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quinta-feira, 14 de abril de 2016

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - Epílogo

"...o medo que algum dia o mar também vire sertão"

Olá!


Passo a régua agora nestas cartas náuticas. Da mesma forma que ocorreu quando escrevi o Diário de Bordo de uma Nau sem Rumo, não tinha também agora a intenção de incomodá-los com um texto de encerramento, para que o assunto não se alongasse muito e ficasse parecendo aquelas infinitas novelas da Record. Mas tenho um tema muito importante para abordar; por isso, vou novamente fazer um epílogo para a série.




Neste momento, acabamos de viver um dos verões mais chuvosos dos últimos anos, o que está restituindo às represas do estado um nível bastante aceitável. Mas quando eu e a patroa fizemos nossa viagem ao Circuito das Águas, a situação era tremendamente preocupante. Para melhor ilustrar, vou acrescer fotos e comentários.



Esta é a Fonte do Vilela, localizada no município de Águas da Prata. Fica no sopé de um morro de onde, no seu alto, brota uma nascente que lhe abastece. A região é uma bela pracinha, com comes, bebes e garrafas para coletar água. São três bicas d’água de cada lado, que, em termos normais, jorram água suficiente para encher um garrafão de 20 litros em um minuto. Para reduzir o excesso de consumo, a vazão foi reduzida para que a mesma operação demore mais do que o triplo do tempo. Isso sem contar que algumas das bicas estavam praticamente inúteis, correndo um humilde filete.



A nascente, como eu disse, fica no alto de um morro. A água desce por um valo até ser canalizada na parte baixa e conduzida à biqueira da foto anterior. Ao subir pela trilha que dá acesso a tal nascente, é comum ouvir o marulhar da água descendo ladeira abaixo. Como não estava ocorrendo tal fenômeno, dei uma afastada no mato e fotografei a pouca água que escorria pelas pedras.



Ao chegar à nascente, podemos observar o veio do qual a água brota das pedras. Havia um fluxo muuuuuuuuito pequeno, com um agravante tremendamente desagradável: um sabor insuportável de ferrugem, denunciando que a quantidade de água fluindo pelos canos era insuficiente para retirar o sabor metálico.



Do outro lado, uma visão um pouco mais desoladora: o valo onde deveria correr água morro abaixo estava quase que completamente seco. Pode-se perceber pela escavação que o volume de água que corre por ele não é tão pequeno quanto o verão fazia parecer.



Essa imagem demonstra com um pouco mais de clareza como o nível do sistema hídrico local estava baixo. Esse é o ribeirão do Quartel, que fica próximo à engarrafadora da cidade. Percebam, pela marca da vegetação, o quanto o nível estava abaixo do normal, denunciado também pela quantidade incomum de pedras aparentes.



Já na pequena Estiva Gerbi, onde há um santuário dedicado à Rosa Mística, há um aguadouro destinado a armazenar água benta para uso dos peregrinos. Não só o fluxo estava interrompido, mas também o tanque estava seco. Também as pequenas biquinhas no interior da capela estavam sem uma única gota.



Já agora estamos em Socorro, nas margens do Rio do Peixe. Pelo que conversei com o pessoal local, poucas vezes na vida os bancos de areia chegaram a ficar expostos. O normal é que apenas as pedras fiquem aparentes. Mas há um certo agravante, na medida em que essa ponte natural raramente chegou a se constituir.



Chegando a Monte Alegre do Sul, percebemos uma situação ainda pior. Nas proximidades do Balneário, há uma fonte disponível para a coleta de água por moradores e turistas. Quando chegamos lá, não só estava desativada, como ainda possuía diversos avisos regulamentando horário de funcionamento e quantidade máxima permitida para coleta.



Acha pouco? O mesmo fenômeno se repetiu na fonte da estação de trem: tudo seco e cheio de avisos para os incautos.



Em Monte Alegre também temos outra triste curiosidade. O trecho do rio Camanducaia que vemos na foto acima é considerado perigoso para balneabilidade, em especial por ser mais profundo e com base movediça. Há placas indicando esta circunstância, mas, na ocasião, a sua profundidade estava na risível e nada arriscada altura do joelho.



Mas o pior ainda estava por vir. Fomos a uma terra particular, que prometia um bom lugar para tomar banho. Chegando lá, havia uma placa oferecendo estacionamento e um dia inteiro de estadia por dez reais, um preço convidativo. Parei o carro e fui procurar o lugar onde deveria pagar, mas a responsável pelo local me disse que não precisava fazê-lo.



(Posteriormente, encontrei em uma revista uma foto da Cachoeira do Sol a pleno vapor, e resolvi inserir aqui, para título de comparação e lamentação. Confronte a foto acima com a foto anterior, trata-se exatamente do mesmo local. Diga-me se não é digna da epígrafe deste texto...).



Era a Cachoeira do Sol. O pessoal da chácara não estava cobrando nada pelo simples fato de que não havia cachoeira disponível, seca que estava! No lugar onde deveria haver um belo salto, tínhamos a nosso dispor umas pocinhas para chapinhar...


Para não dizer que o problema é eminentemente rural, também na cidade de Amparo encontramos escassez de água, nas torneiras disponíveis nas praças do centro histórico, como nesta da foto, próxima ao convento franciscano.

Lembremos que esses retratos são do começo de 2015. A chuvarada atual ameniza e oculta o problema, mas uma nova estiagem mais longa fará com que o problema aflore novamente, talvez pior. É preciso observar com mais cuidado o que temos feito com nosso pobre planetinha, mesmo que nosso excelentíssimo governador ganhe prêmios em sua incompetência e acabe por dar uma maquiada no quase caos que vivemos no ano passado.

Algumas lições importantes podem ser tiradas do filósofo ambiental Peter Singer. Ele é australiano, mas adere à filosofia norte-americana. Como é típico na linha de pensamento dos EUA, Singer segue uma linha do utilitarismo. Esta escola filosófica surgiu entre o final do século XVIII e início do século XIX com o inglês Jeremiah Bentham. Para ele, a ética deveria consistir primordialmente na dialética prazer-dor. Toda ação humana, de acordo com sua natureza, está em evitar a dor e multiplicar o prazer. Pode parecer muito mundano, mas o prazer é o sentimento humano que sintetiza toda a sua razão de existir: a felicidade. Fazer juízo sobre a felicidade, portanto, é exatamente apreciar a capacidade de um ato em produzir dor e prazer. Não deixa de ser uma retomada do antigo hedonismo epicureu, com a diferença que essa busca não se dá pela inevitável ação dos deuses, mas pela disposição racional dos homens. Dessa forma, um homem pode absorver a dor momentânea se, com isso, puder obter a perspectiva de uma benesse futura. Só que vivemos em um meio social, e é nesse ponto que entra a figura do legislador, que tem o dever ético de proporcionar um equilíbrio legal que procure dosar entre os diferentes estratos sociais a capacidade de ser feliz, da melhor forma possível.

