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segunda-feira, 6 de julho de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 14º tomo - O declive escorregadio (bola de neve)

Olá!


Quando eu era pequeno, achei na caixa de correio da minha casa (que nada mais era que a lateral do portão, onde o carteiro encaixava as correspondências devidamente dobradas) um papel sulfite xerocado, onde uma estranha história era contada. Tratava-se de uma pequena cantilena que falava sobre umas orações milagrosas que deveriam chegar ao mundo inteiro. O mecanismo utilizado para falar desta estranha evangelização era reproduzir o mesmíssimo texto e espalhá-lo o mais possível, com uma quantidade mínima que não tenho como lembrar. Evidentemente, estas orações estavam transcritas no tal papel, seguidas pela descrição das graças recebidas pelas pessoas que davam seguimento a tal tarefa, bem como as desgraças ocorridas com aqueles que lhe davam as costas, com morte de filhos e quedas de avião. Estava eu diante de minha primeira corrente, tão comum hoje nestes tempos de internet.

Fiquei um pouco impressionado, mas o bom senso de minha mãe, aliado a uma preguiça atávica, fizeram-me entrar na turma dos candidatos à miséria, o que não acabou ocorrendo, para meu gáudio. Mas descrevi esta pequena historinha setentista para demonstrar que não há nenhuma novidade nestas obras da maldade humana tão frequente hodiernamente, já que, acredite-se, há MUITA gente que ainda perde seu precioso tempo com isso.

Há uma destas, em voga, que me chamou um pouco de atenção, haja vista a combinação esdrúxula de componentes atuais. Vamos a ela.

Sabe-se da fama do pastor Silas Malafaia, e sabe-se também do seu estilo... digamos... histérico de proclamar suas convicções. Mas esse estilo favorece a utilização do seu nome neste tipo de boato. Ele não tem nada a ver com a conversa, como, de resto, toda a notícia é falsa. Acontece que tem gente a quem falta duas coisas: espírito crítico e trabalho. E, por via da alienação ou da maldade, cria esses factoides e espalha-os por aí, elevados à enésima potência com os atuais recursos cibernéticos. Os espíritos mais pobres acreditam e espalham a conversa mole pelo universo todo. O nome do Malafaia foi colocado apenas para dar credibilidade (?!) à notícia. E, além da mentira em si, temos um belíssimo exemplo de declive escorregadio (a falácia da vez) neste exemplar. Vamos com calma para entender.

O hoax diz que o precitado pastor utilizaria seu programa de TV para trazer uma informação bombástica: o governo brasileiro aprovou a implantação de chips no corpo das pessoas para monitorá-las em todas as suas ações, incluindo tudo aquilo que compra, todos os lugares por onde anda e outras vigilâncias mais. Segundo o boato, o pastor diria que isso nada mais é do que o cumprimento da profecia bíblica da besta, que faria com que o homem carregasse em seu corpo a sua marca e seu número, o famigerado e tão mal afamado 666.

(Abrindo parênteses. Esta história está descrita na Bíblia, no livro do Apocalipse, o mais tortuoso e carregado de simbologia de todos. Conforme está descrito em seu capítulo 13...

15 Foi-lhe dado, também, comunicar espírito à imagem da Fera, de modo que essa imagem se pusesse a falar e fizesse com que fosse morto todo aquele que não se prostrasse diante dela. 16 Conseguiu que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, tivessem um sinal na mão direita e na fronte, 17 e que ninguém pudesse comprar ou vender, se não fosse marcado com o nome da Fera, ou o número do seu nome. 18 Eis aqui a sabedoria! Quem tiver inteligência, calcule o número da Fera, porque é número de um homem, e esse número é seiscentos e sessenta e seis”...

Já se falou de tudo sobre este conjunto de versículos e sobre quem seria a tal da besta. Já se disse que era o imperador Nero, que era um país como a União Soviética, que era um dos papas, obviamente sem se chegar a conclusão nenhuma).

Para dar algum tipo de veracidade, há um vídeo acoplado onde a presidente Dilma anuncia a intenção do governo em promover a unificação de todos os documentos do cidadão em um só, um smart card que dispensaria todos os demais. Uma pessoa com algum senso crítico diria: “Tá, e daí?”.

