. Coisas do capitalismo. Mas, como nas receitas de marinados, vamos reservar.

Já fiz a experiência com vocês de mentalizar o primeiro filósofo que viesse em suas cabeças. É muito provável que uma grande parte tenha pensado em Sócrates. Não é injusto. O grego em questão é uma espécie de padroeiro laico da filosofia, não porque tenha sido o primeiro a pensar nas coisas através da lógica, mas por ter inaugurado um método e uma postura que fizeram sucesso.

O método é a maiêutica, uma espécie de dialética que busca traçar um itinerário da presunção de sapiência para o reconhecimento da ignorância, e, a partir daí, sair em busca do conhecimento real (o tema merece um texto específico), e a postura é uma recusa em obter fortuna e prestígio através da transmissão do conhecimento, o que o tornou um crítico feroz dos sofistas, que sabiam fazê-lo muito bem.

Sócrates, à moda de antigos líderes religiosos, não legou nada escrito, deixando ao encargo de seus discípulos a tarefa de transcrever seus ensinamentos, assim como Jesus fez posteriormente. Isso traz dois problemas: as narrativas são feitas por entidades não confiáveis e a história do homem retratado fica prejudicada, e não do “mito” construído pela doutrina.

E por que isso? Porque o discípulo não é parte completamente isenta no processo narrativo. É muito difícil separar o que é material próprio de Sócrates e o que saiu da cabeça de seus seguidores. Eu sei que o papel que farei é de advogado do diabo, mas ele é necessário.

Vou começar exercendo uma comparação: por onde conhecemos a vida de Jesus? Pelo relato dos evangelhos, naturalmente. Em tese, foram redigidos por pessoas que estiveram muito próximas de testemunhas oculares de sua vida. O grande problema está na imparcialidade do que cada um desses autores nos conta. Todos aqueles que se propuseram a escrever a vida de Jesus eram devotos, e escreviam com um forte viés de fé. Isso pode servir muito bem para quem igualmente busca sustentação em sua crença, mas para a historiografia é um sufoco e tanto. Com isso, é necessário que se busquem fontes externas ao turbilhão dos fatos, mesmo que sejam igualmente pouco fiáveis, mas que, pelo bojo informativo, possam trazer alguns elementos de confirmação ou refutação.

A crítica histórica normalmente é favorável à existência de um Jesus histórico, ainda que haja pouquíssimos elementos externos, como Flávio Josefo e Cornélio Tácito. Não se busca aqui o Jesus da doutrina, mas o Jesus homem, que tenha vivido e exercido um ministério público, mesmo que sua divindade não tenha sido real. O mesmo acontece com Sócrates. Quase não se discute mais sua existência histórica, só temos dificuldades em estabelecer que Sócrates foi esse. O consenso acadêmico é que há duas fases bem distintas em sua vida, aquela que é mais próxima dos filósofos naturalistas e da nova visão humanista dos sofistas, que é onde se concentram a maior parte de seus detratores, e uma em momento mais maduro, prenhe de ideias que foram aproveitadas por Platão e Xenofonte. E aqui também temos um elemento histórico que suprime a falta de fontes confiáveis tão bem quanto no caso de Jesus: há uma novidade no pensamento. O antes e depois de Sócrates, assim como o antes e depois de Cristo, porque há uma transformação de tal monta no pensamento filosófico que é plenamente compatível com a existência de um pivô em torno do qual girou esta guinada, assim como houve uma reviravolta no pensamento religioso no momento em que Jesus supostamente teve sua vida pública.

De todos os discípulos de Sócrates, o mais abundante de todos é Platão, longe de qualquer dúvida. Ele tomou o mestre como personagem de inúmeros diálogos, que não sabemos ser de audição dos ensinamentos ou se são de lavra própria, usando a imagem socrática para passar uma espécie de certidão sapiencial ou fazer uma homenagem. De uma forma ou de outra, Platão não se preocupou com os aspectos mais históricos, traçando a trajetória ou a personalidade, ficando bem mais atido aos aspectos doutrinários de Sócrates, no que ele foi grande. Platão idealiza no seu mestre o paradigma do sábio, e parecem ser efetivamente reproduções do ideário socrático os seguintes tópicos: a psique como a essência do homem, a areté sendo o próprio conhecimento do homem, a felicidade vinda da própria alma, a razão como ferramenta da não-violência, o autodomínio do prazer e da dor, o método dialético, a assunção da ignorância, dentre outros, em sua maioria temas inéditos ou com nova abordagem, e que guiaram toda a filosofia posterior.

Outro discípulo que deixou registros significativos de Sócrates foi Xenofonte. Como não era homem da Filosofia, este grego se preocupou mais com aspectos práticos dos ensinamentos socráticos. Platão trazia diálogos em que Sócrates discutia os conceitos de coragem e justiça, enquanto Xenofonte nos trazia exemplos da maiêutica referentes ao preparo dos homens para governar. Essa visão mais pragmática era favorável ao conhecimento do Sócrates histórico. Xenofonte traz um Sócrates do dia-a-dia, que dá conselhos úteis para coisas bem menos filosóficas das que Platão nos trouxe, como a alimentação, exercícios físicos e tantas outras coisas. No que ambos se parecem é com o uso da razão: Sócrates sempre desenvolve seus argumentos na forma de longos raciocínios e jogos de perguntas e respostas.