Outro importante nome desta escola é John Stuart Mill, que dá uma “vitaminada” nas teses de Bentham, ao asserir que não somente é preciso distribuir prazer em termos quantitativos, mas em qualidade. De fato, Bentham imaginava tornar a proporção do prazer algo tão objetivo que poderia até mesmo ser mensurada, de forma a produzir uma equação. Mill relativiza os componentes daquilo que é reputado como gerador de felicidade, porque cada um dos itens tem valor diferente para cada um dos indivíduos, o que torna impossível sua medida prática. Desta forma, uma teoria do valor seria apenas um número e nada mais. Mas, na essência, concorda com suas teses centrais. E o grande resumão da ópera é que toda ação humana tem valor pelo o que ela tem de útil. Daí o nome da escola.

Portanto, a regra de ouro do utilitarismo consiste em proporcionar um maior bem-estar para o maior número de pessoas envolvido em uma relação. A novidade de Singer é introduzir as espécies animais nesta lógica, fazendo com que pensemos nas consequências que refletem na fauna a partir das modificações no meio ambiente feitas pelo homem, incluindo aí uma espécie de “papel social” dos bichos. Com ele nasce a hipótese do especismo, do qual já falei neste e neste texto. Pincelando rapidamente, o especismo estende a noção de discriminação racial à discriminação de espécies, ao colocar o homem em patamar superior aos demais seres que possuem sensibilidade, sem levar em consideração que sofrimento e prazer também são características de animais não-humanos. Ao apartá-los do cômputo geral preconizado pelo utilitarismo, a relação que deveria manter o equilíbrio da vida na Terra fica manca. É por isso que Singer é defensor ferrenho da alimentação onde são excluídos os acepipes de origem animal, inclusive de derivados não letais, como ovos, mel e leite. Isso porque importa também o uso comercial das espécies, que estariam reduzidas a uma espécie de escravatura. Mas, por outro lado, a utilidade pode explicar o uso de animais em experimentos científicos. Neste caso, há uma utilidade real, há uma causa justificável, muito embora deva ser utilizada ao mínimo e com o menor sofrimento possível, e ser substituída por outras metodologias tão logo seja possível.

Sendo aderente ou não às ideias de Peter Singer, é plenamente possível compreender seu pano de fundo e, melhor ainda, torná-lo ainda mais abrangente, como fazem os defensores das causas ecológicas. Para isso, é preciso racionalizar quanto que cada ação realizada no ambiente pode ser útil para o todo, e não só para a espécie humana. Isso não significa ser um ecochato, mas obter retorno para o nosso próprio bem viver.

Imagine sua casa. Ela pode ter um belo jardim, mas que traz muitos insetos no verão. O que é melhor fazer? Para você, sem dúvida seria eliminá-lo. O quintal ganharia mais espaço, as picadas de fim de tarde seriam extintas, e dá menos trabalho esfregar o chão com água e sabão do que fazer uma poda anual. Por outro lado, ao arrancar suas flores, a ferramenta de polinização que abastece os quintais de seus vizinhos ficaria mais humilde. A beleza da sua casa, da sua rua e do seu bairro seria diminuída. Ainda que sendo uma pequeníssima parcela em uma grande área, perder-se-ia um pouco de frescor e troca de oxigênio. O que é mais interessante para você? Você é alérgico a picadas ou a pólen? Um remédio ou repelente não resolveria o problema? É tudo coisa para se pensar.

É só um exemplo, quase tolo. Mas é isso que precisamos fazer para o mundo. Quanto custa o progresso? Quanto valem as políticas ambientais de longo prazo? Quanto significa tomar cuidados básicos? Diminuir o consumo? Economizar água? O que tudo isso valerá no futuro? Não está na hora de cessar a herança maldita?

Já tá parecendo ativismo e autoajuda. Vou parar por aqui.

Recomendações de leitura:

Certa vez li um livro interessantíssimo do Moacir Scliar, que é um romance, e, como tal, tem a capacidade de nos falar à alma, o que pode ser mais eficiente do que ler tratados e mais tratados. Fica a dica.

SCLIAR, Moacir. O ciclo das águas. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.

Peter Singer é quase um papa de vegetarianos, o que, infelizmente e já de cara, faz com que muita gente olhe seus livros de soslaio. Mas isso é preconceito, porque a defesa dos animais é feita sem coitadismos.

SINGER, Peter. Libertação animal. Porto Alegre: Lugano, 2004.

Jeremiah Bentham (ou Jeremy, como é mais comumente chamado) sintetiza seu sistema utilitarista no livro abaixo:

BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril, 1979. Col. Os Pensadores.

John Stuart Mill aperfeiçoa as teses de Bentham no seguinte livro:

MILL, John S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007. Col. Grandes Obras do Pensamento Universal

Recomendações de viagem:

Por fim, e para fechar definitivamente estas cartas náuticas, indico a viagem a todas as cidades nelas mencionadas. O Circuito das Águas é uma região tremendamente bela e fácil de chegar (partindo de São Paulo, óbvio). O mesmo se estende às cidades que não estão enfeixadas na região, mas que igualmente propiciam belos momentos em suas visitas. Segue abaixo cada uma delas e a sua distância em Km:

Águas da Prata: 238 Km
Poços de Caldas: 258 Km
Estiva Gerbi: 146 Km
Socorro: 132 Km
Lindoia: 156 Km
Águas de Lindoia: 164 Km
Monte Sião: 153 Km
Monte Alegre do Sul: 131 Km
Amparo: 132 Km
Pedreira: 135 Km
Holambra: 140 Km

E por fim do fim: um beijo IMENSO na minha Mimi, que me acompanhou mais uma vez por todas essas terras e poucas águas, na comemoração dos nossos 25 anos de casados. Te amo muito, e que escrevamos juntos algumas outras dezenas de cartas náuticas, ainda que mantenhamos os pés secos.




quarta-feira, 13 de abril de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 24º tomo: o erro da má companhia (culpa por associação) e mais algumas observações sobre como pessoas boas cometem ações ruins

Olá!


Sou ruim de bola. Em pleno “país do futebol”, sou ruim de bola. Mas gosto de futebol, porque não é preciso saber fazer cerveja para gostar de cerveja, não é preciso saber fazer o salame para gostar da porção e não é preciso saber jogar para gostar de futebol. Mas, provavelmente pela cintura dura, fui empurrado para o gol, este desterro dos pernas-de-pau, na posição mais próxima da saída do campo.

Isso não quer dizer que eu não tenha tentado a sorte. Perto de onde eu morava, havia a Química Ema, uma empresa de produtos químicos (oh!) que ficava perto do ponto final da Vila Ema (oh²). Ela patrocinava uma equipe de garotos que chegou a ficar famosinha no começo da década de 80, muito por conta das participações em um torneio chamado “De Paula”, que era transmitido na TV pela Gazeta, canal 11.

