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segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O café filosófico do quotidiano – as Ciências Humanas podem ser abarcadas pelo método científico?

(Volta e meia, há uma pequena guerrinha sobre a validade das Humanas como objeto do conhecimento. Pelas suas dificuldades em se amoldar ao método científico, há razão em dizer que elas são “menos” ciências que as naturais?)

Olá!

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Quando eu falo dos meus métodos de passar café, tem gente que me pergunta por que eu não coleciono chaveiros, que são muito mais baratos. Bem, os motivos são dois: 1) eu também coleciono chaveiros e 2) eu não coleciono métodos de extração, apenas gosto de poder variar de vez em quando. É que existe uma gama tão variada de grãos, de torras, de espessuras que só conseguimos chegar ao melhor ponto através de diferentes apetrechos. E eles são muitos mesmo. Por isso, uma boa parte do prazer do café está na pesquisa, e isso inclui ter vários métodos disponíveis, sendo que alguns são mais simples, e outros mais sofisticados. Um deles é a cafeteira de sifão, mais conhecida como globinho.


É uma verdadeira aula de física, que demonstra como funcionam vários princípios da termologia e da dinâmica dos fluídos. Basicamente, são dois balões onde ocorrem processos de convecção e sucção por rarefação de ar (não dá para chamar propriamente de vácuo). Uma lamparina que aquece a água no bolão de baixo é o início do procedimento.


Quando a água está próxima ao ponto de fervura, é encaixado o balão de cima, onde já deverá estar contido o café em ponto de moagem médio.


Assim que chegar ao ponto de fervura, a água subirá pela cânula do recipiente superior e começará a se misturar ao pó. É preciso ter em mente que restará um pouco de água na parte de baixo, por isso a quantidade de pó deverá estar bem adequada ao processo.


Neste momento, é preciso apagar ou retirar a lamparina, para que a parte baixa esfrie e inicie a sucção, que força o líquido a passar pelo filtro embutido no alto da cânula. Aos poucos, o café excessivamente forte que está no alto vai se diluir na água que restou no bojo inferior.


Por fim, é só servir.



Nome do utensílio: cafeteira de sifão (globinho)

Tipo de técnica: percolação por sucção térmica

Dificuldade: Alta

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um processo de fervura no bojo inferior faz com que a água suba por uma cânula a um globo superior, onde está depositado o café. Cessando a fonte de calor, a troca na rarefação do ar fará com que a infusão contida no globo superior seja sugada para o inferior, em um efeito sifão.

Resíduos: Poucos

Temperatura de saída: Muito alta

Nível de ritual: Alto

Não tenho a menor vergonha de dizer que comprei esse aparelho usado, porque era um daqueles negócios de ocasião, e está em estado de novo e funcionando perfeitamente. Dá a impressão de que o ex-dono ganhou de presente e não gosta de café. Afinal de contas, ele custa o olho da cara e era luxo demais pagar o preço que normalmente pedem por ele. Melhor assim: alguém que quer se desfazer da coisa obtém algum trocado de quem a aprecia e se propõe a pagar um preço camarada de verdade.

Como é possível supor pelo meu relato, o processo todo não é exatamente rápido, por isso dá tempo de pensar em um monte de filosofias. A cafeteira globinho é quase um instrumento científico, daqueles de laboratório, que trazem a imagem mental que normalmente fazemos sobre a Ciência. E, diante de mim, vejo todo um experimento que é possível de reproduzir e registrar, como preconiza toda a metodologia científica. Se formos pensar bem, é possível que eu isole variáveis no processo e comece a fazer medições sérias: controle de temperatura, densidade do líquido antes e após a filtragem, pH do composto também antes e depois, pó mais espesso ou mais fino, velocidade da infusão e demais que-tais, exempli gratia. Isso começaria a dar cara de metodologia em uma coisa trivial, e às vezes saber o que essa construção significa pode ser bom para nos posicionarmos.

