Quando eu era pequeno, achei na caixa de correio da minha
casa (que nada mais era que a lateral do portão, onde o carteiro encaixava as
correspondências devidamente dobradas) um papel sulfite xerocado, onde uma
estranha história era contada. Tratava-se de uma pequena cantilena que falava
sobre umas orações milagrosas que deveriam chegar ao mundo inteiro. O mecanismo
utilizado para falar desta estranha evangelização era reproduzir o mesmíssimo
texto e espalhá-lo o mais possível, com uma quantidade mínima que não tenho
como lembrar. Evidentemente, estas orações estavam transcritas no tal papel,
seguidas pela descrição das graças recebidas pelas pessoas que davam seguimento
a tal tarefa, bem como as desgraças ocorridas com aqueles que lhe davam as
costas, com morte de filhos e quedas de avião. Estava eu diante de minha
primeira corrente, tão comum hoje nestes tempos de internet.
Fiquei um pouco impressionado, mas o bom senso de minha mãe,
aliado a uma preguiça atávica, fizeram-me entrar na turma dos candidatos à
miséria, o que não acabou ocorrendo, para meu gáudio. Mas descrevi esta pequena
historinha setentista para demonstrar que não há nenhuma novidade nestas obras
da maldade humana tão frequente hodiernamente, já que, acredite-se, há MUITA
gente que ainda perde seu precioso tempo com isso.
Há uma destas, em voga, que me chamou um pouco de atenção,
haja vista a combinação esdrúxula de componentes atuais. Vamos a ela.
Sabe-se da fama do pastor Silas Malafaia, e sabe-se também
do seu estilo... digamos... histérico de proclamar suas convicções. Mas esse
estilo favorece a utilização do seu nome neste tipo de boato. Ele não tem nada
a ver com a conversa, como, de resto, toda a notícia é falsa. Acontece que tem
gente a quem falta duas coisas: espírito crítico e trabalho. E, por via da
alienação ou da maldade, cria esses factoides e espalha-os por aí, elevados à
enésima potência com os atuais recursos cibernéticos. Os espíritos mais pobres
acreditam e espalham a conversa mole pelo universo todo. O nome do Malafaia foi
colocado apenas para dar credibilidade (?!) à notícia. E, além da mentira em si,
temos um belíssimo exemplo de declive escorregadio (a falácia da vez) neste
exemplar. Vamos com calma para entender.
O hoax diz que o
precitado pastor utilizaria seu programa de TV para trazer uma informação
bombástica: o governo brasileiro aprovou a implantação de chips no corpo das
pessoas para monitorá-las em todas as suas ações, incluindo tudo aquilo que
compra, todos os lugares por onde anda e outras vigilâncias mais. Segundo o
boato, o pastor diria que isso nada mais é do que o cumprimento da profecia bíblica
da besta, que faria com que o homem carregasse em seu corpo a sua marca e seu número, o famigerado e tão mal afamado 666.
(Abrindo parênteses. Esta história está descrita na Bíblia,
no livro do Apocalipse, o mais tortuoso e carregado de simbologia de todos. Conforme
está descrito em seu capítulo 13...
“15 Foi-lhe dado, também, comunicar espírito à imagem da Fera, de modo que
essa imagem se pusesse a falar e fizesse com que fosse morto todo aquele que
não se prostrasse diante dela. 16
Conseguiu que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres
e escravos, tivessem um sinal na mão direita e na fronte, 17 e que ninguém
pudesse comprar ou vender, se não fosse marcado com o nome da Fera, ou o número
do seu nome. 18 Eis
aqui a sabedoria! Quem tiver inteligência, calcule o número da Fera, porque é
número de um homem, e esse número é seiscentos e sessenta e seis”...
Já se falou de tudo sobre este conjunto de versículos e
sobre quem seria a tal da besta. Já se disse que era o imperador Nero, que era
um país como a União Soviética, que era um dos papas, obviamente sem se chegar
a conclusão nenhuma).
Para dar algum tipo de veracidade, há um vídeo acoplado onde
a presidente Dilma anuncia a intenção do governo em promover a unificação de
todos os documentos do cidadão em um só, um smart card que dispensaria todos os
demais. Uma pessoa com algum senso crítico diria: “Tá, e daí?”.