O grande problema comum a Platão e Xenofonte é denunciado pelo próprio nome de duas de suas obras: Apologia de Sócrates. Com um título desses, já nos fica claro que a intenção de ambos era defender as doutrinas e as condutas de seu mestre, o que, no mínimo, já dá alguma mostra de parcialidade. Como bem se sabe, a apologia é um estilo literário de defesa e elogio, bastante utilizado nos textos laudatórios das religiões. É muito provável que nem Platão, nem Xenofonte tenham colocado o que conheciam sobre Sócrates em seus diferentes textos, mas unicamente o que lhes interessava ou fazia sentido no que queria deixar para a posteridade, e, com isso, temos um Sócrates incompleto. Se há algum tipo de acusação, já é preciso também ouvir o lado de lá.

Por  estranho que possa parecer, uma boa fonte para as detrações a Sócrates veio dos comediógrafos, Aristófanes à frente. Em sua peça chamada As Nuvens, ele nos apresenta um Sócrates altamente caricaturizado, com uma atitude muito semelhante à dos sofistas, que arrotavam conhecimento e o vendia a um bom preço. Além disso, em certos momentos o filósofo era colocado como centro do próprio universo que criou: o Pensatório, uma espécie de escola como era comum naquela época. Lá, toda sorte de bobagem era elevada à condição de causa universal. Além disso, o Sócrates de Aristófanes despreza a religião pública, trazendo novas divindades para o panteão de sua instituição.

É óbvio que o trabalho de Aristófanes contém um sem número de argumentos ad hominem e apelos ao ridículo. Devemos sempre lembrar que estamos no campo da comédia, terreno da mofa, do escárnio e do maldizer. Mas também devemos lembrar que, a parte dos exageros típicos, há também uma carga de crítica muito evidente que é peculiar ao humor e ao chiste, de modo que é preciso escavar o angu para verificar se por baixo não há carne. As críticas de Aristófanes, de certa forma, são as mesmas que levaram Sócrates à condenação, o que é um motivador muito mais sério. De fato, como já pudemos ver, Sócrates foi acusado de impiedade e de subverter a juventude, e sua atitude na peça corresponde exatamente à acusação, porque ele proclama as Nuvens como divindades e elabora um sistema que atrai muitos discípulos.

Qual é o verdadeiro Sócrates? O mestre racional de Platão, o homem prático de Xenofonte ou o fanfarrão de Aristófanes? É muito difícil de identificar pelo simples relato, porque acabamos por tomar um partido de cada uma das leituras. Como sempre, a verdade deve estar em um ponto entre os diferentes sujeitos dessa história e seu respectivo objeto, como diria Theodor Adorno. E, para cada versão, o seu autor seleciona o que de melhor convém para o que quer transmitir.

Vamos resgatar a história lá do começo. Sabemos da predisposição que temos em expor o que temos de melhor, e varrer para debaixo do tapete tudo aquilo que não nos interessa mostrar. Isso não acontece somente com histórias ou cerejas, mas com todo argumento que construímos. Da mesma forma que aqueles agricultores que fazem suas frutas passar pelos gabaritos para nos fazer crer que sua terra somente produz os frutos da mais alta excelência, também deixamos de levar em conta muito escolho que faria nossos argumentos serem insuficientes em si mesmos.

Isso é falacioso, e é conhecida por dois nomes. O mais técnico é chamado de evidência suprimida, que ocorre quando sabemos de pontos que invalidam ou enfraquecem nossos argumentos e deixamo-los encostados. O apelido carinhoso é cherry picking, o processo de escolha das cerejas, que aqui são metáforas para a seleção maliciosa dos dados que melhor comprovam nossas hipóteses. É incrivelmente comum em pseudociências ou em defesa religiosa. No primeiro caso, porque todas as variáveis de uma teoria e todas as amostras coletadas precisam ser levadas em consideração em uma pesquisa, não sendo possível descartar injustificadamente aquelas que não concordam com a tese central. No segundo, porque sabemos que há vários itens dos livros sagrados que, embora refutados, são colocados na conta do relativismo, sendo que outros vão para o rol dos argumentos válidos concretamente.

Platão e Xenofonte colhiam suas cerejas relativamente a Sócrates? Parece indubitável que sim, mas o lado de lá, Aristófanes, também o faz. Às vezes acontece de fazermos isso também, nem sempre porque queremos maquiar uma lógica, mas porque não damos atenção devida a fatos que, apesar de não os considerar significativos, existem. Isso é um cuidado que devemos sempre ter. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Já mencionei a Apologia escrita por Platão, mas, como a mencionei aqui, segue novamente a recomendação:

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Porto Alegre: L&PM, 2008.

A obra de Xenofonte tem o longo nome de Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, mas é conhecida pelo seu nome mais curto. Cito esta obra por ser mais completa do que a sua Apologia.

XENOFONTE. Memoráveis. Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 2009.

Por fim, segue a indicação da peça teatral de Aristófanes, que, aliás, volta e meia é encenada por estas bandas. Fiquem de olho nos teatros de suas cidades.

ARISTÓFANES. As Nuvens. São Paulo: Zahar, 1995.

 

* Como a história é meio longa, coloco-a aqui no fim para não tolher o ritmo do texto. Eu não mudei completamente para Taubaté. Ainda tenho o mesmíssimo apê alugado no centro velho de São Paulo, e estou aproveitando um cômodo da casa da minha filha mais nova como dormitório, escritório e oficina. Por conta do home office, passo mais tempo aqui do que lá, a ponto de adotar este endereço como meu domicílio. Taubaté é muito legal por ser um hub que facilita o acesso a muita terra legal. Quem sabe eu não acabe me fixando por aqui?

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