Certamente todos os que me leem neste momento tiveram alguma
vez a sensação de estar apregoando em terras de gringos usando a última flor do
Lácio, o que equivale a dizer que há algum furo na comunicação entre as partes:
eu falo, falo, falo e a audiência faz aquele olhar típico de quem mira o
horizonte. É que muitas vezes misturamos em nosso discurso coisas que são
típicas de nossas vidas, e que não obrigatoriamente fazem parte do quotidiano
de quem nos ouve. Falamos com naturalidade sobre fatos e objetos que não estão
no alcance de nosso interlocutor, como se fossem íntimos frequentadores de
nossas vidas. A minha patroinha é useira e vezeira nessa prática. Ela conversa
com algum comerciante como se o mesmo fosse assíduo habitué de nosso biombo, e lhe pede opiniões, principalmente se o
vendeiro em questão for uma vendeira: você acha que isso vai ficar bom na sala?
Como se a moça soubesse como é o arranjo de tal aposento. Na maioria das vezes,
a interlocutora dá asas ao seu vezo comercial e toreia a situação, dizendo que
tal badulaque ficará bom em qualquer ambiente; outras trarão a consorte de
volta ao planeta, perguntando se a sala é grande ou pequena.
Digo tudo isso porque percebi que é comum eu me perder no
jargão achando que a minha pequena, mas cativa clientela está compreendendo
perfeitamente cada uma de minhas palavras, e não me toco do quanto isso é
desestimulante, principalmente nestes tempos em que “textões” são tão malvistos
e malquistos. Há dicionários, é verdade, mas às vezes eles são sintéticos
demais, e há momentos em que é preciso tocar no assunto de forma um pouco mais
lúcida. Também é bem verdade que sempre que eu me lembro, cruzo referências com
temas que já tratei anteriormente, mas isso não dá certificado de garantia de
que tudo o que escrevo está nítido e luzidio. Então você está todo empolgado,
achando-se o próprio filósofo de palestras, e o seu ouvinte se perguntando
internamente: “Tá, só não saquei bem o que essa tal de (pontinhos)”, que é
justamente o ponto chave para a compreensão de tudo o que você tenta
transmitir. Por isso, resolvi iniciar uma pequena série, onde eu trocarei em
miúdos cada uma das áreas da Filosofia que abordo, bem como suas
primas-irmãs que também estão presentes nos meus textos. Se aparecer mais
alguma área após seu término, a mim bastará acrescentá-la à lista.
O plano da obra é simples. Primeiramente tratarei das
divisões mais fundamentais da Filosofia, o que chamarei de Filosofia de Base;
em seguida, vou cuidar das áreas derivadas, ou seja, aquelas que dependem de
algum conhecimento básico anterior, e que se voltam para um objetivo mais
específico, e serão chamadas de Filosofia Aplicada. Por fim, falarei sobre
áreas um pouco mais descoladas da Filosofia, mas que mantêm com ela relações
diretas de parentesco, seja porque se tratam de Humanas, seja porque a
Filosofia encontra-se em seus fundamentos, como, de resto, está na base de todo
o conhecimento. Estas são as Áreas Correlatas. Começarei essa tarefa por ela
própria, a Filosofia.
Ao lado de outros sentimentos, como o medo, o amor, o tédio
e a inveja, nós, seres humanos, somos banhados em um mar de curiosidade. Na
maioria das vezes, chama-nos a atenção aquelas coisas que estão fora de seu
lugar, como uma roupa cafona ou uma maquiagem extravagante, e nos perguntamos
porque determinadas pessoas as usam. Mas há momentos em que a pergunta se
aprofunda. Por que as pessoas se vestem e se maquiam, por que as pessoas se
ocultam e não se mostram como são, peladas e cara-limpa? E podemos descer ainda
mais o nível: a vida é só uma aparência? A mentira é uma necessidade? Esse é o
nascedouro da Filosofia: o questionamento.
