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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 8º tomo - O poço envenenado

Olá!

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Imagine a seguinte situação: você está atravessando um longo deserto, sob um sol escaldante. Em sua rota, há uma série de poços de onde você pode extrair água suficiente para a sequência de sua viagem, sem que exista a necessidade de transportar grandes reservas do precioso líquido. Estes poços estão localizados em vários oásis, que podem ser vistos a alguma distância. A princípio, apesar do incômodo causado pelo calor, sua jornada segue sem maiores percalços, até que a garganta começa a secar, e você estabelece uma parada no próximo poço disponível ao longo da estrada.


Ao avistar o oásis, você desvia seu trajeto para abastecer seu odre para um novo trecho, seguindo o princípio de não onerar muito a carga com o peso da água. Um fato inesperado, no entanto, ocorre. Já bastante próximo do poço, há um velho senhor. Ao perceber sua aproximação, começa a vociferar contra a qualidade da água, alegando que uma senhora, uma beduína de outra nação, envenenou todos os poços da rota, em vingança ao fato de terem arregimentado seus filhos às legiões de combate, em uma guerra que acontecia longe dali. O discurso do velho era muito apaixonado e convincente, e você decide seguir viagem sem encher suas garrafas, assustado que estava.

Só que o calor não arrefece, e suas reservas se esgotaram. Você resiste por mais dois ou três postos de abastecimento, mas, ao chegar ao seguinte, não vê remédio. Mesmo contra todas as advertências, lança o balde no poço e bebe daquela água suspeita. O efeito é imediato: tontura, náusea, calafrios e sensação de morte iminente. É verdade que o poço estava envenenado ou você somatizou tudo isso que o danadinho do eremita botou na sua cabeça?

Esses são os efeitos da falácia do poço envenenado.


Envenenar o poço é uma maneira de causar prevenção contra um adversário

Pelo que consegui pesquisar, o nome desta falácia deriva da lenda do envenenamento dos poços, atribuída aos judeus, que eram acusados de envenenarem poços e causarem doenças. Como os judeus eram considerados malditos, esse argumento era utilizado para justificar ondas de epidemia, comuns em tempos pretéritos. Envenenar poços era prática comum em tempos de guerras e perseguições, para que o invasor não tivesse de onde extrair água. Aliás, abrindo um rápido adendo, os judeus sempre foram vítimas de inúmeras acusações ao longo da história, e os pogroms passaram a ser sinônimos de violência contra grupos étnicos. Este é um assunto que merece texto a parte, a ser redigido em momento oportuno.

Esta falácia nada mais é do que uma variação do ataque pessoal, com a diferença de que a contraposição se faz antes mesmo que o oponente inicie sua argumentação. O resultado esperado é que tal atitude leve ao descrédito toda e qualquer coisa que venha a ser falada, pela desqualificação antecipada dos argumentos. É uma ação psicológica, que procura fazer com que a audiência já erga um muro de proteção contra aquele que nem ao menos começou a arguir.

Só que escavar poços envenenados não constitui argumentação lógica. Desqualificar um adversário pode ser muito eficiente em termos de plateia, mas tem um caráter de engodo. Vou dar mais um exemplo para que se perceba como é possível manipular a opinião de uma pessoa, com uma rápida novelinha:

Duas pessoas se encontram na rua. Uma pergunta à outra:

- Bom dia. Poderia me dizer onde fica a taverna do Sr. X? Dizem que ele serve um ótimo vinho.

- Ah, cuidado com aquele pilantra. Ele é todo atencioso, vai te oferecer uns amendoins de graça, te colocar numa mesa bem arejada, tudo isso prá vender mais caro um vinho que tem mais fama do que sabor. É o primeiro estabelecimento da próxima rua, mas fique atento.

Apesar do estranhamento e da inquietação, o primeiro sujeito vai à tal taverna, e encontra, de fato, tudo conforme foi dito pelo mal-humorado transeunte: uma recepção calorosa, uma mesa bastante limpa, uns acepipes de cortesia...

