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quinta-feira, 14 de abril de 2016

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - Epílogo

"...o medo que algum dia o mar também vire sertão"

Olá!


Passo a régua agora nestas cartas náuticas. Da mesma forma que ocorreu quando escrevi o Diário de Bordo de uma Nau sem Rumo, não tinha também agora a intenção de incomodá-los com um texto de encerramento, para que o assunto não se alongasse muito e ficasse parecendo aquelas infinitas novelas da Record. Mas tenho um tema muito importante para abordar; por isso, vou novamente fazer um epílogo para a série.




Neste momento, acabamos de viver um dos verões mais chuvosos dos últimos anos, o que está restituindo às represas do estado um nível bastante aceitável. Mas quando eu e a patroa fizemos nossa viagem ao Circuito das Águas, a situação era tremendamente preocupante. Para melhor ilustrar, vou acrescer fotos e comentários.



Esta é a Fonte do Vilela, localizada no município de Águas da Prata. Fica no sopé de um morro de onde, no seu alto, brota uma nascente que lhe abastece. A região é uma bela pracinha, com comes, bebes e garrafas para coletar água. São três bicas d’água de cada lado, que, em termos normais, jorram água suficiente para encher um garrafão de 20 litros em um minuto. Para reduzir o excesso de consumo, a vazão foi reduzida para que a mesma operação demore mais do que o triplo do tempo. Isso sem contar que algumas das bicas estavam praticamente inúteis, correndo um humilde filete.



A nascente, como eu disse, fica no alto de um morro. A água desce por um valo até ser canalizada na parte baixa e conduzida à biqueira da foto anterior. Ao subir pela trilha que dá acesso a tal nascente, é comum ouvir o marulhar da água descendo ladeira abaixo. Como não estava ocorrendo tal fenômeno, dei uma afastada no mato e fotografei a pouca água que escorria pelas pedras.



Ao chegar à nascente, podemos observar o veio do qual a água brota das pedras. Havia um fluxo muuuuuuuuito pequeno, com um agravante tremendamente desagradável: um sabor insuportável de ferrugem, denunciando que a quantidade de água fluindo pelos canos era insuficiente para retirar o sabor metálico.



Do outro lado, uma visão um pouco mais desoladora: o valo onde deveria correr água morro abaixo estava quase que completamente seco. Pode-se perceber pela escavação que o volume de água que corre por ele não é tão pequeno quanto o verão fazia parecer.



Essa imagem demonstra com um pouco mais de clareza como o nível do sistema hídrico local estava baixo. Esse é o ribeirão do Quartel, que fica próximo à engarrafadora da cidade. Percebam, pela marca da vegetação, o quanto o nível estava abaixo do normal, denunciado também pela quantidade incomum de pedras aparentes.



Já na pequena Estiva Gerbi, onde há um santuário dedicado à Rosa Mística, há um aguadouro destinado a armazenar água benta para uso dos peregrinos. Não só o fluxo estava interrompido, mas também o tanque estava seco. Também as pequenas biquinhas no interior da capela estavam sem uma única gota.



Já agora estamos em Socorro, nas margens do Rio do Peixe. Pelo que conversei com o pessoal local, poucas vezes na vida os bancos de areia chegaram a ficar expostos. O normal é que apenas as pedras fiquem aparentes. Mas há um certo agravante, na medida em que essa ponte natural raramente chegou a se constituir.



Chegando a Monte Alegre do Sul, percebemos uma situação ainda pior. Nas proximidades do Balneário, há uma fonte disponível para a coleta de água por moradores e turistas. Quando chegamos lá, não só estava desativada, como ainda possuía diversos avisos regulamentando horário de funcionamento e quantidade máxima permitida para coleta.



Acha pouco? O mesmo fenômeno se repetiu na fonte da estação de trem: tudo seco e cheio de avisos para os incautos.



Em Monte Alegre também temos outra triste curiosidade. O trecho do rio Camanducaia que vemos na foto acima é considerado perigoso para balneabilidade, em especial por ser mais profundo e com base movediça. Há placas indicando esta circunstância, mas, na ocasião, a sua profundidade estava na risível e nada arriscada altura do joelho.