E daí que esse é o ponto de onde despenca a bola de neve.
Segundo o texto este seria o PRIMEIRO PASSO para a implantação de uma nova
ordem mundial, algo previsto na Bíblia, e que o chip seria o sinal da besta
preconizado no Apocalipse. Bom, não preciso dizer a sucessão de desgraças que
está prevista em tal escrito, mas perceba como se cai na ladeira e não se tem
onde segurar.
Escorregou, lá se vai ladeira abaixo... |
E assim nasce o nome desta falácia, o “declive
escorregadio”. Também é chamado de “bola de neve”, por motivos óbvios, como se
verá. Vamos ver como nasce este nome.
Só quem já levou um tombo na ladeira vai entender o que eu
vou falar. Está cada vez mais rara a existência de ruas calçadas por
paralelepípedos, nossas queridas pedronas que nos acordavam assustados quando o
ônibus deixava o asfalto. Foram substituídas quase todas pela pavimentação
asfáltica, mais eficiente e fácil de aplicar e manter. Esse processo de
substituição do macadame vem se dando paulatinamente desde meados do século
passado, mas as ruas que mais necessitavam desta substituição foram as que mais
demoraram a recebê-la. São as ladeiras.
Isso tudo porque havia uma dificuldade técnica em aplicar asfalto
nos declives (ou aclive, se você estiver subindo). Como se sabe, o asfalto é
aquecido até derreter, formando um líquido de alta viscosidade misturado com
brita. Quando é derramado em uma superfície plana, amolda-se ao perfil até
secar, ficando suficientemente liso prá você correr macio, como zune um novo
sedan.
O processo funciona bem também nas inclinações leves, porque a secagem é
relativamente rápida. Nas moderadas, a aplicação precisa ser feita de modo mais
lento e em faixas menores, mas ainda assim é factível. Só que nos declives
verdadeiramente fortes, havia um problema sério. O asfalto, ainda quente e
mesmo espesso, tendia a escorrer para a parte baixa da rua, formando grandes
calombos, além de frisar por completo a já incômoda parte alta, fazendo as nada
agradáveis “costelas de vaca”. Isso não era somente um problema para o leito
carroçável, mas também causava grandes transtornos nas chuvas - formavam-se
belas poças e, pior ainda: como no processo de pavimentação acabava escorrendo
asfalto para dentro das bocas de lobo, estas ficavam com suas manilhas
reduzidas; às vezes, selando-as por completo. É convite certo para pequenas (ou grandes) inundações. Diante do cenário trágico, melhor
deixar as coisas como estavam. Claro que a tecnologia evoluiu e hoje é
plenamente possível asfaltar ladeiras, tão frequentes cá nos campos de
Piratininga.
Acontece que o paralelepípedo é lisinho, lisinho... A
ladeira é inclinada e a chuva faz tudo ficar devidamente escorregadio. Nosso
destino é morro abaixo e estamos de chinelo... Na primeira falseada, lá se vai
de tobogã até a base do acidente geográfico, agora em duplo sentido. Garantia
de hematomas em braços, pernas e regiões menos votadas, com a possibilidade de
galos e alguma fratura em costela de menor importância.
É mesmo parecido com uma avalanche: nada segura e vai
engolindo tudo pelo caminho. Veja que o mesmo acontece com a falácia. A partir
de um evento qualquer, uma série de consequências catastróficas vai se
sucedendo, até o colapso final. O problema todo é que a escorregada, quando o
argumento é falacioso, não tem concatenação lógica com a conclusão. No nosso
caso, a criação de um registro único (ou cadastro único, para os mais espirituosos)
é sinal de que vão se desencadear as previsões bíblicas, o que não tem como ser
provado. Falta descrever como se dará a tradição lógica de um passo para o
outro. Tudo o que temos é o pseudodepoimento do pastor: “Cuidado com o PT (N. do A.: que surpresa!). Primeiro
engana dizendo que é somente no cartão e depois a obrigação da implantação na
pele e quem não perceber que está entrando numa estrada sem volta vai ser
enganado com uma ordem do governo mundial
previsto na bíblia”. Sic.
Pois bem. Declives escorregadios são bastante comuns e
muitas vezes difíceis de perceber. Em geral, segue-se a lógica de aglutinar uma
montanha de argumentos, para que seja pouco possível perceber onde está o erro.
