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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Estado laico: o que ele é e o que ele não é

(Há muitas dúvidas sobre o Estado laico. Dúvidas, não; o que há são enganos. E isso faz com que certos problemas surjam sem que as enfrentemos da maneira que devem).

Olá!

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Depois de um bom tempo, o atual mandatário do poder federal conseguiu cumprir uma de suas promessas: nomear, para o STF, um ministro "terrivelmente evangélico", nas palavras dele. Trata-se de André Mendonça, que foi aprovado com uma certa má vontade pelo Senado, haja vista ao longo chá de cadeira que o mesmo tomou. Desde o dia 07 de julho seu nome já estava indicado, e sua aprovação foi relativamente apertada, mas com comemorações e manifestações em línguas.

Há problemas substanciais na sua indicação e agora nomeação? Não no nome em si, afinal de contas parece a mim que ele possui os predicados necessários para ocupar a vaga: tem mais de 35 anos, notório saber jurídico e reputação ilibada. O grande susto vem no motivador de sua indicação - o tal terrível evangelismo. Isso acrescenta um item ao critério que contraria uma premissa básica da constituição - a laicidade do Estado. Afinal de contas, esse critério, a exigibilidade de um credo específico para ingressar na corte guardiã da carta magna causa um arrepio na espinha que poucas vezes eu tive antes.

O novo ministro prometeu que a Bíblia é para sua vida, e, no STF, o que regerá sua conduta é a Constituição. É bom que o diga, mas, mais importante ainda, é bom que o siga. O outro ministro nomeado pelo atual governo, Nunes Marques, tem tido uma fidelidade canina às posições dos atuais mandatários, o que pode dar uma mostra do que lhes é exigido. A justificativa de que um país com trinta por cento de evangélicos tem agora uma representação próxima a 9 por cento do Supremo é falaciosa. Afinal de contas, as convicções religiosas dos outros dez membros não foram levadas em consideração na hora da escolha, e, mesmo que se declarem católicos, como a maioria da população, sabemos que a prática real dessa religião está muito distante do que dita a igreja em questão.

Mas qual é a razão para o bode todo? Eu já disse lá em cima: não dá para afirmar que um ministro evangélico seja um atentado ou uma ameaça ao Estado laico, mas é um daqueles sinais que não podemos deixar de perceber e de ficar com as orelhas em pé. Afinal de contas, tudo o que não se espera de um ministro do STF é que ele já esteja enviesado no nascedouro. Ora (direis), qual deles não é? Sabemos que todos os mandatários escolhem ministros que lhes convêm, mas eu nunca tinha visto algo tão descaradamente parcial. A laicidade do Estado é uma das maiores garantias de liberdade que nós gozamos nas democracias, e a cara com a qual o processo todo está se desenrolando tem um bom cheiro de feijão queimado.

Só que há um monte de confusões quando uma pessoa qualquer chama a atenção desse detalhe, como estou fazendo agora. Por esta razão, e porque muita gente não sabe exatamente o que significa esse conceito, vou partir para a minha colaboração, respondendo o que ele é e o que ele não é.


Vamos utilizar alto didatismo nesta tarefa, dando passos bastante progressivos. Comecemos com…

O que é Estado?

Este é um daqueles casos em que a pessoas se confundem quando precisam explicar do que se trata, de tão óbvio que parece. Mas é preciso tomar um pouco de cuidado, porque misturamos aqui coisas diferentes, como governo, nação e pátria. Isolando-o dos demais termos, Estado é uma entidade abstrata que representa todo o conjunto organizacional de um determinado país, de forma a organizá-lo administrativamente. Ou seja, uma sociedade, uma vez existente, precisa de alguma forma de organização, onde se estabelecerá a forma com a qual será governada, qual o escopo de suas leis, a maneira com a qual a população participará da vida social, os padrões monetários e assim por diante. Governo é outra coisa. Governo são as pessoas escolhidas para exercer a administração do Estado, seja por meio de eleição, sucessão hereditária, tomada de poder ou outro meio. Nação, por sua vez, designa uma população que se agregou voluntariamente em um determinado território e que possui características comuns, como a língua e a moeda. Por fim, pátria é a ligação afetiva com o lugar onde se nasceu ou se adotou como o espaço por onde se desenvolverá a vida. De todos os termos, é o menos tangível, porque está relacionado a sentimentos.