Mas o pior ainda estava por vir. Fomos a uma terra particular, que prometia um bom lugar para tomar banho. Chegando lá, havia uma placa oferecendo estacionamento e um dia inteiro de estadia por dez reais, um preço convidativo. Parei o carro e fui procurar o lugar onde deveria pagar, mas a responsável pelo local me disse que não precisava fazê-lo.



(Posteriormente, encontrei em uma revista uma foto da Cachoeira do Sol a pleno vapor, e resolvi inserir aqui, para título de comparação e lamentação. Confronte a foto acima com a foto anterior, trata-se exatamente do mesmo local. Diga-me se não é digna da epígrafe deste texto...).



Era a Cachoeira do Sol. O pessoal da chácara não estava cobrando nada pelo simples fato de que não havia cachoeira disponível, seca que estava! No lugar onde deveria haver um belo salto, tínhamos a nosso dispor umas pocinhas para chapinhar...


Para não dizer que o problema é eminentemente rural, também na cidade de Amparo encontramos escassez de água, nas torneiras disponíveis nas praças do centro histórico, como nesta da foto, próxima ao convento franciscano.

Lembremos que esses retratos são do começo de 2015. A chuvarada atual ameniza e oculta o problema, mas uma nova estiagem mais longa fará com que o problema aflore novamente, talvez pior. É preciso observar com mais cuidado o que temos feito com nosso pobre planetinha, mesmo que nosso excelentíssimo governador ganhe prêmios em sua incompetência e acabe por dar uma maquiada no quase caos que vivemos no ano passado.

Algumas lições importantes podem ser tiradas do filósofo ambiental Peter Singer. Ele é australiano, mas adere à filosofia norte-americana. Como é típico na linha de pensamento dos EUA, Singer segue uma linha do utilitarismo. Esta escola filosófica surgiu entre o final do século XVIII e início do século XIX com o inglês Jeremiah Bentham. Para ele, a ética deveria consistir primordialmente na dialética prazer-dor. Toda ação humana, de acordo com sua natureza, está em evitar a dor e multiplicar o prazer. Pode parecer muito mundano, mas o prazer é o sentimento humano que sintetiza toda a sua razão de existir: a felicidade. Fazer juízo sobre a felicidade, portanto, é exatamente apreciar a capacidade de um ato em produzir dor e prazer. Não deixa de ser uma retomada do antigo hedonismo epicureu, com a diferença que essa busca não se dá pela inevitável ação dos deuses, mas pela disposição racional dos homens. Dessa forma, um homem pode absorver a dor momentânea se, com isso, puder obter a perspectiva de uma benesse futura. Só que vivemos em um meio social, e é nesse ponto que entra a figura do legislador, que tem o dever ético de proporcionar um equilíbrio legal que procure dosar entre os diferentes estratos sociais a capacidade de ser feliz, da melhor forma possível.

Outro importante nome desta escola é John Stuart Mill, que dá uma “vitaminada” nas teses de Bentham, ao asserir que não somente é preciso distribuir prazer em termos quantitativos, mas em qualidade. De fato, Bentham imaginava tornar a proporção do prazer algo tão objetivo que poderia até mesmo ser mensurada, de forma a produzir uma equação. Mill relativiza os componentes daquilo que é reputado como gerador de felicidade, porque cada um dos itens tem valor diferente para cada um dos indivíduos, o que torna impossível sua medida prática. Desta forma, uma teoria do valor seria apenas um número e nada mais. Mas, na essência, concorda com suas teses centrais. E o grande resumão da ópera é que toda ação humana tem valor pelo o que ela tem de útil. Daí o nome da escola.

Portanto, a regra de ouro do utilitarismo consiste em proporcionar um maior bem-estar para o maior número de pessoas envolvido em uma relação. A novidade de Singer é introduzir as espécies animais nesta lógica, fazendo com que pensemos nas consequências que refletem na fauna a partir das modificações no meio ambiente feitas pelo homem, incluindo aí uma espécie de “papel social” dos bichos. Com ele nasce a hipótese do especismo, do qual já falei neste e neste texto. Pincelando rapidamente, o especismo estende a noção de discriminação racial à discriminação de espécies, ao colocar o homem em patamar superior aos demais seres que possuem sensibilidade, sem levar em consideração que sofrimento e prazer também são características de animais não-humanos. Ao apartá-los do cômputo geral preconizado pelo utilitarismo, a relação que deveria manter o equilíbrio da vida na Terra fica manca. É por isso que Singer é defensor ferrenho da alimentação onde são excluídos os acepipes de origem animal, inclusive de derivados não letais, como ovos, mel e leite. Isso porque importa também o uso comercial das espécies, que estariam reduzidas a uma espécie de escravatura. Mas, por outro lado, a utilidade pode explicar o uso de animais em experimentos científicos. Neste caso, há uma utilidade real, há uma causa justificável, muito embora deva ser utilizada ao mínimo e com o menor sofrimento possível, e ser substituída por outras metodologias tão logo seja possível.

