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quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

O café filosófico do quotidiano – A maiêutica socrática como método de aquisição do conhecimento

(A maiêutica é um dos sistemas mais antigos de conhecimento, que embute a admissão da ignorância e o conhecimento de si mesmo)

Ora, a minha arte de obstetra assemelha-se em tudo à das parteiras, da qual difere por ser exercida sobre os homens, e não sobre as mulheres, e por cuidar das almas parturientes, e não dos corpos. E a sua maior qualidade é que por meio dela consigo discernir se a alma de um jovem dá à luz um fantasma e uma mentira ou algo de vital e verdadeiro. E tendo isso em comum com as parteiras, também sou estéril... de sabedoria. É verdadeiro o que muitos censuram em mim, de questionar os outros, sem nunca me pronunciar sobre nada, por ser ignorante.

Sócrates, no Teeteto

Olá!

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Eu sou uma das pessoas mais fáceis do mundo de se presentear. Não ligo para roupas caras, acho que até mesmo a recorrente moda atual de calças rasgadas já tinha sido lançada por mim nos idos da década de 80. Explico: calças de brim não são exatamente um distintivo do conforto, mas da durabilidade. O momento em que vai se chegar no primeiro coincide com o término da segunda, e aí vai daquilo que você dá mais valor. A diferença fundamental é que eu não comprava a roupa já rasgada na loja, e o pessoal me olhava meio torto, um misto de mendicância com sujeira fora do lugar. Quando o arregaço estava meio grande, comprava um patch de alguma banda na Woodstock* e pediu para minha mãe pregar. Ela tinha um bom tanto de desgosto com isso. Gostaria de um filho mais elegante, que tivesse um bom tanto de vaidade. Coisas que não podemos controlar, nem eu, nem a defunta genitora.

Voltando ao assunto, qualquer paixão me diverte, e a galera vai direto nos livros quando quer me fazer um regalo. Modéstia à parte, a primeira coisa que se vê quando se abre a porta do apê é uma parede de livros, que já mencionei neste espaço com altivez. Só que os filhos querem variar um pouco, e às vezes me agradam com itens gastronômicos, como uma cerveja artesanal, um bolo diet ou algum item de coleção. De quê? Ora, de café. Desta vez, ganhei um coador Clever, que parece completamente comum, mas é cheio de mumunhas.


Embora tenha uma aparência completamente normal, é um dripper que reúne características de infusão e percolação. Em miúdos trocados, ele retém o café antes de passá-lo, usando uma válvula que é acionada através da pressão de um anel de acrílico.


Isso faz com que seja solucionado dois problemas. Métodos de infusão geralmente fazem boa extração dos óleos essenciais do grão moído, mas costumam deixar muitos resíduos. Já processos de percolação filtram bem os resíduos, mas a coagem é rápida demais, desperdiçando boa parte da extração.


Como o café fica lá quietinho, junta-se o melhor dos mundos. O abafamento é rápido, o que faz com que a temperatura não se perca muito.


Após o tempo, basta pousar o dripper em uma xícara ou copo. Isso fará com que o anel levante a válvula, liberando o café para o recipiente.



Nome do utensílio: gotejador temporizado (Clever)

Tipo de técnica: mista (infusão e percolação por gravidade)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio-grosso

Dinâmica: o pó é colocado em um filtro, como normalmente ocorre com gotejadores, mas a água fica retida pelo tempo necessário à extração dos óleos essenciais, sendo liberada no momento em que o gotejador é colocado em um recipiente que pressione o anel de retenção, liberando a válvula de saída.

Resíduos: Nenhum

Temperatura de saída: Média-alta

Nível de ritual: Médio

O primeiro café que passei ficou um autêntico petróleo, daqueles em que é difícil distinguir qualidade. Apontei o nariz para o outro lado, e o segundo café tinha a alegre coloração de um chá mate. Foi no terceiro que as coisas começaram a ir para o lugar. Xinguei um pouco, mais pelo costume do que por uma real frustração com o desacerto, e fiquei me fazendo perguntas, como se eu fosse debatedor de mim mesmo, para espremer a verdade, como faria Sócrates.