O que é laicidade?

Já ouviu falar daquela frase “não junta lé com cré”? Ela vem de uma comparação antiga, entre LEigos e CRÉrigos, no dizer popular. Não saber juntar leigos com clérigos significa não saber diferenciá-los, mas a coisa é bem simples. Leigos (ou laicos) são aqueles que não são versados ou iniciados nas religiões, de forma a não serem sacerdotes válidos. A laicidade, portanto, é a qualidade daquilo que está fora do contexto religioso, muito embora o conceito de leigo signifique, em algumas religiões, todos aqueles que são membros não investidos de uma comunidade.

Então, o que é Estado laico?

O Estado laico é aquele em que há uma clara separação entre a organização político-administrativa e a Igreja, de modo que um não interfira no outro. Nem a Igreja ditará regras e normas para o Estado, e nem o Estado especificará como a Igreja deverá exercer seus cultos.

Como surge a ideia de um Estado laico?

Como acontece com as divisões de poderes, o Estado de direito e a participação popular na gestão da coisa pública, a separação entre Estado e Igreja vem da Revolução Francesa. É preciso lembrar que a França pré-revolucionária era dividida entre três estamentos, sendo que o primeiro, circunscrito ao clero, tinha uma fatia de poder tão poderosa quanto a dos membros do segundo, os nobres. Essas duas camadas geralmente aliavam seus interesses para dar as diretrizes aos governos de então, de forma a existir uma intervenção marcante da Igreja sobre o Estado. Isso representava uma conformação do Estado aos moldes de uma Igreja específica, o que excluía qualquer outra (ou mesmo sua ausência) das esferas de poder.

Isso significa que o Estado laico é uma ideia moderna?

Mais ou menos. É bem verdade que a sua consagração veio com o advento da Revolução Francesa e com o expressivo reforço da 1ª emenda da Constituição dos Estados Unidos, mas há vários precursores da filosofia de não misturar Estado e Igreja, um deles até bem conhecido, um tal de Jesus. Ele dizia que deveria se dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (Mt 22, 21), que seu reino não era deste mundo (Jo 18, 36) e ainda tratava de pagar seus impostos (Mt 17, 24-27). Mas há autores medievais que já defendiam o abandono do poder secular pelos membros do clero. Um deles é Marsílio de Pádua, cuja obra Defensor Pacis (citada mais abaixo), ainda no século XIV, faz entender que a doutrina de “plenitude de poder” dada aos papas era um engano gerador de abusos. Como custodiantes das verdades divinas, os membros do clero deveriam se afastar de objetos de corrupção, dos quais o poder secular dos reinos e impérios eram prenhes. Seu prêmio foi ganhar um selo de herético na testa e com ele conviver pelo resto dos seus dias, mas já fazia notar como o poder eclesiástico fazia mal à sociedade quando interferia no poder secular. Marsílio comparava um reino a um organismo físico, onde cada órgão exerce uma função adequada a ele, e que não se presta a outra coisa além disso. Fora dessa estrutura orgânica, a sociedade não funciona como deveria. Imagine, por exemplo, um fígado no lugar do coração, uma glândula substituindo um músculo. Assim são os clérigos – devem se ocupar das igrejas, e não dos governos.

Quer dizer que Estado laico é igual a Estado ateu?