Sendo aderente ou não às ideias de Peter Singer, é plenamente possível compreender seu pano de fundo e, melhor ainda, torná-lo ainda mais abrangente, como fazem os defensores das causas ecológicas. Para isso, é preciso racionalizar quanto que cada ação realizada no ambiente pode ser útil para o todo, e não só para a espécie humana. Isso não significa ser um ecochato, mas obter retorno para o nosso próprio bem viver.

Imagine sua casa. Ela pode ter um belo jardim, mas que traz muitos insetos no verão. O que é melhor fazer? Para você, sem dúvida seria eliminá-lo. O quintal ganharia mais espaço, as picadas de fim de tarde seriam extintas, e dá menos trabalho esfregar o chão com água e sabão do que fazer uma poda anual. Por outro lado, ao arrancar suas flores, a ferramenta de polinização que abastece os quintais de seus vizinhos ficaria mais humilde. A beleza da sua casa, da sua rua e do seu bairro seria diminuída. Ainda que sendo uma pequeníssima parcela em uma grande área, perder-se-ia um pouco de frescor e troca de oxigênio. O que é mais interessante para você? Você é alérgico a picadas ou a pólen? Um remédio ou repelente não resolveria o problema? É tudo coisa para se pensar.

É só um exemplo, quase tolo. Mas é isso que precisamos fazer para o mundo. Quanto custa o progresso? Quanto valem as políticas ambientais de longo prazo? Quanto significa tomar cuidados básicos? Diminuir o consumo? Economizar água? O que tudo isso valerá no futuro? Não está na hora de cessar a herança maldita?

Já tá parecendo ativismo e autoajuda. Vou parar por aqui.

Recomendações de leitura:

Certa vez li um livro interessantíssimo do Moacir Scliar, que é um romance, e, como tal, tem a capacidade de nos falar à alma, o que pode ser mais eficiente do que ler tratados e mais tratados. Fica a dica.

SCLIAR, Moacir. O ciclo das águas. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.

Peter Singer é quase um papa de vegetarianos, o que, infelizmente e já de cara, faz com que muita gente olhe seus livros de soslaio. Mas isso é preconceito, porque a defesa dos animais é feita sem coitadismos.

SINGER, Peter. Libertação animal. Porto Alegre: Lugano, 2004.

Jeremiah Bentham (ou Jeremy, como é mais comumente chamado) sintetiza seu sistema utilitarista no livro abaixo:

BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril, 1979. Col. Os Pensadores.

John Stuart Mill aperfeiçoa as teses de Bentham no seguinte livro:

MILL, John S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007. Col. Grandes Obras do Pensamento Universal

Recomendações de viagem:

Por fim, e para fechar definitivamente estas cartas náuticas, indico a viagem a todas as cidades nelas mencionadas. O Circuito das Águas é uma região tremendamente bela e fácil de chegar (partindo de São Paulo, óbvio). O mesmo se estende às cidades que não estão enfeixadas na região, mas que igualmente propiciam belos momentos em suas visitas. Segue abaixo cada uma delas e a sua distância em Km:

Águas da Prata: 238 Km
Poços de Caldas: 258 Km
Estiva Gerbi: 146 Km
Socorro: 132 Km
Lindoia: 156 Km
Águas de Lindoia: 164 Km
Monte Sião: 153 Km
Monte Alegre do Sul: 131 Km
Amparo: 132 Km
Pedreira: 135 Km
Holambra: 140 Km

E por fim do fim: um beijo IMENSO na minha Mimi, que me acompanhou mais uma vez por todas essas terras e poucas águas, na comemoração dos nossos 25 anos de casados. Te amo muito, e que escrevamos juntos algumas outras dezenas de cartas náuticas, ainda que mantenhamos os pés secos.




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