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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é esse tal de (28 - Direito)

Olá!


Nos volteios que a vida dá, nós somos um objeto de transformação. Sendo assim, tudo o que nos rodeia e é influenciado por nós vai sendo igualmente transformado. Desse jogo de opiniões e ações brota um mundo melhor, ou não. Uma das coisas que eu mais escuto falar é que se precisa dar uma virada na questão educacional, com o que concordo plenamente. Não estou pensando nos malucos que veem sexo e comunismo por toda a atividade docente (conforme já disse por aqui),  mas há um problema fundamental, que é dizer para onde essa guinada tem que ir. Há gente que acha que a escola deve primordialmente ensinar a trabalhar, há gente que já acha que o foco deve ser no convívio, outros ainda pensam que educação corresponde a despertar de talentos. Mas há coisas mais objetivas, que podem ser mais facilmente implementadas do que revoluções culturais. Eu, por exemplo, acho que o pior déficit educacional do brasileiro não está no Português ou na Matemática, mas no reconhecimento das noções de direito, para que aprendamos primeiro a sermos cidadãos, e depois pensarmos em trabalhar ou expor talentos. Isso porque você pode rodar pelo lado que for, não há como fugir do convívio, que tem, naturalmente, certos limites, sob pena de podermos considerar a nós mesmos como feras guiadas pelo instinto. Não, isso escapa de nossa natureza, e é preciso convolar a disposição moral que nos mantém vivos em regras sistematizadas. O nome disso é Direito, e é esse o nosso tema de hoje.



O Direito é fruto da vida em sociedade. Conforme a humanidade foi se agregando ao redor de núcleos, mais e mais foi sendo necessário estabelecer regras de convívio. No início, o consenso entre os membros de uma comunidade era bastante difuso, sendo que os acordos tácitos e explícitos eram feitos de forma oral. No fio do bigode, como se dizia. No entanto, como bem sabemos, a palavra humana (e os fios de bigode) não era de todo confiável. Não somente por falta de honestidade, mas também pela dificuldade na interpretação do que se deseja e na memória de quem faz acordos. Por isso, com a evolução social, as regras passaram a ser escritas.

A princípio, o imperativo da normatização era a força, ou seja, mandava quem tinha mais "músculo". Posteriormente, com a aproximação do fenômeno religioso à política, a força saiu do poderio bélico puro e simples para ganhar o estatuto de vontade divina, o que, considerando o contexto em que surgiu, revelou-se um caminho de duas vias. Por um lado, trouxe direitos que extrapolavam a mera força, já que os mandamentos da divindade garantiam, por expressão de sua sacratíssima vontade, direitos àqueles que não teriam outra forma de obtê-los. Por outro, garantiu poder normatizador a uma nova casta: a dos sacerdotes, que aprenderam bem a se alinhar aos musculosos e compartilhar o poder. Somente bem mais tarde as sociedades se aperfeiçoaram de modo a proporcionar uma participação mais ampla na construção de uma composição jurídica, embora ainda existam sociedades teocráticas e também se veja o uso da força como fiadora das normas.

Vendo por aí, o Direito parece algo bastante simples, inerente a qualquer sociedade e, portanto, presente na vida de todo cidadão. Mas é óbvio que a coisa não é tão simples, e precisamos recorrer a outros conceitos, como ética e justiça.

Uma das discussões mais recorrentes no campo ético é como estabelecer o que é um agir correto, e, grosso modo, esse tem a ver com os benefícios de uma ação. Pode-se interpretar a sociedade como a soma dos seus indivíduos ou como um organismo próprio, mas sendo de uma forma ou de outra, o resultado que temos é o mesmo: a ação ética, via de regra, beneficia a sociedade. Isso porque se requer um equilíbrio permanente entre os diferentes membros e classes a que estes pertencem, de maneira racional e imparcial. Esse equilíbrio é o que chamamos de justiça. A tarefa do Direito seria instrumentalizar essa virtude, através não somente dos códigos escritos, mas dos exercícios das prerrogativas de petição e defesa.