Não, nada disso. Sócrates não faria isso consigo mesmo. Ele dizia saber que nada sabia, então não usaria um método tão tosco. Ele criou, isso sim, uma sistemática simples para alcançar o conhecimento através da autodescoberta, a que deu o nome de maiêutica, uma das primeiras lições sobre Teoria do Conhecimento dos cursos de Filosofia. Bom... o ano está quase acabando, vamos a ela.

Sabemos que Sócrates representa a primeira grande virada no pensamento grego clássico. É bem verdade que os sofistas, como Górgias de Leontino e Protágoras de Abdera já tinham saído das especulações cosmológicas e entrado no pantanoso mundo do antropocentrismo, mas eles constituíram uma corrente pouco uniforme, e que em certo momento se preocupavam mais com a retórica e com a vitória nos debates do que propriamente no desenvolvimento lógico dos pensamentos. Falo melhor sobre o tema neste texto. Sócrates não é só alguém que volta seu olhar para a questão ética, mas é também um defensor do desprendimento filosófico com relação a compensações monetárias.

Conta-se que o oráculo de Delphos profetizou que Sócrates era o homem mais sábio de todo o mundo. Isso o levou a uma reflexão: "Mas como? Justo eu que assumo minha ignorância com relação a tudo...". Mas vamos pensar juntos. Sabedoria e conhecimento não são sinônimos. Conhecimento é a propriedade de saber o que as coisas são, como funcionam, como surgiram e assim por diante. Disso, nós sempre podemos alegar ignorância, bastando que não as saibamos. Já a sabedoria é a sagacidade de se usar as coisas que se sabem, e tem a ver com a estrutura do conhecimento: momento de usá-lo, situação correta, conveniência e assim sucessivamente. Dessa forma, sabedoria tem mais a ver com intuição do que com cognição. Mesmo que se tenha pouco conhecimento, é possível agir com sabedoria. Inclusive, Sócrates descobriu a forma mais sábia de lidar com o conhecimento, porque é a alegada ignorância que faz com que as portas do aprendizado constante sejam abertas e retira a presunção de quem julga saber.

O primeiro passo é conhecer a si mesmo. O autoconhecimento é sempre uma forma de conquista pessoal, uma chegada a um amadurecimento interior. Mas esse autoconhecimento não vale somente para si mesmo. Olhar para os olhos da alma é ver a parte divina daquele com quem se interage, e também nele residem saberes que podem ser deslindados.

Sócrates cria, então, um método de investigação filosófica de caráter dialético. Para quem não sabe, a dialética funciona do seguinte modo: quando estamos redigindo um ensaio qualquer, nós geralmente seguimos linearmente com o desenvolvimento, partindo de um questionamento até chegar a uma conclusão. Quando o método é dialético, ele não segue por uma linha reta, mas por um ziguezague onde as ideias vão se contrapondo umas às outras. Normalmente é difícil de estabelecer esse movimento pendular no âmago da nossa pequena cabeçorra, porque tenderemos à linha reta, mas ela carrega consigo um defeito: ao não ter oposição, o pensamento segue pelo seu próprio viés. Para obter um vagar entre as ideias, é preciso que elas discutam entre si, e a maneira mais fácil para que isso aconteça é através do diálogo, onde a linha de tendência natural em linha reta é transformada na alternância de polos e o trânsito se estabelece. Assim, a estrutura dialética é de declaração e refutação, uma seguida da outra, até a chegada ao consenso, e, por tabela, ao conhecimento.

É de se supor que essa mera característica não era exatamente uma novidade, sendo que Zenon de Eleia ficou célebre pelo uso da dialética. O que Sócrates trouxe tem a ver com sua alegada ignorância e com o conhecimento preexistente no seu interlocutor.