E daí que esse é o ponto de onde despenca a bola de neve. Segundo o texto este seria o PRIMEIRO PASSO para a implantação de uma nova ordem mundial, algo previsto na Bíblia, e que o chip seria o sinal da besta preconizado no Apocalipse. Bom, não preciso dizer a sucessão de desgraças que está prevista em tal escrito, mas perceba como se cai na ladeira e não se tem onde segurar.


Escorregou, lá se vai ladeira abaixo...

E assim nasce o nome desta falácia, o “declive escorregadio”. Também é chamado de “bola de neve”, por motivos óbvios, como se verá. Vamos ver como nasce este nome.

Só quem já levou um tombo na ladeira vai entender o que eu vou falar. Está cada vez mais rara a existência de ruas calçadas por paralelepípedos, nossas queridas pedronas que nos acordavam assustados quando o ônibus deixava o asfalto. Foram substituídas quase todas pela pavimentação asfáltica, mais eficiente e fácil de aplicar e manter. Esse processo de substituição do macadame vem se dando paulatinamente desde meados do século passado, mas as ruas que mais necessitavam desta substituição foram as que mais demoraram a recebê-la. São as ladeiras.

Isso tudo porque havia uma dificuldade técnica em aplicar asfalto nos declives (ou aclive, se você estiver subindo). Como se sabe, o asfalto é aquecido até derreter, formando um líquido de alta viscosidade misturado com brita. Quando é derramado em uma superfície plana, amolda-se ao perfil até secar, ficando suficientemente liso prá você correr macio, como zune um novo sedan. 

O processo funciona bem também nas inclinações leves, porque a secagem é relativamente rápida. Nas moderadas, a aplicação precisa ser feita de modo mais lento e em faixas menores, mas ainda assim é factível. Só que nos declives verdadeiramente fortes, havia um problema sério. O asfalto, ainda quente e mesmo espesso, tendia a escorrer para a parte baixa da rua, formando grandes calombos, além de frisar por completo a já incômoda parte alta, fazendo as nada agradáveis “costelas de vaca”. Isso não era somente um problema para o leito carroçável, mas também causava grandes transtornos nas chuvas - formavam-se belas poças e, pior ainda: como no processo de pavimentação acabava escorrendo asfalto para dentro das bocas de lobo, estas ficavam com suas manilhas reduzidas; às vezes, selando-as por completo. É convite certo para pequenas (ou grandes) inundações. Diante do cenário trágico, melhor deixar as coisas como estavam. Claro que a tecnologia evoluiu e hoje é plenamente possível asfaltar ladeiras, tão frequentes cá nos campos de Piratininga.

Acontece que o paralelepípedo é lisinho, lisinho... A ladeira é inclinada e a chuva faz tudo ficar devidamente escorregadio. Nosso destino é morro abaixo e estamos de chinelo... Na primeira falseada, lá se vai de tobogã até a base do acidente geográfico, agora em duplo sentido. Garantia de hematomas em braços, pernas e regiões menos votadas, com a possibilidade de galos e alguma fratura em costela de menor importância.

É mesmo parecido com uma avalanche: nada segura e vai engolindo tudo pelo caminho. Veja que o mesmo acontece com a falácia. A partir de um evento qualquer, uma série de consequências catastróficas vai se sucedendo, até o colapso final. O problema todo é que a escorregada, quando o argumento é falacioso, não tem concatenação lógica com a conclusão. No nosso caso, a criação de um registro único (ou cadastro único, para os mais espirituosos) é sinal de que vão se desencadear as previsões bíblicas, o que não tem como ser provado. Falta descrever como se dará a tradição lógica de um passo para o outro. Tudo o que temos é o pseudodepoimento do pastor: “Cuidado com o PT (N. do A.: que surpresa!). Primeiro engana dizendo que é somente no cartão e depois a obrigação da implantação na pele e quem não perceber que está entrando numa estrada sem volta vai ser enganado com uma ordem do governo mundial previsto na bíblia”. Sic.