Mas de onde parte essa ideia de Direito? Como nós faremos, a partir da concordância de que devem existir regras que rejam um organismo social, para balizar o que é certo ou errado, moral ou imoral, justo ou injusto? De onde vem a “alma” do Direito? É através das fontes formais de direito. É um assunto muito importante porque vai nos ajudar a compreender qual é o papel de um Estado e do ethos da sociedade na construção de um mecanismo jurídico.

A mais antiga das fontes de direito é o costume. Como é fácil de intuir, o costume é aquilo que um determinado meio social pratica quando defrontado com os eventos de seu dia-a-dia, de uma maneira razoavelmente convencional. Não se trata de um mero hábito, pois este não carrega consigo uma ideia coercitiva, do tipo "se eu não fizer tal coisa, serei penalizado de tal forma". Ou seja, o costume traz consigo uma espécie de definição de causas e consequências, e que regulam de modo informal as relações entre os membros de uma comunidade.

Poderíamos imaginar que o costume, por si só, seria suficiente para distribuir o Direito entre os membros de uma sociedade. Acontece que o costume tem uma ação marcadamente intuitiva, o que nem sempre equivale a um fazer justo. Por isso, com o passar do tempo, a mediação de tribunais compostos por notáveis e a escrituração das disposições consuetudinárias passou a ser prática mais segura. Isso dá origem às leis, e a fonte mais usual a partir da modernidade é a legislação. A princípio, com o reconhecimento do Estado como entidade à qual a população consigna a tarefa de sistematizar o seu equipamento legal, fica a cargo do poder legislativo elaborar por meio escrito todas as leis necessárias para o bom funcionamento da sociedade. Ao contrário do costume, a lei é tarefa típica de Estado, que possui não só o poder de legislar, mas de garantir a execução dessas leis e de julgar os casos em que as mesmas colocam situações de conflito.

Outras fontes são subsidiárias à lei, e atuam na sua vacância. Temos a analogia, que busca se utilizar de uma lei já existente para resolver situações onde exista algum tipo de similaridade. Um caso bastante recente foi a criminalização da homofobia com base na analogia com a lei contra o racismo. Percebam as semelhanças: um grupo social é segregado por motivo fútil, incluindo ofensas físicas e à honra, de modo a dificultar imotivadamente o seu convívio no restante da sociedade. A analogia, portanto, se presta a aproveitar legislação preexistente e similar, de modo a não se fazer demorar a feitura da justiça pela ausência de legislação. Outra fonte secundária é a doutrina, constituída especialmente pelos ensinamentos dos juristas. Apesar de não ter caráter normativo, é usada a torto e direito pelos juízes no exercício de seu trabalho, e as sentenças são povoadas de citações aos grandes mestres causídicos. Em questões onde restem dúvidas de aplicabilidade, a consulta aos acadêmicos funciona como uma espécie de busca pelo consenso, e recorda um pouco o recurso aos notáveis feitos outrora. Por fim, temos outra fonte secundária que é a jurisprudência. Nesta fonte, são utilizados os precedentes para que se dê apoio em uma causa atual. Em outras palavras, busca-se um caso semelhante no passado e aplica-se no julgamento presente, consagrando uma certa maneira de se decidir. A fonte jurisprudencial difere da analogia porque esta última aponta para uma lei preexistente, enquanto na primeira temos um julgamento anterior cuja decisão é aproveitada. Percebam como essas três fontes secundárias estão no âmbito do judiciário, cuja tarefa não é produzir leis, mas fazer julgamentos com base nelas. É por esse motivo que ficam em um nível abaixo na hierarquia de importância dessas fontes.

Tendo essas informações na mão, podemos dar uma rápida olhada nas escolas de pensamento jurídico.

O Direito não é ciência exata. E, como boa ciência humana, tem mais dificuldade de consenso do que as chamadas ciências naturais, o que lhe confere vasta gama de correntes filosóficas. São diferentes concepções acerca do modo com o qual se observam os fenômenos jurídicos, e que podem levar a interpretações diametralmente opostas de um mesmo fato. Vamos a eles.

