Marcadores

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (32 - Filologia)

(O que é Filologia? Muito utilizada nos estudos de obras antigas, é uma ferramenta imprescindível no estudo filosófico)

Olá!

Clique aqui para acessar os demais tópicos desta série

Não é a lei do eterno retorno, mas sim, as coisas que vão e voltam. Tinha fechado esta série, e não pretendia retomá-la, porque tinha lá seu escopo fechado e bem completo, e acrescentar coisas não estava na pauta. Acontece que há momentos em que parece existir um bicho-de-pé fazendo incômodo, e enquanto não nos livramos dele não temos sossego.  Achei que faltavam coisas aqui e resolvi reabrir o catálogo. Vamos, então, para a segunda temporada.

Quando iniciamos os estudos de uma graduação em Filosofia, sempre nos deparamos com as instruções dos mestres nos mandando tomar cuidado com as interpretações de época. Isso acontece pelo óbvio motivo de que começamos pelo começo e vamos buscar coisas lá da Grécia antiga. Como se pode supor, nem os gregos atuais falam da mesma maneira que há três mil anos, e muito pode se fazer de confusões quando não se adotam as prudências de estilo. Ocorre que somente descemos a essas profundezas quando vamos partir para empreitadas mais complexas, como em uma tese de mestrado ou em uma monografia bem feita. É exatamente aí que podemos nos deparar com as inúmeras contradições da linguagem, que pasmem, não são exclusivas do português.

O ideal seria aprender a língua-mãe do autor em tela ou cenário que gostaríamos de estudar, mas primeiro que os cursos são caríssimos e o problema não seria totalmente resolvido, porque, como eu disse, o grego moderno é bem diferente do grego antigo, o latim nem existe mais e via discorrendo. Isso vai dando um pouco da dimensão da complexidade da temática, porque um termo mal interpretado pode, eventualmente, mudar toda a compreensão que temos de uma frase, de uma sentença ou até de um texto todo. Por esta razão, os estudos filosóficos, religiosos, históricos e linguísticos perceberam a necessidade de analisar cuidadosamente o efetivo significado dos termos originários e sua articulação com o texto, o que fez com que nascesse a Filologia.


O próprio termo em si já pode nos trazer uma ideia de sua função. Quando queremos fazer uma tradução da etimologia desta palavra, desmembramos os termos gregos philo e logos. O primeiro significa aquele amor que temos por pessoas e coisas sem a necessidade de uma ligação física, com quem temos uma afinidade. Já o logos é normalmente traduzido como razão, o mecanismo do correto pensamento. Desta forma, Filologia pareceria querer dizer "amor à razão". Ora, mas não é exatamente isso que Filosofia significa?

Aqui, precisamos desdobrar outros significados possíveis para o termo logos. Além de razão, pode significar estudo. Assim sendo, teríamos um significado de “amor aos estudos”. Não parece fazer sentido, porque é genérico demais. Porém, se procurarmos ainda mais um significado, teremos logos como sinônimo de palavra. Amor às palavras? Agora parece que está mais correto, porque é esse o sentido: o filólogo é o estudioso do significado remoto das palavras, que tem tanta afinidade com a literatura que vai buscar suas raízes mais profundas, embora seja importante não confundi-lo com os etimólogos, tema que também tratarei, mas para diferenciar rapidamente, temos que o filólogo busca o sentido dos termos através de sua pesquisa temporal, enquanto o etimólogo se preocupa mais com a sua origem em si.

A Filologia, portanto, estuda as fontes antigas para determinar a melhor formação de um determinado texto que carece de uma compreensão mais completa. É importante porque em todo pensamento utilizamos dados, e quanto mais próximos da realidade eles estiverem, melhor embasadas estarão nossas conclusões. Quando pensamos em origens muito longínquas, sempre maiores serão os desvios semânticos que poderão ser causados.

A necessidade de se estudar a adequação dos textos é bastante antiga. Já na Biblioteca de Alexandria, que existiu entre III aC  e III dC, percebeu-se que os textos do grego Homero tinham muitas divergências entre si, dependendo do copista e da região da Grécia da qual um manuscrito tivesse chegado. Claro, estamos em uma época em que o fator humano influenciava muito mais o trabalho de reprodução do que nos dias de hoje, porque lá ocorriam erros de supressões, de repetições, de inversões de ordem e até mesmo de alterações propositais, então era através da comparação entre estes textos e da consideração de outros fatores contextuais que faziam com que esses primeiros filólogos desenvolvessem suas técnicas. Não bastava pegar dois manuscritos homéricos divergentes e fazer um uni-duni-tê para dizer qual estava mais correto. É preciso trazer subsídios que possam trazer paralelos e apontar para uma melhor opinião sobre o que é mais válido.