Diante da torrente irrefreável de baboseiras que a pandemia nos trouxe, eu resolvi contribuir com os meus centavos de conhecimento acerca dos mistérios sobre o que é a Ciência e suas metodologias, e falei sobre a lógica aplicável à pesquisa, aos rigores dos métodos e até mesmo ao controle dos vieses. Entretanto, como eu estava tendo em mente em especial as abobrinhas que se falam sobre remédios e vacinas, acabei deixando uma lacuna importante, que achei conveniente suprir agora: a metodologia aplicada a Ciências Naturais é a mesma que utilizamos para Ciências Humanas?

Não vamos ter, meninas e meninos, como fugir de delinear o que é esse marco divisório. Nós chamamos de Ciências Naturais todas aquelas a quem chamo graciosamente de "ciências de jaleco", majoritariamente feitas em laboratórios e observatórios, mas que também utiliza muito campo, especialmente para a obtenção dos dados que serão analisados. São aquelas que investigam a natureza de modo independente ao que a humanidade lhe interpõe de cultura, e são aquelas que mais nos causam temor nas grades curriculares: Física, Química, Astronomia, Biologia, Medicina e outras mais. Já as Ciências Humanas estudam todos aqueles fenômenos onde o homem põe a mão de alguma forma. Não nos lembramos dos cientistas de jaleco quando pensamos neles, mas nas atuações junto às comunidades humanas. Engloba áreas sociais, como a Sociologia, Antropologia, Psicologia, Direito, Economia e outras áreas de registro, como a Geografia e a História.

Bom. Existe a lenda de que o pessoal das hard sciencies acha que os cientistas de humanas são maconheiros que gostam de abraçar árvores e aplaudir o sol, enquanto no sentido contrário temos raptores do termo, que se fecham em suas torres de marfim e esquecem do restante do mundo. Nada mais do que estereótipos colocados em prática, com o componente alienação sempre em altos teores. Pode até ser que um ou outro tenham lá suas rusgas, e precisamos levar em conta que a aplicabilidade do método científico como vimos até agora realmente dá uma travada quando olhamos para uma sociedade ou uma cultura ao invés de um vírus ou um asteroide.

Vamos ver. Podemos ter várias maneiras de definir o termo Ciência, mas a melhor maneira é dizer que, em um conceito generalizado, trata-se do estudo da realidade. Essa realidade, obviamente, é completamente multifacetada, e embora as diferentes áreas façam suas interlocuções, cada uma delas abrange um grupo de conhecimentos bastante específicos. Comparando a realidade detectável (tchau, metafísica) com uma casinha, podemos perceber que cada um dos cômodos tem suas sutilezas e uma função específica, e também que cada um deles representa um pedaço da realidade total. Assim, temos um cômodo que representa o cosmos e seus componentes, como as galáxias, as constelações, os buracos negros, os pulsares e tudo o mais que exista no espaço sideral, e este cômodo é a Astronomia. Outro cômodo contém as reações entre os diferentes compostos, as mudanças de estado, as combinações e misturas e a forças de interação entre as substâncias, e é o cômodo da Química. Em mais um, há o funcionamento dos corpos, a fisiologia dos órgãos, as funções dos sistemas e temos o cômodo da Medicina, e assim tantos outros da nossa edificação. Todos são campos do conhecimento, disso não resta nenhuma dúvida. Mas há outros ainda, que contém outras características: há um cômodo onde é vista a sociedade, suas relações e seus funcionamentos; há outro onde vemos a cultura dos diferentes povos e como elas se imbricam e transformam, e há ainda outro em que observamos como opera a mente, como ela interage com os organismos e de que maneira reage às variações do ambiente. A sociedade, a cultura e a mente também são partes da construção que chamamos de realidade, alicerçadas pela Filosofia e com as paredes erigidas pela Lógica e pela Matemática.

Sendo assim, tanto as Naturais quanto as Humanas vencem o critério de objeto de estudo, sem nenhum tipo de distinção. A coisa ganha complexidade na medida em que estipulamos métodos de pesquisa que devem ser atendidos para que a área produza trabalhos de natureza científica. Partindo do mais básico, um método precisa conseguir definir o objeto que estuda, explicar o seu funcionamento, fazer predições sobre sua repetição futura, controlar as variáveis que influenciam na sua ocorrência e estabelecer situações em que a hipótese proposta deverá falhar e demonstrá-la como falsa. Vamos usar um exemplo das ciências naturais: a curvatura de um chute na direção do gol.