Começaremos pelo Jusnaturalismo. Trata-se de uma corrente que entende existir uma anterioridade natural com relação às normas especificadas, ou seja, ainda antes que qualquer regra seja escrita, o homem já possui direitos. Em resumo, existe uma ordem que preexiste ao próprio Direito, que todo homem possui, independentemente de estar baixada em leis escritas. O jusnaturalismo começou com o reconhecimento de uma divindade legisladora, que seria esse elemento de anterioridade: Deus concede ao homem um mundo no qual poderá reinar; no entanto, há um conjunto de princípios que já vem no "pacote", como o direito à vida e à liberdade. Mais tarde, a divindade foi substituída pela racionalização do conceito de justiça, tornando-o laico e disponível a qualquer modelo de sociedade. É caracterizado por uma tríade fundamental: é universal, porque comum a todas as sociedades; é imutável, porque são fundamentos que são sempre os mesmos, e é perpétuo, porque são princípios válidos a qualquer tempo. Está fortemente vinculado ao conceito de costume, mesmo que use as leis em suas normatizações.

A segunda grande corrente é o Positivismo. Eu já falei sobre a doutrina de Auguste Comte neste texto, e é sobre ela que os juristas contemporâneos dele se assentaram para elaborar uma nova concepção de Direito. Para fazer um rápido recuerdo, o Positivismo trata todo fenômeno social como uma ciência, descartando qualquer ideia metafísica de seus cadernos, incluindo a noção de que há uma deidade por trás das normas. Essa cientificidade carrega consigo todas as suas características, como um objeto de estudo bem delineado, o empirismo, a verificabilidade, o processo indutivo e etc. Desta forma, o Positivismo é contrário ao Jusnaturalismo, porque o elemento abstrato é descartado nessa corrente. Em relação ao jusnaturalista, o positivista jurídico é muito mais objetivo: seu objeto de estudo é unicamente a lei escrita. Juízos de valor são coisas que tornam "bambas" as análises jurídicas, primeiro porque são subjetivos, e se deixam levar pela interpretação individual; e depois porque afetam uma realidade que, no fundo, é mutável, não havendo sentido na fixidez do ordenamento jurídico. Em suma, o Positivismo trata da lei escrita, com normas impostas pelo Estado, o que dá um maior nível de segurança jurídica.

No esteio da novidade do Positivismo, originaram-se muitas escolas da filosofia do Direito, sempre procurando manter a sua espinha dorsal. Uma das mais significativas é a Escola da Exegese. O grupo ficou conhecido por este nome muito utilizado nos círculos religiosos por conta dos seus propósitos similares. Um exegeta é alguém cuja função é dar interpretações a textos específicos (exegese, palavra grega, pode ser traduzida como "colocar para fora"). A diferença é qual texto deve ser interpretado. No caso, os textos das leis. Isso porque os membros desta escola entendem que as únicas fontes de direito válidas são as normas escritas, e que, com base em um racionalismo surgido a partir da Revolução Francesa, temos a existência de uma espécie de legislador universal, uma entidade abstrata que, agindo de acordo com a razão, sempre redundará na melhor norma possível, e restará fazer a sua correta interpretação, a tal da exegese. A análise então passa para o campo gramatical e filológico, na busca de um sentido literal e totalmente transcrito pela lei. O motivo pelo qual esta vertente se apoiava unicamente na letra seca da lei, descartando por completo o direito natural, não tem a ver com uma suposta dureza de coração, mas com o fato de que somente o preto no branco garante segurança jurídica, ao contrário de apelos aos direitos divinos por uma autoridade monárquica, por exemplo.

A seguir, podemos falar sobre o Normativismo Jurídico. Seu principal papa, o filósofo austríaco Hans Kelsen, encampou os princípios positivistas e definiu cientificamente o objeto de estudo do Direito: a norma jurídica. De certa forma, procura isolar esta nova ciência jurídica de todos os outros elementos que se possam confundir com ela. Embora seja certo que a norma jurídica possa ser vista do ponto de vista hermenêutico, onde tem influências históricas, sociais, filosóficas e políticas, o que Kelsen e os membros dessa corrente querem é dar uma abordagem que se assemelha mais a uma fenomenologia, mirando seu objeto de estudo despido de suas capas adjacentes.