O trabalho do filólogo é fundamentalmente de pesquisa e investigação, e ele usa dos mais diferentes artifícios para conseguir dar unidade e uniformidade a um texto. Em Filosofia, para dar um exemplo, temos inúmeros pensadores dos quais só possuímos fragmentos de suas obras, como é o caso dos poemas de Parmênides e Empédocles. Um dos trabalhos dos filólogos está em supor de maneira coerente o que preencheria essas lacunas, especialmente pela remissão a outras fontes.

É preciso lembrar que compilados muito antigos nem sempre estão colocados em ordem cronologicamente correta, o que pode causar dificuldades em compreensão. Um dos casos mais famosos é a organização da obra aristotélica por Andrônico de Rodes, o que, sem querer, acabou denominando a Metafísica. Ele agrupou simplesmente os textos a que tinha acesso por temática, não se preocupando muito em obedecer uma cronologia. Essa questão da datação é um dos grandes problemas para a Filologia.

Vamos fazer uma brincadeira aqui. Vamos fazer de conta que pediremos para um filólogo ordenar os trezentos e tantos textos deste blog, supondo que não existam as datas. Lá pelo meio dos textos, ele vai encontrar um que falará sobre uma apresentação, e concluirá que se trata do início. Depois, procurará por contextos de época, mesmo que sejam discretos, como a informação do término de uma novela. Depois, ele perceberá que há uma série de hiperlinks fazendo referência a outros textos deste mesmo espaço. Se há referência, ela só pode ser feita apontando para uma preexistência. Ou seja, um texto referido é anterior ao texto referente, o que facilitará na ordenação. Ainda procurará por outros sites que apontem para o meu, estes contendo data ou outra dica temporal, e com isso irá construindo a melhor sequência possível.

Um outro exemplo do trabalho filológico, desta vez concreto, vem do texto conhecido como Epístola aos Hebreus, que as igrejas cristãs costumavam atribuir ao apóstolo São Paulo. Entretanto, uma análise mais aprofundada faz com que essa autoria não seja mantida em pé. Isso é feito através de um amplo trabalho filológico, que considera os seguintes pontos: é um documento que não possui formato de carta, como é costumeiro de se ver nas outras epistolas do santo em questão, que utiliza uma saudação aos destinatários e faz um preâmbulo dos temas que serão tratados, além de se identificar claramente, o que não ocorre aqui. Outra questão é estilística: a Epístola aos Hebreus é de uma densidade literária muito mais sofisticada do que a rudeza da escrita típica paulina. Alguns termos usados frequentemente, como Cristo Jesus e Deus Pai estão ausentes em Hebreus, sem contar que certas atribuições teológicas lhe são exclusivas, como o Cristo considerado como sacerdote. Sendo assim, a crítica tende a considerar desconhecido o autor desta carta, ainda que a tradição e alguns elementos secundários possam indicar a autoria de são Paulo. Poder-se-ia considerar que o nosso caro santo pudesse ter multiplicidade estilística? Poder-se-ia, mas é preciso lembrar que nem todo mundo é Fernando Pessoa, e há o ponto da objetividade que precisa ser considerado. Não havendo um forte motivo para a variação estilística, não faz sentido que esta seja aplicada.

Um texto nunca é escrito para si mesmo, a não ser aqueles famosos entitulados "meu querido diário". Isso significa que São Paulo escrevia para a florescente comunidade cristã, que Aristóteles escrevia para os alunos do Liceu e eu escrevo para interessados em Filosofia geral. Como se pode ver até agora, há método no desvendar filológico, que deve ser seguido no máximo da possibilidade. Todos aqueles que buscam estabelecer uma comunicação lançam mão de um determinado código que não lhes é exclusivo, e, portanto, possuem elementos de identificação das chaves de leitura. Isso pauta o trabalho do filólogo, que, grosso modo, possui fases distintas, mas que se entrelaçam para dar forma às suas conclusões.

Como todo trabalho minucioso, um estudo filológico é dividido em fases que, por sua vez, é dividida em etapas. Segundo Bassetto (2001), uma boa metodologia para a análise filológica é assim dividida:

 

1ª fase: crítica textual – este é o momento em que o pesquisador vai buscar reconstituir “fisicamente” o texto, ou seja, juntar todos os elementos disponíveis para se obter um documento o mais próximo possível do original. Tem as seguintes etapas:

Recensio – este é o levantamento dos códices existentes de uma obra. Por códice, podemos entender as diferentes versões da mesma, feitas pelo próprio autor ou por copistas, os seus fragmentos e as remissões que lhe são feitas. São os “caquinhos” que vão reconstituir a obra.