Vamos começar pela definição: a curvatura de um chute é o desvio de uma linha reta imaginária que liga o ponto de estado de repouso de uma bola até o atingimento de um ponto específico no espaço (no caso, o ângulo superior esquerdo de uma trave - um golaço!). Essa definição é importante porque serve para excluir chutes retos, arremessos laterais e outros possíveis objetos não abrangidos. Ou seja, sabemos exatamente o que estamos estudando.

Em seguida, vem a fase da explicação. Por que um chute foge à intuição de que ele descreveria uma linha reta? Normalmente, dois fatores influenciam na trajetória da bola de forma que a mesma descreva um arco: a sua rotação e a força do vento. Dessa forma, podemos explicar o fenômeno como o resultado da aplicação de uma força em um ponto tal da bola que a faça girar. A bola posta em rotação atrita com as camadas de ar de forma a fazê-las servir de "apoio", como se a bola estivesse rolando em um chão de baixa densidade. Isso faz com que a bola ganhe um ponto de translação imaginário, influenciada ainda pela força e direção do vento.

A boa técnica metodológica dita ainda que as variáveis que influenciam no processo devem ser detectadas e controladas.  A bola teste, por exemplo, deverá ser uma oficial. Ou seja, terá uma medida fixa e não será uma das variáveis. No entanto, ela deve ser experimentada com diferentes pressões e em diferentes tempos de uso. Deverão ser detectados os exatos pontos de impacto de cada um dos chutes, a velocidade e direção do vento deverão ser medidas a cada execução da rotina e, se possível, deverá ser tentada a mesma experiência em uma câmara de vácuo.

Com tudo isso, o método científico deverá proporcionar predições, ou seja, dadas tais e tais condições, o resultado será x ou y. Se eu chutar a bola com a parte externa do pé exatamente a três centímetros de seu centro, com vento na direção leste e velocidade de dez nós, teremos como resultado uma curvatura de quinze graus e ponto de entrada na meta a dois centímetros do travessão e cinco da trave lateral esquerda. Outro golaço.

Por fim, a declaração de falseabilidade, afirmando que se o chute dado em condições de curva com velocidade do vento neutra nunca poderá ser reto. Os resultados sempre serão passíveis de críticas, mas estão de acordo com a metodologia científica atualmente aceita nos meios acadêmicos.

Agora, vamos fazer o mesmo paciente exercício em uma ciência humana. Em minha hipótese, preços baixos de ingresso farão com que um estádio consiga incremento de público. Primeiro, a definição: o preço dos ingressos é um dos fatores principais que influenciam a frequência de público em estádios de futebol.

A explicação é simples: em países com baixa renda e preços de ingressos além do poder aquisitivo, camadas grandes de população terão seu acesso dificultado a eventos que, in extremis, não façam parte dos pacotes de primeiras necessidades. Entretanto, como há um grande apreço pela prática do esporte, existe uma demanda reprimida que poderá ser ativada por dois fatores: o aumento da renda ou a diminuição do preço do ingresso.

Os fatores de controle do experimento deslizam em dois eixos: variar a renda do público em estudo e fazer várias escalas de diminuição do preço do ingresso, fazendo descer da exorbitância a um lucro moderado, depois ao empate custo/benefício e até mesmo à gratuidade. A predição será no seguinte sentido – dado um declínio no preço até X ponto, o incremento na demanda será de Y por cento. Ou coisa parecida. Finalmente, os pontos de falseamento poderão ser os seguintes: a baixa dos preços não refletir aumento na demanda, a elevação da renda não representar aumento na demanda.