Eu estava na época do estirão. Foi algo extremamente rápido para mim. Na 5ª série, só tinha um menino mais baixo do que eu; na 7ª, a equação se inverteu – só tinha um rapaz mais alto. Eu já estava praticamente com a altura que tenho hoje, o que, para um rapazola de 12 anos, não estava nada mal. Inclusive, já tinha barba nessa época (e comecei a fumar). Quando fui fazer meus testes na Química Ema, o treinador quis aproveitar essa minha então qualidade para me situar em campo. A escolha óbvia recairia sobre o gol, mas dois perus foram suficientes para fazê-lo desistir da ideia. Para ser centroavante, minha inabilidade era barreira insuperável. Restava a zaga. Mais precisamente a quarta-zaga, exatamente aquela posição que ninguém nasce sendo, conforme ensina Marcelo Barreto, uma vez que as vagas de central já estavam bem ocupadas. Como não foram as saídas de gol o que abreviou minha carreira de goleiro, o técnico achou que poderia dar certo, mesmo não sendo eu canhoto. O rápido teste que fiz não trouxe nenhum comprometimento. Era jogar o corpo em cima dos rápidos mas minúsculos atacantes e cortar a bola de cabeça, ou chutá-la para o mato que vale o campeonato, como se fosse um enxame em polvorosa. O teste definitivo seria um jogo-treino descompromissado, no velho campo do Veteranos do Brasil (onde hoje há o entroncamento da Salim Maluf com a Anhaia Melo).

Faltava uma coisa importante: a chuteira. Obviamente, eu não tinha recursos próprios para comprá-la, então o jeito foi apelar para a genitora, e ver se tinha como extrair a minha futura ferramenta de trabalho da presente ferramenta de trabalho dela, a máquina de costura. Expostos os propósitos e as necessidades, recebi o sonoro “não”, que futebol não era coisa para um estudante e que não eram redondezas para gente de bem. Minha mãe conhecia muito bem os meandros da Vila Ema e adjacências, andeja que era para buscar e levar encomendas. E sabia que era nos arredores dos campinhos que a maloqueirada se reunia para fazer seus malfeitos. Era assim no Cachimbo (olha que nome), na Rua Deis (sic), na Invernada... Junto com o “não”, veio um aumento na carga de trabalho que já contei neste post, com a provável intenção de me afastar das más companhias. Meu exuberante futebol resultou em um deprimente natimorto.

Houve excesso de zelo pela matriarca? Impossível saber. Ela fez o papel dela. Mas nada comprova que o fato de frequentar um ambiente dos maus me tornaria um mau. “Apenas” potencializaria o risco, como veremos adiante. Mas dizem que, para a mulher de César, mais importante do que ser honesta, é parecer ser honesta. Ninguém gosta de ver seu nome e suas ideias ligadas a fatos e pessoas desagradáveis. É o bom e velho “dize-me com quem andas que eu te direi quem és”.

É fácil detectar isso. Tente encontrar alguém que admita ter votado no Fernando Collor em 1989. Ele foi eleito com 35 milhões de votos, com votação expressiva no estado de São Paulo – a diferença de votos obtidos aqui foi suficiente para garantir sua eleição. E hoje você concentra este mesmo pessoal em um pequeno boteco da região da Santa Ifigênia. Dos que admitem, é óbvio. O mesmo deverá acontecer com a Dilma, se e quando houver impeachment. Aí você fala: “Sempre é preciso tomar cuidado com o voto”. E o pessoal da patrulha responde de pronto: “Taí um eleitor da Dilma falando”, te impingindo a nova má companhia.

Isso acontece porque ninguém gosta de ser associado ao erro, ao engano. E daí é fácil de manipular um argumento, atribuindo as ideias contidas no mesmo a alguém condenável. É uma falácia conhecida como erro da má companhia ou culpa por associação.


É conveniente andar com alguém mal afamado?

Trata-se de uma falácia informal de dispersão e relevância, porque busca fazer um desvio de foco através da introdução de um argumento que é irrelevante. No caso, o fato de que uma pessoa indesejável compactue da ideia defendida não a torna menos válida. Não deixa de ser um argumentum ad hominem, com a diferença de que o ataque não é dirigido diretamente contra o interlocutor, mas é feita sua associação a um nome deplorável, de forma a fragilizar sua posição.

É uma falácia comum demais. Um ateu diz: “Hitler era católico”, portanto todos os católicos são maus. Um católico diz: “Stalin era ateu”, portanto todos os ateus são maus. Para, gente.

Hitler perseguiu os judeus pela sua condição étnica, não pela religião; Stalin fez expurgos dos seus inimigos pela sua posição política, não pela religiosa. Bondade e maldade não estão vinculadas, necessariamente, à religiosidade da pessoa. Esse tipo de mistura é que leva ao erro da má companhia. O mesmo acontece se dissermos que não usamos roupas pretas porque é a cor favorita dos fascistas. Fascistas gostam de preto? E daí?

Ficou claro? A falácia acontece quando queremos desqualificar um argumento ao associá-lo a alguém indesejável, causando o efeito psicológico de que nada que possa partir dessa coisa tenha valor. Mas a associação à má companhia constantemente não é falaciosa. E sobre isso, vamos lançar o foco principal deste texto.

As más companhias realmente causam influências negativas em nós. Mas não temos um tipo de propensão a ser bons ou maus? Não conseguimos ser firmes mesmo que tenhamos diante de nós más vantagens oferecidas por aqueles que nos rodeiam? Há algum nível de aceitação do mal, dependendo da circunstância em que isso ocorra? Enfim, o que leva pessoas boas a tomarem atitudes ruins? Essas são as perguntas que tentaram ser respondidas pelo psicólogo social Phillip Zimbardo, norte-americano de origem italiana.

Zimbardo estava interessado em estudar como as convicções pessoais são deixadas de lado para praticar ações hediondas. Afinal de contas, policiais, agentes penitenciários, soldados e outros atores que são frequentemente acusados de atos extremos, ao conversarmos com os mesmos, mostram-se pessoas absolutamente normais, como se fossem padeiros ou estetas faciais. Fazia isso para tentar desenvolver uma teoria da maldade, e, em vista de experimentos realizados por Stanley Milgran sobre obediência e autoridade, tinha sérias desconfianças de que o processo de papéis sociais e obediência tinham muito a ver com os mecanismos que permitem esse tipo de fenômeno. Seu trabalho foi um dos mais célebres estudos da Psicologia de todos os tempos, conhecido como Experiência da Prisão de Stanford.

O experimento foi assim: foram recrutados 75 voluntários para realizar um teste de sanidade preliminar. Os 24 mais estáveis emocionalmente foram então dirigidos à Universidade de Stanford, em cujos porões foi montado o simulacro de um presídio, com todos os requintes característicos: salas transformadas em celas, comida padronizada, isolamento com relação ao mundo exterior e todos os que-tais. O grupo foi dividido em dois – os prisioneiros e os agentes penitenciários, sendo que o próprio Zimbardo se colocou presente, na qualidade de superintendente. O experimento tinha um prazo inicial de duas semanas, contadas a partir do momento em que o grupo dos “prisioneiros” fosse apreendido em suas casas, e vestido como tais (o mesmo aconteceu com os “policiais”, que receberam seus respectivos fardamentos e equipamentos). A ideia era observar como se desenvolveria a relação de poder através de pessoas mentalmente equilibradas. Uma prerrogativa: nenhuma violência física direta poderia ser aplicada. Todos os outros meios de coerção eram permitidos.