Manjadamente, o termo Filosofia normalmente é traduzido como
“amor pelo saber”, e vem do grego philosophia,
onde philo não expressa o amor
erótico dos namorados nem a ágape incondicional devido às divindades, mas
aquela forma de amor que pode ser interpretada como estar afeito a, uma coisa mais como afinidade e amizade. Já o sophos é o sábio, aquele que sabe e que sabe que não sabe, porque sabedoria não
é sinônimo de inteligência. Para o filósofo por excelência, a maior sabedoria
está na busca, e não na detenção do conhecimento. É na busca pela resposta que
poderemos distinguir se nossa conduta é filosófica ou não. É óbvio que a
Filosofia não tem as restrições das Ciências, que exigem experimentos e provas
formulados a partir de hipóteses que tentam se consolidar em teorias (como
descrevi aqui). Mas também não tem a liberdade imaginativa e a
infinitude de possibilidades das Artes. Sua matéria-prima é a especulação, e
sua ferramenta é a razão.
Pode parecer restritivo demais dar a primazia aos gregos
pela busca de um conhecimento racional, vez que há fortes indícios de que
outras culturas, como a chinesa e a egípcia, já o faziam anteriormente, mas é
uma questão de registro e, principalmente, de substrato: o pensamento grego
está nas raízes de nossa cultura até os dias de hoje. Ela nasce quando alguém
procura fugir da explicação dada por mitos e lendas. No primeiro caso, alguma
conformação física do ambiente, como a posição das estrelas, o formato de uma
montanha ou o ciclo diário clama por uma explicação que é dada através do
desenvolvimento de uma narrativa criada de acordo com a percepção desses
fenômenos. Dessa forma, temos os nomes das constelações, dos acidentes geográficos e a divisão entre dia e noite. Já no segundo caso, há
personagens reais a quem são atribuídos fatos fantásticos, muito maiores do que
aqueles ocorridos fora do imaginário popular, e essas lendas são o vertedouro
de onde escoa uma espécie apartada da humanidade geral, que lhes é superior,
seja por sua força ou capacidade taumatúrgica. Percebam que essas soluções são
muito criativas, mas que nada mais fazem do que buscar uma explicação rápida
para o problema.
Ainda que as construções míticas e legendárias possam ser
bastante complexas, elas têm uma lógica subjacente bastante palatável – é
preciso pensar pouco, bastando dar a elas a sua aceitação. São entregues
prontas e acabadas, e, por isso, geralmente são ricas em seu valor estético,
mas deficitárias no aspecto epistêmico. A partir do momento em que alguém
deixou de consentir com a explicação intuitiva do mito, passando a analisar o
objeto em si mesmo, começou-se a Filosofia do jeito que conhecemos. Esse alguém
tem nome: era Tales, e ele buscava a arché,
o princípio originário de todas as coisas, do qual já falei à exaustão neste
espaço, ao ponto de dedicar uma consolidação exclusivamente a ela.
Notem duas coisas: a Filosofia não nasce se desvencilhando
inteiramente do mito e a Mitologia não é despida de Filosofia. A arché era uma causação primordial e um
fundamento de todas as coisas, mas mesmo Tales não desvinculava o seu uso da
manipulação divina, que poderia ser a criadora de tal essência. E a Mitologia
pode falhar na Metafísica da constituição do cosmos, mas traz à tona muito
sobre o convívio social, a cultura e o modo de pensar e escrever a história de
seus povos, o que também é (ora vejam) Filosofia.
A Filosofia nasce tentando explicar princípios fundamentais,
sendo que ela mesma o é, e permeia tudo aquilo que chamamos de conhecimento.
Quando um cientista tenta supor a causa de um fenômeno inexplicado, está
praticando Filosofia. Quando um historiador pensa sobre o que faz um fato fluir
para um determinado resultado, está praticando Filosofia. Quando um artista se
expressa de uma forma em detrimento de outra, para a busca de uma melhor
comunicação, está praticando Filosofia. Quando um sacerdote desvenda a lógica
de um determinado rito, está praticando Filosofia. Quando um educador analisa
as opções metodológicas do ensino, está praticando Filosofia. Até mesmo um
humorista, quando escracha algum prócer da comunidade, está praticando
Filosofia. É uma atividade indissociável da atividade humana, a partir do
princípio de que haja alguma forma de correção do pensamento, como a Matemática
o prova. Isso ajuda a dar uma resposta à pergunta incômoda: Para que serve a
Filosofia?