Não. Esse é um dos maiores enganos a respeito do Estado laico. A laicidade do Estado não significa que nenhuma religião será admitida ao exercício da população, mas que ela terá plena liberdade religiosa, sem que isso constitua nenhum óbice ao exercício de seus direitos. Um Estado ateu seria aquele que proibiria o exercício de qualquer religião, como fizeram alguns governos comunistas no século XX. A confusão se dá porque o Estado laico é uma das poucas bandeiras que são erguidas por ateus e agnósticos em geral.

Então por que os ateus vivem defendendo o Estado laico?

Porque a liberdade religiosa inclui a “opção” de não adotar religião alguma, e que a legislação não penderá para qualquer tipo de crença. Coloco essa palavra entre aspas porque ninguém opta por ser religioso ou não. A coisa acontece, muito simplesmente. Se vocês quiserem saber do meu exemplo, aconselho à leitura deste texto.

Não bastaria que o Estado não fosse teocrático?

Não bastaria. A teocracia é uma forma de governo em que o núcleo do Estado fica sob administração de uma religião, que passa a transmitir seus valores como únicos válidos e vigentes. Entretanto, é possível que um governo leigo traga elementos religiosos para a vida social de toda a população. Isso acontece quando, por exemplo, são invocados motivos de fundo religioso para que um direito seja negado.

Se na cultura de uma população prepondera o elemento religioso, qual a vantagem de se ter um Estado laico?

É bem verdade que todo o ordenamento de uma sociedade acaba sofrendo influência das religiões que a compõe. Ocorre que, uma vez formatado, esse “jeito de ser” se desprende do elemento religioso e vai fazer parte do sentido comum que conduz a população. Vejam como muitos dos mandamentos cristãos fazem parte do corpus legislativo de nosso país: não roubar, não matar, cuidar dos desvalidos e assim por diante. Ocorre que, se você retirar a religião e não colocar nada em seu lugar, hoje em dia esses valores serão mantidos da mesma forma, porque já se encontram arraigados em nosso meio. O mesmo não pode se dizer sobre a questão da castidade. Como diz respeito à individualidade da pessoa, e não do mecanismo social, exigir pureza sexual dos componentes sociais é uma intervenção injustificável. 

E os candidatos afiliados a uma religião? Deveriam ser vetados?

Não a princípio, mas os mesmos não deveriam usar o mote da religião para buscarem ser eleitos. Isso porque, quando alguém vai fazer parte do governo em um Estado laico, não será representante unicamente da camada populacional que o elegeu, mas de toda a população. A lei que um legislador propuser que estiver calcada em sua convicção religiosa atingirá uma parte da população que não compartilha da mesma convicção, podendo até mesmo prejudicá-la. A questão mais óbvia que temos hoje em dia diz respeito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. A proibição deste ato visaria dar satisfação aos eleitores do político religioso meramente no sentido moral, porque os mesmos não adquirirão nenhum benefício, enquanto as pessoas atingidas verão seus direitos sofrerem um retrocesso.

Mas a democracia não é uma ditadura da maioria?

Não, isso é falacioso. E repito: a maioria vota por representantes que devem zelar não somente pelos direitos de seus eleitos, mas da população inteira. A pretensa ditadura da maioria é aplicável à escolha dos representantes em si, e não na ausência de representação para as minorias. Já pensou que bonitinho se a maioria escolhesse representantes que fossem contrários ao direito de propriedade? Você não gostaria de ter seu direito mantido mesmo sendo integrante da minoria dos proprietários?

E todo o aparato religioso já arraigado no dia-a-dia, deve ser extinto?