Os resultados foram surpreendentes, em uma escalada brutal imediata. Os presos, desde logo, eram tratados de forma humilhante, sendo obrigados a restrições crescentes, que incluíam severas limitações alimentícias e imposição de repetidos exercícios físicos imotivados. Tiveram seus pés atados por correntes, para não esquecer suas condições de condenados. Em alguns casos, especialmente nas ameaças de rebeldia, eram enfiados em armários, como se fosse uma solitária.

Com dois dias de experiência, o nível de crueldade estava assim: os presos eram obrigados a defecar em suas próprias celas, que permaneciam sem limpeza; aliás, nenhum banho era permitido, e eram coagidos a ficar nus. Os colchões e suas roupas também foram retirados de seus alcances. Ao cabo de alguns colapsos nervosos dos presidiários, o estudo foi interrompido antes de sua metade, com apenas seis dias de realização! E, para tanto, foi necessária intervenção externa, já que o próprio Zimbardo estava tão absorto em seu experimento que não se deu conta de que a situação estava saindo do controle.

Juntando todas as suas observações, acrescidas de mais alguns estudos, Zimbardo tirou as seguintes conclusões do experimento da Escola de Stanford:

  • A maldade não está necessariamente vinculada à personalidade da pessoa. Antes de mais nada, ela é uma ferramenta de exercício do poder, e o poder se dá a nível de instituições. O experimento abarcou um universo extremamente limitado e simplificado, mas extensível a grupos mais complexos, como se pode ver na vida real com a tortura de prisioneiros de guerra;

  • Um dos critérios necessários para que se exerça tal poder é deixar de lado o fato de que há seres humanos envolvidos nesta relação. E a desumanização não se limita a reputar como objeto apenas e tão-somente o outro, mas é preciso afastar de si próprio os valores humanos. A desumanização é recíproca;

  • A violência aplicada por um grupo é mais eficiente que aquela individual. O processo de desumanização inclui uma diluição da culpa, que, quando executada por várias pessoas, torna possíveis ações que não seriam executadas individualmente, como é o caso das chacinas e linchamentos. Conhecemos isso como comportamento de manada (termo que não foi criado por Zimbardo, mas que se aplica ao caso; vejam mais neste meu texto);

  • É preciso que haja o reconhecimento de um poder exercido por uma autoridade. Passando pelo princípio de diluição da responsabilidade, é preciso que exista alguém com reconhecido poder para determinar o início da crueldade. Essa autoridade passa a exercer o poder de forma a ser obedecido cegamente pelos demais membros do grupo;

  • Havendo o reconhecimento de uma autoridade, as ordens não devem ser objeto de contestação, já que suas normas são uma manifestação da vontade da autoridade. A adesão ao grupo é feita de forma passiva e acrítica;

  • Ainda que os resultados do exercício do mal saltem aos olhos como indignidade, a reação do grupo é de indiferença. Mesmo que provoque algum tipo de efeito psicológico no indivíduo, esta indignação é transformada em uma tolerância passiva, de modo que em nada haverá de modificação no comportamento do grupo através da posição subjetiva de cada membro;

  • A influência do sistema sobre o indivíduo se aplica, preferencialmente, nas situações em que há novidade sobre o âmbito situacional. Em um ambiente já dominado por determinadas regras, será mais difícil ao indivíduo modificar sua tendência pessoal;

  • Por fim, o salto da linha: há sempre um primeiro passo. Zimbardo dá o nome efeito Lúcifer à capacidade de que indivíduos equilibrados extrapolem de seu conjunto de convicções e cometam loucuras para exercer a autoridade, e perpetrar o poder que recebe em mãos.
Para quem não sabe, de acordo com a doutrina cristã, Lúcifer era um anjo como outro qualquer. Aliás, era um anjo dotado de grande poder e beleza. Seu nome, literalmente, quer dizer “portador da luz”. Mas houve algum ponto de viragem no qual se deixou levar pela sede de poder e pelas vaidades e se rebelou contra os céus. Mudou sua natureza espiritual e optou pelo mal. E foi parar no inferno.

Desta forma, mesmo pessoas boas, com princípios morais sólidos, podem cometer atrocidades, se inseridos em ambientes onde o mal é tido como um valor (ou que seja percebido como qualidade). E assim compreendemos como más companhias podem ser verdadeiramente más, principalmente quando tomadas por autoridades válidas e modelos de conduta para aquele grupo. E isso é extremamente perigoso.

Recomendação de leitura:

Zimbardo juntou neste livro suas principais experiências e descreve a nós as suas conclusões. É um livro bastante recomendável, principalmente para tentar entender o funcionamento da maldade na mente humana.

ZIMBARDO, Phillip. O efeito Lúcifer. Como pessoas boas se tornam más. Rio de Janeiro: Record, 2007.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 23º tomo: o espantalho (e algumas rápidas considerações sobre o momento político)

Olá!


(Introdução importante: vou fazer todo este texto fundamentado em histórias religiosas, mas não será um texto sobre Religião. Portanto, nada de brigas. Não estou tomando a defesa de nada nem de ninguém, apenas estou utilizando um exemplo bem conhecido e me divertindo com as peripécias que a linguagem proporciona). Isso posto...

No momento em que começo a escrever este texto, estamos em pleno Sábado de Aleluia. Como eu não sou muito regradinho, não sei quanto tempo ainda vai demorar para publicá-lo, mas, no final das contas, isso não importa. Conto essas pequenas minúcias apenas para dizer que, pelo próprio momento litúrgico que estamos passando, acabei por me lembrar de uma tradição que vem aos poucos se extinguindo de nossa metrópole da garoa, como tantas outras de base religiosa. Vamos a ela.

Espantalhos estão à direita e à esquerda, seja qual for a cor de sua camisa

Na sexta-feira anterior à Páscoa, o povo católico rememora a crucificação de Jesus, seu principal profeta e divindade. O clima é todo de enterro – roupas roxas, silêncio e contrição, não há missa, os santos são cobertos nas igrejas, há procissões com velas e cantos tristes, faz-se jejum e abstinência de carne, além de ser de bom tom manter a sobriedade e recolhimento por todo o dia.

Essa regra é seguida até o meio-dia do sábado seguinte, quando começa a preparação para a Páscoa, que no ritual cristão representa a ressurreição de Jesus. Esse é o momento em que a contrição se encerra e se liberam as restrições da sexta-feira da Paixão. Também é o momento em que a chapa vai ferver para um personagem específico da trama que levou Jesus ao calvário.