Falei da Matemática, que é sua gêmea xifópaga. Vista
isoladamente, ela não serve para rigorosamente nada: um amontoado de números
que resultam em outro número, e ça tout.
Dois mais dois é igual a quatro. Quatro o que? Laranjas, digamos. Ah, agora há
sentido, mas apenas porque aplicamos uma função concreta à Matemática (no caso,
a contagem). Sem esse elo, 2+2=4 não significa coisa alguma, é abstração pura.
As Ciências em geral se servem da Matemática de forma instrumental, de modo tão
profundo que há cálculos que atingem coisas inobserváveis, como infinitas
dimensões.
A Filosofia tem a mesma mecânica. Responder perguntas como
“o que é a vida” não muda em nada a própria vida, mas é na atribuição de valor
ao conceito “vida” que nos é possível definir o quanto é importante
resguardá-la, e isso é vital para o Direito, para a Medicina, para a Biologia,
para a Sociologia, para a Ecologia e tantas outras coisas. Se eu não defino
filosoficamente o que é a vida, qual é o parâmetro de trabalho de um médico ou
de um juiz? O que justifica seus ofícios e suas funções sociais sem essa
resposta?
Vejam que o exercício filosófico é tão intrínseco ao
raciocínio humano que nem percebemos quando o praticamos. Não pensamos
filosoficamente quando comemoramos o gol do nosso time ou quando xingamos a
pobre genitora do árbitro, mas o fazemos quando questionamos que diabos estamos
fazendo embaixo do sol escaldante ou da chuva torrencial, vendo vinte e dois
peludos correndo atrás de uma bola, ao invés de estar criando banha no sofá de
casa, protegidos do sol, da chuva, do torcedor adversário, do amendoim mal
torrado, da patolada do policial, do guardador de carros que nos extorque, do
copo de mijo na cabeça, da fila do ingresso, do banheiro fétido. A diferença,
no caso, é dar uma explicação racional para um comportamento contestável, é se
questionar ao invés de aceitar passivamente uma situação impensada. Se eu
pensar no futebol como substituto dialético da guerra, tudo bem. Se eu
simplificar a coisa e disser que é um entretenimento bom e barato, tudo
bem também. Nada muda, com a diferença de que não estou mais no campo berrando
como um idiota à toa, mas como um idiota com causa justificada (ironic mode on).
A Filosofia, vista desta forma, deixa de ser uma besteira
para intelectuais metidos a devaneios para ter o mesmo propósito da Matemática:
dar reflexo à realidade, em cada um dos seus componentes, de modo a
consubstanciar o todo, e a atitude filosófica é composta de um amálgama de
estranhamento, curiosidade e dúvida. Não consiste na discordância implicante
que alguns gostam de ter para parecer contestadores natos, nem em um descrer
doentio, mas em um modus operandi que
nos permite dizer “peraê” no momento justo, e isso é um exercício para o
conhecimento. Enquanto a Matemática dá as fórmulas, a Filosofia disseca-lhes os
elementos.
E por que a pouca importância que se dá à Filosofia, já que
ela é tão vital ao pensamento? Bem, podemos pensar em tanta coisa... Mas vamos
tentar traçar dois itinerários rápidos: a via do dogmatismo e a via do
pragmatismo.
Pensamento dogmático é aquele que admite verdades absolutas
e imutáveis, tão o contragosto de filósofos como Nietszche. Se admitirmos que
toda a realidade é dada e conhecida, então toda forma de raciocínio antitético
será uma contestação. E é fato, não gostamos de ser contestados. Temos uma
propensão real em nos considerarmos donos da verdade. Isso é natural, porque se
estamos vivos no presente momento é porque as coisas deram certo, e nosso
sentido de estabilidade nos impede de nos sentirmos confortáveis com mudanças,
ainda que estejam somente no nível intelectual. Confrontar a crença das pessoas
é uma maneira segura de conseguir seu afastamento. Por esse motivo, o filósofo
é um incômodo, que, para ser combatido, uma das melhores armas é a redução à
insignificância. Quando perguntamos sobre a serventia da Filosofia,
dificilmente o fazemos com o espírito aberto, mas maliciosamente, com desprezo
e apelando para o ridículo. Dessa forma, o filósofo é colocado na condição de
maluco, que quer discutir coisas como o sexo dos anjos.