Os normativistas enxergam uma divisão na realidade que se desenrola no mundo: uma realidade fática, que traduzem as coisas como são, e uma realidade formal, deontológica, que fala em como as coisas deveriam ser. É nesse segundo âmbito que vive o Direito, um universo estrutural que não se confunde com a outra realidade. Dessa forma, o Direito se exibe como estrutura, de modo a constituir uma espécie de edifício em aspecto piramidal, onde cada norma se encadeia à outra em uma hierarquia. Pegando como exemplo a estrutura legal brasileira, temos uma lei maior, que chamamos de Constituição, da qual nenhuma das demais disposições legais podem estar desligadas. As emendas estão relacionadas obrigatória e diretamente à Constituição, já que a emenda sem constituição simplesmente não existe; ela ganha força constitucional na medida em que se integra à mesma. As leis complementares são subordinadas à Constituição porque são determinadas por esta para que se aperfeiçoe justamente o seu cumprimento. Seguem as leis ordinárias e as leis delegadas, pelas medidas provisórias, que têm efeito imediato por período determinado, e finalmente temos os decretos legislativos e as resoluções. Mas e a própria Constituição, se subordina a algum outro tipo de norma? Na filosofia dos normativistas, há ainda um outro degrau que vai acima da Constituição, que eles denominam de norma fundamental. Esta, ao contrário de todas as demais, não é uma lei escrita, e é totalmente abstrata, consistindo na aceitação do sistema jurídico do país, como ocorre com o Contrato Social descrito pela turma de Rousseau, Locke e Hobbes. Em outro exemplo, podemos pensar em uma pessoa religiosa, um cristão, digamos. Seu texto sagrado é a Bíblia, que contém livros, capítulos e versículos, hierarquicamente dispostos no volume maior. Mas, enquanto para um cristão esse é um livro sagrado, para um ateu tem valores que não passam de históricos ou literários. Quem atribui valor de lei à Bíblia não é uma determinação escrita, mas a confiança de que ela representa um código válido para a fé dessa pessoa. Assim é a norma fundamental. Da mesma forma que aceitamos implicitamente as regras de convívio social, também implicitamente reconhecemos o ordenamento jurídico como plenamente válido. Ou seja, não há uma lei que nos diga que devemos obedecer às leis, porque esse já é um pressuposto de validade de todo o sistema normativo.

Por fim, vamos falar sobre o Sociologismo Jurídico. Na mão contrária ao Normativismo, e no embalo de outras correntes menores, como o Historicismo, que veem a transformação das leis no transcorrer do tempo, os membros deste grupo são sociólogos que inserem o fenômeno jurídico no conjunto dos fatos sociais, o seu objeto de estudo específico. Eles entendem que, como não há direito fora das sociedades (esta corrente também é positivista), não há que se falar em normas jurídicas como um elemento estranho a análise social. Apenas para recordar, fato social é o objeto de estudo da Sociologia. Na sua metodologia, são as coisas que podem ser analisadas como qualquer fenômeno científico, mais especificamente as ações e representações em que existe uma coação, uma obrigação de fazer ou não fazer.

O Sociologismo Jurídico acreditava, em oposição às correntes que davam a lei como suficiente para compor o organismo jurídico, que a jurisprudência deveria ser amplamente utilizada. Isso porque, no seu entender, o legislador universal era uma ilusão, tendo em vista a impossibilidade, mesmo com o pleno uso da razão, de se abarcar a totalidade das circunstâncias da vida social através da lei.

Existem outras vertentes da filosofia jurídica, mas acho que por ora basta, para não ficar muito maçante.

Meu filho é advogado e manja de todos esses paranauês. Normalmente eu pediria para ele revisar este texto, só que hoje em dia ele está morando bem longe, e está a mil por hora para juntar um pouco de grana e casar. De toda forma, espero que tenham gostado, porque é uma daquelas áreas contra a qual temos um monte de visões equivocadas, e que é muito interessante por si só. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Gostei um bocado do canal do professor Ronaldo Bastos, muito didático e que trata de maneira bastante filosófica sobre o assunto.

https://youtube.com/user/ronaldobastosjunior/playlists

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