Como a história é prá lá de conhecida, serei resumidíssimo. Jesus estava de cabeça pedida há algum tempo, mais por causa de suas prédicas sociais e por suas acusações contra os dirigentes do que por sua doutrina (que, de resto, tinha um substrato pacifista). Ele pregava abertamente nas praças e nos montes, mas precisou manter a discrição quando chegou a Jerusalém, a maior cidade da Palestina na época, e onde ficava sediado o Sinédrio, uma espécie de conselho dos sacerdotes judeus. Acontece que os membros deste órgão estavam em sua captura, e, para conhecer seu paradeiro, subornaram um dos seus homens mais próximos, o apóstolo chamado Judas Iscariotes, membro da comunidade dos zelotes, loucos para se verem livres dos romanos que dominavam a região, mesmo que na base da porrada. Ato contínuo, temos a conhecidíssima condenação e crucificação.

Pode ser que Judas achasse que Jesus reagiria contra uma tentativa de aprisionamento, pode ser que fosse um venal como nossos políticos em geral, pode ser que não acreditasse que os romanos fossem dar ouvidos aos judeus. O fato é que Judas se arrependeu de sua denúncia, devolveu o dinheiro e foi se suicidar por enforcamento. E, querendo ele ou não, foi um dos culpados pela morte de Jesus.

Ok. O povo não é muito dado a ser paciente e nem autocrítico. Parece se esquecer de que a morte de Jesus teve amplo apoio popular, e que Judas foi apenas um dos componentes necessários para o desfecho ocorrido. Pilatos, Anás, Caifás... todos esses tiveram, por ódio ou covardia, participações tão relevantes quanto a de Judas, mas o fato é que sobrou para ele o bagaço da laranja, até os dias de hoje, como veremos a partir de agora.

Durante o período penitencial que mencionei, ainda na sexta-feira Santa, o povo pendura uns bonecos construídos nos postes, onde ficavam enforcados durante toda a madrugada. Ao chegar o meio-dia do sábado, é lido o seu testamento, e o “algoz” principal dá a ordem para o massacre, sendo destruídos a paus e pedras, com a galera berrando impropérios dignos de torcedores da Portuguesa, e terminando com o incêndio de seus “restos mortais”. Muitas vezes, os bonecos são caracterizados como os políticos da moda, para ajudar a distribuir a raiva acumulada pelos insucessos da vida. Esses bonecos são chamados de Judas, e a farra é a Malhação, e é uma celebração indireta, no sentido de que é dependente da religião, seguindo certas regras como o dia e o horário, e tendo uma forma “ritual”, mas que não está prescrita nos livros oficiais.

Contraditoriamente, é uma celebração tão popular quanto um terço, mas que não goza da mesma condescendência por parte da Igreja, dada a sua violência. A mais tradicional malhação de Judas da cidade de São Paulo acontecia na Rua dos Lavapés, pertinho de casa. É uma rua que liga o largo do Cambuci ao Glicério, passando pela estação elétrica da Várzea do Carmo. Não somente um, mas vários Judas eram amarrados aos postes. O problema específico da malhação da Lavapés é que a violência aplicada contra os bonecos acabava se estendendo para os estabelecimentos da rua e, pior ainda, para as pessoas aglomeradas em grupos rivais, o que redundava em uma batalha campal. Por isso, o evento diminuiu de impacto e, a bem da verdade, nem sei se é feito ainda. Creio que sim.

Há uma raiz mais profunda desta tradição, ou um antecedente ainda mais antigo, onde encontramos o bode expiatório. De tempos em tempos, os judeus selecionavam um bode para receber toda sorte de imprecações e vilipêndios. O pessoal vomitava todos os seus ódios e pecados em cima do pobre caprino, que não sabia de nada, mas que estava carregando a culpa de todos aqueles que se lhe dirigiam. Desta forma, as pessoas sentiam-se limpas, transferindo seus sacos de maldades nos frágeis ombros do pobre bichinho. Para arrematar, o bode era jogado no deserto, para morrer junto com os pecados expiados, levando sozinho a culpa de todo mundo.

O bode expiatório foi transferido para Judas. Não no sentido de carregar consigo os pecados de todo o povo, mas por ter que segurar a barra sozinho por culpas que não são suas, ao menos totalmente. Judas, pelo relato bíblico, foi efetivamente alguém relevante no desfecho da crucificação, mas é muito fácil atribuir a ele toda a culpa. Se não existisse quem se sentisse ameaçado ou incomodado pelas pregações de Jesus, certamente Judas não teria o que denunciar. E, se não fosse ele, seria outro; sempre tivemos traíras e alcaguetes no mundo. Mas é preciso haver um culpado. É muito mais tranquilo eleger um culpado do que reconhecer nossos próprios erros sociais.

Tecnicamente, Judas (o boneco) é um espantalho: três ou quatro peças de roupa costuradas entre si e recheadas com palha ou serragem. Uma meia de mulher recheada serve de cabeça, que, havendo disponibilidade, é coberta por um chapéu, geralmente de palha. Mas o termo “espantalho”, comum em língua portuguesa, é um pouquinho impróprio, porque pode causar alguma confusão, como pude observar nas minhas pesquisas. É porque um espantalho não tem exatamente o mesmo uso de um boneco de palha. O primeiro serve ser colocado em plantações, com alguns panos soltos fazendo as vezes de membros. O vento movimenta estes pseudomembros e faz o simulacro de um ser humano que espanta os pássaros da plantação (em espanhol, se chamam espanta pajaros; na Itália, spaventapasseri). Já no segundo caso, o termo indica os bonecos de palha que eram utilizados para serem surrados em treinos de batalhas, como era o caso das justas, aqueles torneios medievais em que dois guerreiros se contrapunham com lanças a cavalo, correndo em direções opostas. O termo inglês é straw man, o italiano é uomo di paglia, e, se usássemos a expressão “homem de palha”, provavelmente seriam gerados menos problemas. Espantalho, portanto, serviria para afastar; homem de palha, para ser surrado. Mas tudo bem. É apenas uma questão semântica.

Pois muito bem. O boneco de Judas é uma deturpação do próprio Judas. O Judas em pessoa tentaria de defender – correndo, escondendo-se, justificando-se, pegando um pedaço de pau, oferecendo suborno – mas o espantalho não tem como fazê-lo, é muito mais fácil de golpeá-lo. O espantalho é mais frágil. E comete-se a falácia do espantalho todas as vezes em que um argumento é deturpado para que se possa refutá-lo com maior facilidade, ou seja, a técnica consiste em distorcer um argumento, tornando-o menos sólido e mais facilmente atacável. É uma falácia informal de dispersão, mas não de relevância, como comumente costuma “fazer parzinho”. É de dispersão porque busca desviar o foco do argumento, como ocorre com os apelos, mas, ao contrário destes, o novo argumento se mantém relevante, mas de maneira torta, simplificada, reduzida ou descontextualizada.

Mas quais são os métodos para distorcer um argumento? Basicamente, são quatro as maneiras para fragilizá-lo:
  1. Tornando extremo o argumento
  2. Citando o argumento fora de contexto
  3. Simplificando excessivamente o argumento
  4. Indicando uma pessoal favorável ao argumento cujo comportamento possa ser objeto de críticas.
Como mencionei Judas no início, vou aproveitá-lo para oferecer exemplos (atenção: APENAS exemplos). Vamos lá.