Na outra senda, resgato aquilo que já expressei neste texto.
Como a Filosofia trabalha com o desvelamento, é sempre provável que sua rota
seja escalar de um nível para o outro, cada vez se aprofundando mais, como se
arrancássemos pouco a pouco as camadas de uma cebola. Este é um tipo de
processo complexo, que vai se distanciando do objeto inicial cada vez mais, até
atingir um nível de abstração tão alto que todo o sentido prático do
questionamento inicial se esvai. Uma Filosofia de base é sempre de difícil
compreensão, justamente porque perde os lastros aparentes com a realidade. Mas
é exatamente esta uma das maiores tarefas da Filosofia – escapar das
aparências. Só que isso não se dá impunemente. Os filósofos têm a pecha de
herméticos e lunáticos porque não solucionam problemas simples. Se você
perguntar a um filósofo porque há músicas que gostamos e que não gostamos, ele
vai te levar aos mais íntimos conceitos estéticos para definir gosto e beleza e
aos mais intrincados conceitos ontológicos para definir escolhas e suas
consequências. E não é isso que um mundo da velocidade da informação deseja.
Para finalizar, é preciso entender se o escopo da Filosofia é hoje menor que no passado. Respondo dizendo: mais ou menos. É que ocorre um fenômeno de transformação na medida em que uma ideia vai ganhando a possibilidade de ser comprovada, como já expliquei neste texto. Apenas para rememorar: quando pergunto o que é um determinado objeto, faço uma elucubração baseada em bons argumentos lógicos. Aqui, estamos no campo da Filosofia. À medida que se ganha a possibilidade de experimentar essa hipótese, ela vai se transformando em Ciência. Antigamente, uma hipótese filosófica tinha tão poucos instrumentos para comprová-la que ela ficava nesse âmbito por muito tempo. Hoje, com tanto conhecimento científico, modelos matemáticos e ferramentas de experiência, rapidamente uma consideração metafísica pode ser verificada. E há ainda uma especialização cada vez maior nas Ciências Humanas que “tiram” da Filosofia parte da sua abrangência. Áreas como Sociologia, Antropologia e Psicologia eram abarcadas pela Filosofia, e se destacaram dela à proporção que ganhavam metodologia própria e se aproximavam das formas de pesquisa das Ciências Naturais. Mas, como eu já disse, possuem um cordão umbilical que as liga à boa e velha Filosofia de modo intrínseco, vez que esta se encontra na própria estrutura do pensamento.
Então é isso. Espero que tenham lhes agradado este primeiro
capítulo. Bons ventos a todos e voltem sempre.
Recomendação de canal:
Vou recomendar aqui, evidentemente, um canal de Filosofia. É
o canal do Devanil Junior, cujo nome é Alimente o Cérebro. Ele traz uma boa
quantidade de conceitos filosóficos sob medida, nem superficiais a ponto de não
esclarecer nada, nem profundos que se tornem intermináveis caceteações,
reservadas para acadêmicos.
https://www.youtube.com/channel/UC3fBS89aQ7mt5G1TodU4HNg
* A figurinha da coruja é o símbolo mais comum da Filosofia.
Trata-se do bicho de estimação da deusa Minerva, a divindade romana da
sabedoria, correspondente à Atena grega. No caso que coloquei aqui, trata-se de um mocho, que extraí de um
dos melhores álbuns de uma das melhores bandas que conheço, o Fly by Night dos canadenses do Rush.
Espero que não haja problemas, por se tratar de uma homenagem, mas, caso
contrário, posso retirá-la a qualquer momento.
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