Quando observamos a aplicabilidade do método no primeiro exemplo, tudo está de acordo, lembrando que é apenas um exemplo ilustrativo. No segundo, no entanto, vamos encontrar muitos problemas de aplicabilidade. Na fase de definição, está tudo certo, ambas são idênticas. Na explicação também, partindo da premissa que estamos usando o método dedutivo-hipotético, e é essa a premissa a ser testada. O busílis começa a partir do controle. Como vou fazer para variar a renda de uma grande fatia da população e ver o reflexo na aquisição de ingressos? Esse controle somente seria possível com intervenção governamental, que provavelmente  estará mais preocupada com outras políticas públicas do que com a compra de ingressos. Outro caminho seria convencer os clubes a baixar os preços, coisa mais factível, mas, a meu ver, mais indesejada. E daí a aferição fica prejudicada, restando métodos indiretos de coleta de dados, como as entrevistas e surveys. Isso tudo vai afetar diretamente a capacidade de predição, porque a base que precisará ser pesquisada é muito mais ampla, e as variações da população e do momento vivido por aquele agrupamento são compostos por fatores imensamente mais variáveis que aquelas do experimento da bola.

A grande questão é a seguinte: não há, para as Ciências Humanas, como seguir um único paradigma. Se realizarmos um experimento laboratorial de Ciências Naturais em qualquer parte do mundo, ele deverá ter resultados sempre iguais, com raras exceções muito específicas. O exemplo da bola deverá ter os mesmos resultados se forem realizados no Brasil, na Finlândia, na Tanzânia, no Camboja ou nas Ilhas Fiji, porque contém um conjunto limitado de variáveis e que são todas controláveis. Já a experiência dos estádios seria fundamentalmente diferente em cada um desses países, porque os brasileiros gostam de futebol, mas os finlandeses preferem hóquei, os tanzanianos curtem corridas de fundo e assim por diante. Não será possível obter repetibilidade pelo único fato de se mudar de país. As raras exceções que mencionei dizem respeito a especificidades. Em Naturais, por exemplo, não há como realizar experimentos em vulcões no Brasil. Outra questão diz respeito a uma ciência dura, a Meteorologia. Ela tem uma dificuldade preditiva muito grande, porque atende a uma série de sistemas não-lineares que tornam praticamente impossível de manter uma previsão sólida. Basta um ventinho maroto vindo de estibordo para mudar todo um temporal em uma insuficiente brisa de um dia tropical. Por esse motivo, dizemos que as Ciências Naturais são monoparadigmáticas, enquanto as Ciências Humanas são multiparadigmáticas. E o que é esse tal de paradigma?

Paradigma está por trás de tudo o que falei até agora. É uma padronização em que encaixamos um conjunto de procedimentos e que deve guiar as pessoas na busca de um resultado. É como se fosse um modelo: um paradigma de bom jogador é aquele que proporciona a si mesmo o preparo físico mais adequado, com boa técnica de execução de jogadas e ótima consciência tática. O paradigma de pesquisa científica para as Ciências Naturais, que incluem todas as fases que mencionei neste texto, é apropriado para elas, que não necessitam de um segundo, terceiro ou quarto paradigmas, o que é de rigor para as Ciências Humanas. Estas não podem ficar presas a um único paradigma, embora não possa deixar de tê-los. Precisa quantificar dados, estudar casos, coletar bibliografia e fazer muito, mas muito campo para fundamentar suas teses, do contrário... aí sim teremos mero achismo.

Não é ninguém menos do que Karl Popper, o pai da falseabilidade incluída no método científico, que diz que não faz sentido querer atribuir a mesma objetividade das Naturais nas Humanas. Ele diz que o cerne da Ciência é o conhecimento e que o cerne do conhecimento é a problematização, que vem da ignorância, no final das contas. As Humanas atacam problemas da mesma forma que as Naturais, e pelo mesmo propósito: superar a ignorância. Observar um problema social, por exemplo, causa o efeito de se defrontar com uma dissonância com o conhecimento que possuímos. E aí as Humanas seguem, de certa forma, o mesmo curso das Naturais, porque produz soluções abertas à crítica, e que são aceitas enquanto resistir a elas. Isso porque também aqui temos a mesma mágica de qualquer Ciência – ela não deve procurar SER a verdade, mas se APROXIMAR da verdade. A objetividade de toda Ciência reside na objetividade do método crítico, e isso toda Ciência tem, inclusive as Humanas. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Citei  Popper, e este é o livro que a quem me refiro:

POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.

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