Argumento 1: É preciso muito cuidado para afirmar a importância da traição de Judas no desenlace da crucificação. São muitos fatores a serem considerados nesta situação complexa, que levou três anos para chegar ao seu desfecho.
Espantalho 1: É uma afirmação absurda. A traição de Judas é o modelo perfeito no qual todas as traições do mundo estão espelhadas, a qualquer tempo.

Afirmar que o ato de traição de Judas é o modelo perfeito no qual se baseiam todos os demais atos de traição de todos os lugares e de todos os tempos é tornar o argumento absolutamente extremo.

A traição sempre aconteceu, a.C. e d.C., independentemente de Judas. E mais: pela lógica descrita nos Evangelhos, Jesus ia para a cruz de qualquer jeito, seja por Judas, por Pedro, por João, por Madalena ou por Josenilton. Mais um pouco: a história toda não especifica bem as motivações de Judas. Talvez suas intenções nem fossem tão ruins – talvez ele achasse que, na hora do aperto, Jesus deixaria de lado aquela conversa de amar os inimigos e fizesse vir fogo do céu. Talvez ele tenha querido ser fiel ao seu próprio ideal, sem deixar de confiar no poder do seu mestre. Talvez.

Argumento 2: Judas foi um instrumento de um sistema que conduziu Jesus à morte.
Espantalho 2: Pelo contrário. Judas é o único responsável direto pela morte de Jesus.

Dizer que Judas é o responsável direto pela morte de Jesus é uma simplificação extrema. Há n responsáveis por esta morte, desde uma estrutura de poder que inclui o imperialismo dos romanos, a instabilidade política dos hebreus, a intolerância religiosa dos judeus daquele tempo, os métodos cruentos de penalizações, passando daí para indivíduos, como os precitados Pilatos, Anás, Caifás, e mais Herodes, outros sacerdotes não citados, os soldados que o açoitaram, os soldados que o pregaram na cruz (na exacerbação do espantalho, os mais diretos de todos) e, pasmem, Judas. E pasmem mais ainda: o próprio Jesus é responsável pela própria morte. Afinal de contas, seus discípulos ensaiaram uma resistência no ato de sua captura, devidamente interrompida. O argumento como posto é reducionista demais.

Argumento 3: Seria importante fazer uma revisão da conduta de Judas. Não sabemos exatamente suas motivações e o quanto seu equilíbrio estava preservado. Quem sabe não temos diante de nós um ato de loucura?
Espantalho 3: Não pode ser. Afirmar isso é o mesmo que dizer que todos os loucos são indignos de confiança. Essa afirmação parece querer colocar todos os loucos na condição de maus.

Alguém poderia arguir que a visão sobre Judas deveria ser revista, pois, além de ser um típico cidadão do seu tempo, não há condições de afirmar se ele não se encontrava pressionado por outros motivos que não fosse uma suposta vontade de trair, até mesmo um desequilíbrio psicológico. O que temos de concreto é o indicativo de seu arrependimento. Se o interlocutor retrucasse afirmando que tal atitude seria absurda porque, neste caso, todas as pessoas com algum tipo de sofrimento psíquico estariam propensas a não ser confiáveis, teríamos que, além de ser um belo princípio para um declive escorregadio, tal argumento é desencaixado do contexto central. Não se quis dizer que pessoas desequilibradas são traidoras, mas é certo que um tormento psíquico pode acarretar atitudes impensadas. As motivações de Judas são de Judas, não são do restante da humanidade. Não se está afirmando que todo e qualquer desequilíbrio é indutor de mau-caratismo, mas que, NO CASO DE JUDAS, não há clareza nos motivos para cometimento do seu ato.

Argumento 4: Os zelotes eram parte legítima para reivindicar a saída dos romanos da Palestina.
Espantalho 4: De jeito nenhum. Judas, o pior de todos os homens, era um zelote.

Se afirmarmos que os zelotes eram parte legítima para reivindicar a liberdade do povo hebreu, alguém poderá dizer que Judas era um zelote, portanto não são dignos de confiança. Além de configurar em um erro da má companhia (falácia da qual falarei futuramente), o espantalho está montado no sentido de que, ao associar os zelotes a Judas, reconhecido como mau e traidor, todo o movimento se torna ilegítimo.

Os zelotes eram uma facção entre outras, com a diferença que eles estavam propostos a pegar em armas, como vimos em tantos eventos da História (Revolução Francesa, Independência dos EUA, Revolução Russa, tem para todos os gostos). Outros grupos lidavam diferentemente com a situação: os saduceus preferiam se aliar aos romanos, sob a garantia de que não perderiam suas posses; os fariseus eram contrários à presença romana, mas faziam uma resistência do tipo passivo, mantendo uma postura ideológica de submissão inconformada; os essênios preferiam pular fora do centro nervoso dos conflitos, refugiando-se no deserto e levando vida eremítica. Os zelotes se propunham a ir para o pau, mesmo sabendo que suas chances de sucesso eram exíguas. Eram violentos e agiam em emboscadas, é verdade. Mas o argumento utilizado acima forma um belo espantalho, porque, ao apontar os defeitos de Judas, julga-se uma corrente inteira.

É isso aí. Se alguém lhe disser: “Ah, tá... Quer dizer então que blá, blá, blá...”, segura, que lá vem a falácia do espantalho. Um debate em voga é a corrupção. Se digo que ela é endêmica no país, que praticamos pequenas corrupções com frequência indetectável (falei há tempos sobre isso), alguém responderá, idiotamente: “Ah, tá... Quer dizer que quem rouba o pão tem que ter a mesma pena do milhão”. Sacaram?

De toda a forma, não há nenhuma sombra de dúvida que o espantalho tem seu maior uso no debate político. A mecânica do jogo político trabalha com o desmerecimento dos feitos e propostas alheios, e, para tanto, falácias depreciativas, como o ataque pessoal e o poço envenenado, assim como as distorções do espantalho são muito boas. É bem verdade que nossos caros representantes costumam colaborar com seus detratores, mas isso não autoriza ninguém a corromper a lógica para se arrogar como dono da verdade.

Espantalho não falacioso? Bom, como há uma intenção em distorcer, geralmente não podemos achar espantalhos que carreguem um erro em si. Mas nem todos são mentirosos. A sua intenção é distorcer, e, para isso, não precisamos obrigatoriamente da falsidade, mas do exagero, da redução e assim por diante.

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E já que toquei no assunto, aqui eu gostaria de fazer um apartado para colocar algumas opiniões sobre a situação política atual. Não resta dúvida que, antes de mais nada, tenhamos uma profunda decepção com a nossa classe política. As investigações da operação Lava Jato estão elevando o nível de descontentamento a patamares impensáveis, e isso é um problemão.

Eu estou decepcionado, como tantas outras pessoas. Um dos problemas que o PT trouxe ao equiparar seu modus operandi ao dos demais partidos é a impressão de que a vala é comum. E, com isso, qualquer alternativa à esquerda no poder ficará presa à impressão geral de que o discurso social é uma mera ilusão. Será difícil que a população acolha novamente uma proposta séria à esquerda, dado o eterno espantalho que o PT se tornou.