Sócrates acreditava, como mais tarde seria reforçado pelo Racionalismo, que o conhecimento era inerente ao ser humano, necessitando apenas despertá-lo. É célebre um diálogo em que Sócrates consegue extrair de um escravo um difícil teorema geométrico, só na base das perguntas. Com isso, Sócrates não se nomeia como professor, sábio, mestre ou coisa que o valha, mas como parteiro, um parteiro de ideias. Segundo sua elegante tese, a alma de um ser humano estava prenhe de conhecimento, que somente não vinha à luz por conta das preconcepções e opiniões acríticas. Isso é muito difícil de reconhecer, porque não nos vemos de fora, e retirar essa verdade de nosso interior é tão difícil quanto uma mulher realizar o próprio parto. A função de Sócrates seria o de reconhecer a ideia existente em seu interlocutor e trazê-la para fora, dar-lhe a luz. Segundo ele, a alegada ignorância era necessária para não contaminar o processo. Na Grécia antiga, a função de parteira era realizada pelas anciãs, já despida das paixões da maternidade. Idem com o parteiro das ideias, que não pode fazer senão os questionamentos certos para exercer seu mister. Um parteiro que coloque seu próprio conhecimento no processo poderá torná-lo impuro.

Maiêutica era o nome que Sócrates deu a essa técnica. Em grego, maieuo significa parto, e maieutike é o ofício de trazer os bebês à luz, coisa na qual sua mãe Fenarete era versada. O processo consiste em formular perguntas simples ao redor de um tema e consequente construção de conhecimento a partir das próprias ideias do contribuinte. Essas perguntas são chamadas de ironia pelos manuais de filosofia, mas é preciso esclarecer que não faz sentido achar que Sócrates estava gozando da cara de seu "parturiente". A raiz das palavras eirein (perguntar) e eironea (dissimulação) foram traduzidas para o latim da mesma forma, o que causa a confusão. A ironia socrática, portanto, corresponde às perguntas do diálogo, feitas, no entanto, sob encomenda para extrair coisas que não estão aparentes na ideia inicial. O fluxo maiêutico então dá seu segundo passo, o de fazer reconhecer que a ideia que se tinha anteriormente não era precisa, mas cuja função do parteiro não foi agregar nenhum conhecimento novo, apenas aclarar o já existente. É como se a ironia fosse a contração, e a maiêutica fosse mais um tanto que o bebê do saber desse rumo ao mundo.

É importante notar que uma parte do método consiste em fazer refutações. Como visto, a refutação faz parte do mecanismo dialético e, grosso modo, faz perceber que existe um lado de lá com relação a nossas crenças. Refutar, portanto, não tem aquele sentido bobo dos enfrentamentos hodiernos da internet, onde há uma torcida que está mais preocupada com o volume da voz do que com a boa construção do argumento. Refutação, quando feita seriamente, aponta outra direção para o pensamento em fluxo, que pode ou não conter erros.

Era isto que eu queria trazer para vocês. A maiêutica tem uma estrutura simples e que engana por parecer “comer pelas beiradas”, mas que solidificou toda uma esfera de pensamento que atravessou os tempos, com aperfeiçoamentos e poucas (porém sólidas) contestações, como as de Nietzsche, que sem dúvida vou tratar em breve. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

O principal texto sobre a maiêutica está contido no Teeteto, e a história do escravo está no Mênon. Como já recomendei ambos, vou listar para vocês a obra platônica onde Sócrates menciona o autoconhecimento:

PLATÃO. Primeiro Alcibíades. São Paulo: Penguin, 2022.

* Woodstock é uma loja de discos que ainda hoje existe (com um período de fechamento), e que fica na Rua Dr. Falcão. Ficou famosa na década de 80 por trazer do exterior fitas de vídeo que eram colocadas em um aparelho cassette a pleno pino, com umas três caixas acústicas, fazendo a alegria do pessoal que curtia um metal, mas não tinha muito onde curtir.

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