Aí é que está. Há coisas como feriados e nomes de logradouros que, de fato, ferem o Estado laico, mas sejamos francos: quando você fala que vai a São Paulo está pensando no santo barbudo com uma espada na mão e uma epístola na outra? Não, né? São coisas culturalmente marcadas e que, de certo modo, já perderam o sentido original. A cidade de São Paulo está pouquíssimo vinculada à personagem bíblica São Paulo. Isso significa que, na ordem de prioridades para um Estado legitimamente laico, há coisas que são muito mais importantes. Fere muito mais a laicidade do Estado os cultos realizados nas casas legislativas e nos tribunais, a adoção de ensino religioso específico nas escolas públicas e os contenciosos entre criacionismo e evolucionismo que ameaçam dividir as aulas de Ciências do que um “deus seja louvado” em um dinheiro qualquer. Além disso, também aqui há uma participação do aparato cultural, já que exigir a extinção de feriados importantes como o Natal ou a Páscoa mexem com as tradições sociais. E um feriadinho é sempre bom, não é mesmo?

Dizem que o Estado laico é causa para uma sociedade cada vez mais secular. Laicidade e secularismo são a mesma coisa?

Não. A laicidade é a garantia de que o Estado não interferirá na religiosidade das pessoas, enquanto a secularização diz respeito a um movimento de redução de importância das religiões nos mecanismos sociais. Vou dar um exemplo bem fácil de secularização. Quando eu era pequeno e começava a me sentir com uma pontinha de febre, minha mãe me levava até a casa da dona Luzia benzedeira, que “tirava quebranto”. Hoje, meus filhos darão aos meus netos quinze gotas de paracetamol. Isso é porque o Estado é laico? Não, mas porque o meio científico dispõe de artefatos mais rápidos e seguros do que aqueles movidos pela fé, e, com isso, o mundo vai paulatinamente deslocando funções do meio religioso para outras fontes de conhecimento.

Os defensores do Estado laico parecem sempre voltar seus canhões contra os evangélicos, mais do que contra qualquer outra camada. Por que isso acontece?

Porque estamos no Brasil e aqui o fenômeno evangélico tem algumas características que lhe tornam peculiares: um alto nível de engajamento, uma fé quase cega em seus pastores e uma participação política inexistente em outras religiões. É claro que quem mais aparece mais serve de vidraça. Os evangélicos não têm nenhuma vergonha em se mostrar como tais. E vamos combinar que há certas lideranças extremamente barulhentas, fazendo o fenômeno da grita parecer maior do que verdadeiramente é.

Por que você digitou a palavra Estado com a inicial maiúscula por todo este texto?

São especificidades da língua portuguesa. Quando queremos exprimir este termo como uma instituição, mandam os bons Cegallas e Cerejas que utilizemos a inicial maiúscula. As minúsculas caberão para os casos de divisões territoriais, para dar um exemplo.

Se alguém achar justo que eu tente responder mais alguma dessas perguntas, não se faça de rogado e escreva-a nos comentários. Espero ter sido útil neste momento complicado da nossa existência tupiniquim.

Recomendação de leitura:

Conforme dito na pergunta adequada, segue a indicação da obra de Marsílio de Pádua, que precisou ser mais corajoso do que nós porque laicidade de Estado não era coisa que se conhecesse em sua época, nem de passagem.

MARSÍLIO (de Pádua). O Defensor da Paz. São Paulo: Vozes, 1997.

2 comentários:

  1. Olá. Cheguei ao seu blog há alguns meses. Gostaria de parabenizá-lo pela qualidade das postagens. Tenho grande interesse por Filosofia (cheguei a cursar por quatro semestres, mas tive que abandonar) e seus textos ajudam a compreender melhor esse ramo do conhecimento (gostei muito da postagem sobre os ídolos de Francis Bacon).

    Quanto ao tema da laicidade do Estado, concordo com todos os pontos, mas achei especialmente importante você alertar que é falacioso considerar a democracia como "a ditadura da maioria" e mencionar o incômodo que é a estridência de algumas lideranças evangélicas.

    Enfim, mais uma vez congratulações pelo atividade blogueira, sobretudo por estar tanto tempo nessa empreitada internética.
    Um abraço.

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    1. Olá, Halem. Muito obrigado por cada uma de seus palavras. Seja sempre bem-vindo a este espaço.

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