O lado B: seria a hora de uma guinada liberal, ou até mesmo conservadora? A Lava Jato vem mostrando que não, ao menos se quisermos estabelecer algum nível de honestidade. Claro que o foco está no governo atual, mas as investigações demonstram que não há virgens nesse puteiro. Mais ainda: que nunca houve. A própria investigação tem sido colocada entre parênteses por um número cada vez maior de pessoas. Os seus heróis também vêm se pondo envolvidos em deslizes.

O caminho há de ser escolhido com cuidado. A operação Mãos Limpas, na Itália, que em muito se assemelha à nossa Lava Jato, redundou em Silvio Berlusconi. Aqui, pode descambar para um messias da vez, como Bolsonaro. Por enquanto, não me parece que a solução intervencionista esteja próxima, mas tudo tem um princípio, até mesmo porque a resposta atual parece ser a seguinte: se todo mundo é corrupto, vamos sublimar a corrupção e escolher um candidato por outras metas e propostas. Isso é ruim demais.

Apesar de me assustar com o fenômeno, minha grande preocupação não está nos ataques do tipo Corinthians X Palmeiras que estão acontecendo nas ruas e nas redes sociais. Algo muito mais do varejo me perturba, e foi sintetizado no caso da médica que resolveu não atender uma cliente pelo fato desta última ser petista, como está constando nesta reportagem. Achei que se tratava de uma bravata da médica, mas não. Sua mensagem foi no âmbito particular, via WhatsApp.

Quer saber? Eu achei a atitude da médica perfeita. Já falei um sem número de vezes neste espaço que não devemos nos meter onde não conseguimos separar nossas convicções de nossa atuação profissional ou acadêmica. Pare e pense: se você é negro, gostaria de ser atendido por um médico racista? Se você é homossexual, gostaria de por sua saúde na mão de um médico homoafetivo? Se você é mulher, confiaria em um ginecologista que não consegue segurar seus impulsos? Melhor que a médica em questão se declare impossibilitada de atender a petista. Só imagino que o mesmo não caberia em uma emergência, mas não foi o caso.

Mas, ao lado disto, há uma pergunta que não quer calar. O que leva uma pessoa, um profissional da saúde, que lida diariamente com vida e morte, que conhece as consequências do adiamento de uma consulta, a não conseguir separar sua vida profissional de suas convicções políticas, ainda mais se tratando de uma CRIANÇA, que não está envolvida pela política, a não ser pelo acidental fato de ser filha de uma militante afiliada ao partido do qual se discorda? Poderá se dizer: é um caso isolado. Espero que sim. Mas é a ponta do iceberg do momento que vivemos em nossas relações. Não políticas, nem sociais, mas humanas. Não vou discutir se o juramento de Hipócrates é um papelucho sem valor, se os códigos de ética mandam colocar certos princípios acima de outros ou não. Minha grande aflição é perceber o quanto o laço social está esgarçado em um momento no qual deveríamos todos pensar em uma solução que nos permita funcionar como país, mas este tipo de atitude demonstra que estamos caminhando no exato sentido contrário, contra o vento. Que medo que se traga a semente do autoritarismo mais uma vez para o país!

Não vou encher muito o saco de ninguém. Vou parar por aqui. E, sim, já votei no PT, como já votei no PSDB (Covas), PMDB (Fleury – sim, admito), PPS (Freire) e até no PV (Gabeira).

Recomendação de leitura:

A citação direta mais antiga a uma falácia do espantalho está em um diálogo de Sócrates, que pode ser encontrada no interessantíssimo livro abaixo:

PLATÃO. Górgias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 22º tomo: a composição

Olá!

Vocês provavelmente já ouviram falar de uma banda chamada Genesis. Também devem conhecer o Yes e o Asia. E, provavelmente, o Marillion, com seus mega-sucessos Kayleigh e Beautiful. Sendo assim, obviamente conheceram o GTR... Não?!
O GTR foi um superbanda da década de 80, formada por músicos absolutamente geniais, como o guitarrista Steve Hackett, do tempo em que o Genesis era povoado com gente do naipe de Peter Gabriel, Phil Collins, Mike Rutherford e Tony Banks, que lançou obras-primas como Foxtrot, Nursery Crime e Selling England by the Pound, todos álbuns para levar à ilha deserta. A outra guitarra era defendida por Steve Howe, dono das cordas do Yes, banda na qual tinha como companheiros os “fraquíssimos” Jon Anderson, Rick Wakeman, Chris Squire e Bill Brufford, além de ter fundado o Asia, que fez muito sucesso em comerciais do cigarro Hollywood (o sucesso – só os velhos entenderão), formada por Geoff Downes (que, diga-se de passagem, produziu o único álbum da banda), John Wetton e o mágico Carl Palmer. Os vocais eram capitaneados por Max Bacon, um vocalista interessante, de voz aguda e levemente abafada, a la Sting ou Steve Perry, que já tinha desfilado pelo Moby Dick e Nightwing. A cozinha ficava por conta de Phil Spalding no contrabaixo, que já havia tocado com Mike Oldfield; e Jonathan Mover, baterista da melhor fase do precitado Marillion. O nome GTR veio do fato de que o grupo pretendia ser uma banda de rock progressivo sem os característicos teclados, sendo substituídos, quando necessário, pelos sintetizadores de guitarra de ambos os Steves. Nas mesas de mixagem, a entrada para guitarras é descrita como GTR.
Com a ousadia da proposta e com um escrete desses não tinha como uma banda dar errado... mas não. O resultado geral é muito frustrante. Observados em seus comboios de origem, esses músicos eram muito marcados pela alta qualidade individual de sua arte. Basta ouvir “After the ordeal” ou “Horizons”, do Hackett ou “Mood for a day”, do Howe, para entender do que eu estou falando. Ocorre que, como aparentemente em tudo na vida, era chegado o momento de se ganhar dinheiro em detrimento da originalidade.  O resultado foi um pop insosso, esquecível em cinco minutos, embora muito bem tocado.
Ao pop o que é do pop. Não estou aqui criticando o estilo. Madonna e Cindy Lauper sabiam produzi-lo muito bem, e além de lhes render alguns poucos caminhões de dinheiros ianques, devo admitir, despido de preconceitos, que era extremamente bem feito. Além disso, eram artistas predominantemente performáticas, fazendo shows que extrapolavam em muito a mera execução musical. Não eram concertos, mas verdadeiros espetáculos multimídia. Evidentemente a pegada dos componentes do GTR não era essa, mas, de uma forma ou de outra, o foco deles deveria sempre ficar mais ligado à música como arte em si. Talvez, no final das contas, o disco autointitulado lançado em 86 não seja propriamente ruim, apenas não tenha correspondido às expectativas geradas pelos nomes envolvidos.
O resultado geral foi o naufrágio. Era um som sofisticado demais para os fãs do mainstream e exageradamente comercial para os admiradores de rock progressivo. O fato de ser formado por grandes músicos não fez do GTR uma grande banda. Motivos outros que não o talento individual de cada um dos membros fizeram o conjunto não dar liga.
Esse é um engano bastante comum, que infelizmente pode ser aplicado às nossas argumentações. Quando em nosso discurso fazemos supor que a associação de boas partes redundará obrigatoriamente em um bom todo, estamos praticando a falácia da Composição.