Na maioria das vezes, isso acontece engolindo algum passo. Existe uma trovinha
de bêbados que diz o seguinte:
“Quem bebe, vai para o céu”.
Claro que é uma brincadeira, mas a amarração da lógica omite
a seguinte sequência:
“Quem bebe, sente sono
Quem sente sono, dorme
Quem dorme, não peca
Quem não peca, vai para o céu”.
É um exemplo banal, mas que serve para explicar bem como
funciona o processo de escorregar no declive: são consideradas apenas a
primeira e a última observação, e o salto direto de uma para a outra faz nascer
uma “verdade” não explicada. É a mesmíssima coisa que ocorre no exemplo da
corrente. Há um fato, que é a criação do RU (ou outra sigla, como queiram) e a
consequente vinda do capeta para perturbar nossas tão justas e solidárias sociedades,
sem que se demonstre seu encadeamento lógico. Tudo o que deve ser feito é
medrar e não obedecer às hostes diabólicas.
Outro exemplo, vindo diretamente dos debates presidenciais
do ano passado. Para quem bem lembra, havia uma rusga especialmente quente
entre Levy Fidelix, candidato conservador, e Luciana Genro, de posição à
esquerda. Entre as trocas de farpas relacionadas ao tema homossexualidade,
nosso caro amigo se saiu com essa:
“Luciana, você já imaginou? O Brasil tem 200 milhões de
habitantes, daqui a pouquinho vai reduzir para 100 (milhões)”.
Isso para dizer as consequências do casamento entre
homossexuais. Mais uma vez, temos um ponto escorregadio. Em primeiro lugar, é
preciso demonstrar porque a diminuição da população é um mal em si mesmo, já
que tal condição está claramente colocada na frase. Depois, o fato de existir o
casamento entre homossexuais não fará com que tal fato, a redução populacional,
surja do nada. Os homossexuais já existem, sem gerar filhos. É preciso
verificar se mudar seu estado civil estimulará a tal ponto a ausência de
procriação que fará com que a população caia pela metade. A mim, parece que
não. Mas se há argumentos, que eles sejam expostos e colocados ao senso
crítico.
Não há declive escorregadio não falacioso propriamente dito,
já que, para que ele ocorra, é preciso que haja problemas na amarração lógica em
um momento da construção do argumento. Mas isso não significa que longos
argumentos logicamente bem construídos não possam indicar situações extremas.
Neste caso, temos um argumento longo (o que às vezes é desejável e necessário),
e não um declive escorregadio.
E, para concluir, voltando à questão do chip, há muitas
expectativas promissoras quanto à sua utilização no campo médico. Ele poderá
ser usado em várias moléstias, permitindo ao médico, por exemplo, dosar
remotamente medicamentos de uso contínuo, necessários ao controle da pressão arterial,
a doenças nervosas e cardíacas. Também poderá ser utilizado para constatar
alterações significativas que demandem intervenção farmacêutica, internação
hospitalar ou realização de exames. Poderá regular quantidades e horários de
liberação de medicamentos para os esquecidinhos, bem como substituir as
inconvenientes picadas diárias de insulina, hormônios ou de medicamentos para
osteoporose. Não me parece coisa do diabo, só tecnologia. E quem dá crédito a
esse tipo de baboseira vai se privar dessas benesses. Sinta o tamanho da irresponsabilidade
de quem as profere e espalha...
Vou falar bem a verdade: se alguém me demonstrar que a
implantação de um chip fará com que eu não precise mais ficar me medicando
contra a diabetes, fazendo com que eu possa viver como se não tivesse a doença,
pode implantá-lo agora mesmo. Demorou até.
Recomendação de leitura:
O livro que eu vou recomendar é excelente. Trata-se de uma
coletânea de contos que versa sobre o absurdo das atitudes humanas,
contrastando a realidade com o fantástico. Usa muito do surrealismo para
analisar o insólito do comportamento humano. Destaque especial para o conto “O
homem que espalhou o deserto”, um belo exemplo poético de uso do declive
escorregadio. No caso, muito apropriado.
BRANDÃO. Ignácio de Loyola. Cadeiras Proibidas. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.
Agradeço à Jazz por emprestar os pés para este texto. A ladeira eu não sei onde é.
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