Collatio codicum – estando todas as versões e fragmentos disponíveis, este é o trabalho de comparação feita entre eles para que seja possível obter um manuscrito mais completo. É como se estivéssemos colando as peças do vaso de maneira a deixar a menor quantidade de buracos possível.

Estemática – agora, com o códice remontado à sua frente, o filólogo vai desvendar a sua geneaologia, identificando suas origens possíveis através dos relacionamentos e como ele foi transmitido pelos tempos até chegar na peça que tem à sua frente.

Emendatio – é a última etapa desta fase, quando são realizadas correções necessárias no texto, como erros de cópia, intervenções inapropriadas, máculas e lacunas. É uma etapa decisiva para a qualidade do trabalho, porque contará com o conhecimento e com a intuição do pesquisador que a esteja executando.


2ª fase: crítica histórico-literária – tendo um códice restaurado, estão reunidos os elementos que permitem ao filólogo partir para a fase qualitativa da análise, que visa aclarar os pontos obscuros do texto a partir de elementos circunstantes a ele, ou seja, através do encaixe em contextos.

Autenticidade – o mais óbvio, consiste em verificar a correta autoria do texto. Não se trata apenas de dizer se o autor atribuído é o correto, mas de se determinar se a escrita não se deu por copistas ou por epígonos*.

Datação – aqui, busca-se determinar a data em que a obra foi redigida. Às vezes, isso não é possível de se fazer, e neste caso a tentativa é de ao menos determinar uma época em que se deu a redação do códice.

Fontes – são citações diretas e indiretas feitas à obra, um elemento muito importante para detecção de autenticidade, porque busca encontrar imitações, plágios ou influências legítimas de outros autores no texto. Pesquisando-se fontes, é bastante comum a detecção de obras perdidas, como o Evangelho de Matias em relação ao Novo Testamento.

Circunstâncias – aqui, o filólogo colocará o códice à luz de seu contexto histórico, social, cultural e político, ou seja, tudo o que estava ao redor do texto para a compreensão da mensagem que ele carrega.

Sorte – sim, sorte. Não no sentido de que somos sortudos por achar um texto tão valioso, mas para desvendar o êxito de uma obra: a quantidade de cópias disponíveis, suas versões, a quantidade de referências e remissões que outros autores fazem a ela e assim por diante.

Unidade e integridade – é a verificação se existem adições de textos complementares ou supressão de partes através da pesquisa das fontes ou da falta de coesão textual.

Linguagem – neste ponto, é averiguada a originalidade da linguagem utilizada ou se a mesmo imita outros autores e estilos de época.

Avaliação crítica – Este é o ponto final desta fase, em que o filólogo determinará o valor documental e literário do códice apreciado. O parecer favorável garante o prosseguimento da análise, por conta do interesse acadêmico que é despertado pela reconstituição de obra relevante.


3ª fase: Exegese do pormenor – quando um filólogo conclui seu trabalho, tem diante de si uma peça plena de detalhes e pormenores que são herméticos, mas que necessitam de maior detalhamento para que os leitores possam compreender não somente o texto, mas toda a análise que foi realizada, esclarecendo obscuridades, dúvidas e incoerências. É nesta última fase que o trabalha ganha, formalmente, aquele sem número de notas de rodapé e explicações contextuais, buscando trazer autonomia para quem a ler. Feito essa fase, o códice está pronto para conclusão e edição, seu verdadeiro final feliz.

Diante de todos esses pontos, podemos perceber como é importante a Filologia para o estudo de toda área que necessita de elementos antigos, porque, se assim não fosse, muito mais complicada seria a tarefa de aduzir algum tanto de conhecimento. Já pensou, Filosofia sem Sócrates?

Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Utilizei a obra abaixo para dar fundamentos a este texto:

BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica. São Paulo: Edusp, 2001.

Recomendo também a revista de Filologia e Linguística Portuguesa, editada pela USP e disponível no link abaixo:

https://www.revistas.usp.br/flp

*Epígonos eram muito comuns na Antiguidade Clássica. Geralmente, eram discípulos que escreviam em nome de um mestre, basicamente para lhe granjear o prestígio ou fazer homenagens.

Nenhum comentário:

Postar um comentário