Belas partes não garantem um belo conjunto

Esta falácia é tipificada como um erro categorial. Ocorre quando há uma confusão semântica entre um elemento particular e o todo que o mesmo compõe (ou vice-versa), porque não são da mesma categoria, apesar de parecer. Por exemplo, um cachorro é um elemento particular da categoria dos mamíferos, mas ele mesmo não é a categoria dos mamíferos. Inferir coisas particulares da categoria “cachorro” para a categoria “mamífero” não é correto. No caso particular do erro categorial chamado de Composição, há uma tentativa de transferir para uma categoria totalizadora as propriedades e características de uma categoria particular, o que nem sempre é possível. Quando se força a fazê-lo, pode-se cair no tal erro.
É muito fácil entender o furo de um argumento de composição. Há muitas pessoas lindas. E elas são lindas porque seu conjunto é harmônico, e não seus órgãos isoladamente. Medidas e proporções são coisas sutis, em que é difícil fazer um prejulgamento sem verificar qual o resultado final. Se eu pegar os olhos de uma, a boca da outra, o nariz de mais uma, sempre selecionando o mais belo, poderemos ter um resultado bastante satisfatório ou algo semelhante a uma máscara feia; nada pode nos fazer prever sem observar a experiência final.
O inverso também é verdadeiro. Partes ruins podem gerar um bom conjunto final, mesmo que isso seja inesperado. Sabem aqueles times montados apenas com jogadores medianos, que não obtiveram sucesso em outras equipes? A ideia inicial é que esse time, no máximo, vai brigar para não ser rebaixado. Mas isso não é obrigatório. Um bom esquema tático e uma preparação física adequada pode fazer com que alguns jogadores evidenciem talentos antes inexplorados, e o time desande a fazer seus golzinhos. Em resumo, partes ruins não constituem obrigatoriamente um todo ruim.
Esta é uma falácia especialmente sutil, porque a composição não-falaciosa é muito frequente. É o princípio geral da Seleção Brasileira, para mantermos a alegoria futebolística: chamamos os melhores em seus times para constituir a melhor seleção. De fato, é de se esperar que a junção de bons componentes resulte em um bom conjunto final. Também é altamente provável que um bom pedreiro, com bons materiais ao seu dispor, com um projeto claro e bem desenhado, em um terreno sólido e bem aplainado vá fazer uma boa casa. A falácia acontece quando damos o estatuto de verdade ao sonho da boa casa sem que a vejamos construída. Ou, melhor dizendo, que o mero fato de existirem boas partes já é argumento suficiente para embasar a conclusão de que o todo será bom também.
A falácia da Composição, vista assim, parece ingênua, mas sua inocência pode jazer profunda nas raízes do preconceito, portanto devemos ser cuidadosos. Isso porque uma das composições possíveis é a de grupos sociais, e nem sempre os elementos de avaliação das partes que constituem o todo são positivos. Imaginemos a seguinte situação: em nossa sociedade, muitos mecanismos avaliativos são utilizados, em modelos muito semelhantes entre si – concursos públicos, vestibulares, exames escritos e così via. Com a baixa qualidade do ensino público, é de se compreender que os usuários deste sistema apresentem maiores dificuldades em enfrentar tais modelos de sabatina, baseados em métodos de conhecimento enciclopédico. As estatísticas podem mostrar, em um número hipotético, que menos de 20% dos aprovados nestas provas e concursos são oriundos da escola pública. Ou seja, um grupo composto por estes indivíduos, falaciosamente, pode ser considerado de incapazes. Um grupo inteiro recebe este estatuto, o que é duplamente injusto, porque há gente que consegue atingir o objetivo da avaliação mesmo com a limitação – a composição é generalizante neste sentido – e o atributo da incapacidade, no mínimo, tem causas que são externas aos membros do grupo. Portanto, estas pessoas são incapazes para que? Tornaram-se incapazes por quê? São realmente todos incapazes? Há hipótese de que possam se tornar capazes? Que método mede sua capacidade? São corretos? São os melhores possíveis? Não estarão enviesados ideologicamente? As perguntas são lançadas no ar, mas a pecha de um grupo em que o todo é tomado pela parte fica.
Nem sempre há erro nisso, no entanto. Para citar um exemplo: isoladamente, as pessoas do Japão têm uma renda maior que os vietnamitas, e, na composição, temos uma renda geral da população como um todo maior também. A diferença está no foco da análise, que deve levar em consideração fatores objetivos e mensuráveis, bem como estabelecer comparações entre renda per capita e total populacional.
Outra coisa: o todo é diferente das partes, já falamos. O fascismo, como sistema, resultou em regimes sanguinários, espírito belicista, liberdade zero e fracasso político, mas seu símbolo, o feixe de varas, carrega um significado muito bem trabalhado, e que contradiz corretamente a falácia da Composição.

O famoso faccio

Individualmente, cada vara é muito frágil. Basta vergá-la com as mãos para produzir sua ruptura. Se cada vara em um feixe é quebradiça, é de se supor que a junção das mesmas também seja, no pensamento simplista da falácia composicionista. Mas as varas unidas em um liame, colocadas lado a lado, faz com que a força aplicada ao conjunto seja distribuída com menor intensidade em cada uma delas individualmente, o que torna ao feixe ser possível suportar a aplicação. O todo do feixe é muito mais resistente que a individualidade das varas.
Só para deixar bem claro, porque nessas coisas de política é muito fácil distorcerem sua visão e suas palavras: NÃO sou fascista, NÃO gosto do fascismo, acho um regime pouco aplicável, principalmente por seu caráter contrário à liberdade e à igualdade e acho que ele tem sido usado como denominação para abarcar tendências pouco louváveis, como o racismo e a repressão das minorias. Mas para mim a elaboração do seu símbolo, é, sim, muito bela. Ainda que me provoque engulhos pelo que significa.
Recomendação de audição:
Como eu mesmo disse no texto, o álbum do GTR não é propriamente ruim, apenas nos foi entregue menos do que seria possível pela mão desses músicos incríveis. Proponho que o mesmo seja ouvido e, se possível, comparado com seus trabalhos anteriores. Vocês verão que é música que não fará ninguém trocar de estação, mas que também não tem parâmetro de equiparação com outras de suas obras.
GTR. GTR. Produzido por Geoff Downes. Londres: Arista, 1986. 44:43

Agradeço à Ná pela foto principal e pelo shape do rosto, à Jazz pela boca, à Bia pelas sobrancelhas, à Deb por um olho, à Mimi por outro e à Rê pelo nariz. Todas vocês são lindas, mas a mascarazinha só comprova o que está escrito neste texto.