Nosso amigo saiu correndo do estabelecimento antes mesmo de ver a carta de vinhos.

Todo satisfeito, o interlocutor dispara uma sonora gargalhada e diz: “Eu não te disse?”.

Não sabemos qual foi a motivação do detrator, se é um concorrente, se há algum problema pessoal, se ele é contrário a bebidas alcoólicas. O fato é que ele aplicou uma manipulação psicológica que deu certo, porque narrou uma sequência verídica que se confirmou de início, mas que não foi levada a cabo para averiguação da verdade. Esse é o truque da falácia do poço envenenado – ela não mente necessariamente, mas tenta enganar sempre.

O poço envenenado é sobejamente utilizado em política, principalmente nos cada vez mais chatos debates televisivos. Pincei um exemplo da última campanha eleitoral para a presidência. No caso, o candidato Eduardo Jorge dirige-se ao candidato Levy Fidelix, que falou groselha dantesca em debate anterior, ao se referir à comunidade homossexual como uma minoria a ser enfrentada. Ele diz o seguinte, ipsis litteris:

“EDUARDO JORGE: Candidato Levy, você viu que, durante o tempo todo, eu me portei com a maior ternura com os candidatos. Da última vez, segunda-feira de madrugada, o senhor extrapolou todos os limites e, com a sua fala, agredindo a população LGBT, agrediu 99,9% da população brasileira. Na própria segunda-feira, o nosso partido e outros entraram com uma representação contra o senhor. Eu proponho que o senhor peça perdão pela sua fala ao povo brasileiro”.

Pois muito bem. Eu não votaria no Levy Fidelix nem para Rei Momo. Acho mesmo que ele agrediu despropositadamente a população LGBT, menos por sua posição contrária à união civil, mais pela sua proposta de confronto, que pode ser entendida de várias formas, inclusive violentas. Ademais, gosto do Eduardo Jorge e acho que costuma ter boas propostas e concordo com sua indignação, mas uma coisa é fato: do ponto de vista da lógica do discurso, ele envenenou o poço. Percebam que a sua colocação já põe, de imediato, o outro candidato na defensiva. Ele não pede esclarecimentos, não delimita sua própria posição, apenas encosta o adversário na parede.

É possível falar em envenenamento de poço não falacioso? Como o termo pressupõe malícia na colocação, não. Mas é perfeitamente possível e não falacioso qualificar um argumentador quando esta qualificação for essencial para deixar os posicionamentos mais claros. Imaginemos, por exemplo, um debate em que são propostas as diferentes visões religiosas sobre um assunto qualquer. Neste caso, não só é desejável, mas é fundamental que se saiba de que ângulo o debatedor enxerga. Assim, é preciso que se saiba se o propositor é cristão, umbandista, hinduísta, budista, ateu ou coisa que o valha. Desta forma, elimina-se outra falácia – o ad hominem circunstancial, aquela em que dizemos algo assim: “Ah, você diz isso porque é cristão”. Isso é óbvio, já foi colocado antes mesmo do argumento. Isso é um caso de pré-qualificação que não é falaciosa, não há envenenamento do poço.

Recomendação de leitura:

A obra de Giovanni Guareschi é muito divertida. Trata-se das contraposições de um padre conservador com um prefeito comunista, no imediato pós-guerra italiano, quando tudo o que existia de um país devastado era apenas a vontade de se reorganizar como nação. Como seus livros são altamente politizados, o uso de poços envenenados é abundante. Menciono um dos seus livros, o primeiro; e um capítulo em especial, onde há um caso evidente. Este capítulo se chama “O comício”, e ocorre quando o representante da oposição sobe ao palanque para realizar seu discurso.

GUARESCHI, Giovanni. Dom Camillo e seu pequeno mundo. São Paulo: Difel, 1980.

Agradeço à Jazz por representar nossa beduína malvadinha na tapeçaria.

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