Pois bem. Declives escorregadios são bastante comuns e muitas vezes difíceis de perceber. Em geral, segue-se a lógica de aglutinar uma montanha de argumentos, para que seja pouco possível perceber onde está o erro. Na maioria das vezes, isso acontece engolindo algum passo. Existe uma trovinha de bêbados que diz o seguinte:

“Quem bebe, vai para o céu”.

Claro que é uma brincadeira, mas a amarração da lógica omite a seguinte sequência:

“Quem bebe, sente sono
Quem sente sono, dorme
Quem dorme, não peca
Quem não peca, vai para o céu”.

É um exemplo banal, mas que serve para explicar bem como funciona o processo de escorregar no declive: são consideradas apenas a primeira e a última observação, e o salto direto de uma para a outra faz nascer uma “verdade” não explicada. É a mesmíssima coisa que ocorre no exemplo da corrente. Há um fato, que é a criação do RU (ou outra sigla, como queiram) e a consequente vinda do capeta para perturbar nossas tão justas e solidárias sociedades, sem que se demonstre seu encadeamento lógico. Tudo o que deve ser feito é medrar e não obedecer às hostes diabólicas.

Outro exemplo, vindo diretamente dos debates presidenciais do ano passado. Para quem bem lembra, havia uma rusga especialmente quente entre Levy Fidelix, candidato conservador, e Luciana Genro, de posição à esquerda. Entre as trocas de farpas relacionadas ao tema homossexualidade, nosso caro amigo se saiu com essa:

“Luciana, você já imaginou? O Brasil tem 200 milhões de habitantes, daqui a pouquinho vai reduzir para 100 (milhões)”.

Isso para dizer as consequências do casamento entre homossexuais. Mais uma vez, temos um ponto escorregadio. Em primeiro lugar, é preciso demonstrar porque a diminuição da população é um mal em si mesmo, já que tal condição está claramente colocada na frase. Depois, o fato de existir o casamento entre homossexuais não fará com que tal fato, a redução populacional, surja do nada. Os homossexuais já existem, sem gerar filhos. É preciso verificar se mudar seu estado civil estimulará a tal ponto a ausência de procriação que fará com que a população caia pela metade. A mim, parece que não. Mas se há argumentos, que eles sejam expostos e colocados ao senso crítico.

Não há declive escorregadio não falacioso propriamente dito, já que, para que ele ocorra, é preciso que haja problemas na amarração lógica em um momento da construção do argumento. Mas isso não significa que longos argumentos logicamente bem construídos não possam indicar situações extremas. Neste caso, temos um argumento longo (o que às vezes é desejável e necessário), e não um declive escorregadio.

E, para concluir, voltando à questão do chip, há muitas expectativas promissoras quanto à sua utilização no campo médico. Ele poderá ser usado em várias moléstias, permitindo ao médico, por exemplo, dosar remotamente medicamentos de uso contínuo, necessários ao controle da pressão arterial, a doenças nervosas e cardíacas. Também poderá ser utilizado para constatar alterações significativas que demandem intervenção farmacêutica, internação hospitalar ou realização de exames. Poderá regular quantidades e horários de liberação de medicamentos para os esquecidinhos, bem como substituir as inconvenientes picadas diárias de insulina, hormônios ou de medicamentos para osteoporose. Não me parece coisa do diabo, só tecnologia. E quem dá crédito a esse tipo de baboseira vai se privar dessas benesses. Sinta o tamanho da irresponsabilidade de quem as profere e espalha...

Vou falar bem a verdade: se alguém me demonstrar que a implantação de um chip fará com que eu não precise mais ficar me medicando contra a diabetes, fazendo com que eu possa viver como se não tivesse a doença, pode implantá-lo agora mesmo. Demorou até.

Recomendação de leitura:

O livro que eu vou recomendar é excelente. Trata-se de uma coletânea de contos que versa sobre o absurdo das atitudes humanas, contrastando a realidade com o fantástico. Usa muito do surrealismo para analisar o insólito do comportamento humano. Destaque especial para o conto “O homem que espalhou o deserto”, um belo exemplo poético de uso do declive escorregadio. No caso, muito apropriado.

BRANDÃO. Ignácio de Loyola. Cadeiras Proibidas. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.

Agradeço à Jazz por emprestar os pés para este texto. A ladeira eu não sei onde é.

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