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terça-feira, 2 de outubro de 2012

Sobre as lixeiras tão degradadas quanto o ethos paulistano

Olá!

Se vocês atentarem ao meu post anterior, perceberão que prometi pensar em uma solução de transição para o problema dos estudantes que atualmente estão sendo desperdiçados no modelo educacional atual. No entanto, um comentário inserido no Facebook pela Renata, minha afilhada e companheira de tertúlias, chamou-me a atenção sobre um fato correlato, meio que consequência de tudo o que falei até agora. Vamos a ele. Transliterando...

 “Pesquisando sobre o vandalismo contra as lixeiras públicas, encontrei alguns dados assustadores...
Desde o começo do ano 150 mil novas lixeiras foram instaladas na capital, o que custou cerca de R$10 milhões. Somando com as 36 mil que já existiam, tinham 186 mil lixeiras espalhadas por aí. Em 2010, 20 lixeiras eram destruídas por dia, hoje são 60! 60 lixeiras destruídas por dia! Há um mês atrás, já eram registradas 13 mil destruídas! E gasta-se cerca de R$340 mil por ano com o vandalismo contra as lixeiras...
Porque destruir algo que é BOM pra cidade?! Quanto desamor.”

Desamor... São Paulo é como uma menina que não queremos para casar, mas só para passar uma noite. Só que passamos duas, três, quatro, a vida inteira. Quando olhamos para ela, damo-nos conta de que está velha, feia, desdentada, mal-cuidada, estragada... Isso porque não a queríamos para nós, queríamos apenas usufruir dela. Amaldiçoamos o momento em que resolvemos nos enredar com seus encantos, e a destratamos ainda mais. Damos uma olhada um pouco mais crítica e percebemos que ainda existe um pouco do charme antigo, algo que nos traz uma lembrança virtuosa, um jeito de ser diferente. E, ao invés de tentarmos reavê-la, de acolhermos o que restou dela como algo que faz parte de nossas vidas, revoltamo-nos mais um pouco, aumentando a quota de desprezo.



Parece que desaprendemos totalmente a lição dos antigos gregos, especialmente a noção de eudaimonia de Aristóteles. Essa palavra feiosa quer dizer felicidade. Para nosso sábio, a felicidade não era algo unicamente individual, mas coletivo também. Nosso mundo moderno, altamente individualizado, limita nossa compreensão de felicidade ao plano meramente subjetivo. Nossa busca por ela é algo que pertence unicamente ao indivíduo, sem levar em conta a alteridade. Como a subjetividade é difícil de ser mensurada, temos dificuldade de constatar até mesmo se nós, entidades únicas, somos felizes.

Aristóteles parte do pressuposto de que nenhuma felicidade é completa se não for medida pela régua da ética, e sempre passa pelo que sente o outro. Essa busca se estende por toda a coletividade, e desta forma podemos observar a felicidade objetivamente: é possível constatar a cidade feliz. De que forma? Analisando o espaço público.

A cidade feliz é bem organizada. Suas ruas e praças são pontos de encontro plenamente ocupadas de gente, que se distribui de acordo com seus anseios e interesses. Os nomes atribuídos aos logradouros tem significado e fazem remissões à memória de quem transita por elas (como explanado neste post). Nesta cidade, as coisas funcionam bem, são oferecidas a todos na medida do que é possível fazer, com equanimidade. Ela acolhe bem os forasteiros. A gestão se interessa pelo bem comum e essa é a chave para a compreensão desse estado de ânimo. Com isso, todos cuidam do bem público: a cidade é limpa, os orelhões funcionam, as ruas não tem buracos, as lixeiras existem. Tudo o que São Paulo não é.

A falta de entendimento do que é a felicidade objetiva está no substrato do vandalismo, mas não o explica completamente. Precisamos procurar na psicologia uma explicação mais completa. E concluo, a partir das idéias da professora Maria Rita Kehl, que há dois fatores que sobrepesam na execução deste ato irracional.

Em primeiro lugar, é preciso entender a reação das pessoas diante do equipamento público. Por que elas reagem negativamente diante de um bem que também é seu? Cito como exemplo a depredação das escolas, estas entidades que encarei nos meus posts anteriores (aqui e aqui). Um espaço que não me é agradável causa repulsa, e tendo a destruí-lo de alguma forma, já que não corresponde aos meus anseios. Pode ser uma agressão física, como a quebra de portas e vidros, pichação, dejetar em muros; ou uma agressão mais tácita, como deixar um bem se deteriorar, abandonar seu uso, não querer nem ouvir falar dele.

Há alguns anos atrás, porém, foram criados os CEU’s, modelo escolar que procura atrair a comunidade ao ambiente educacional, oferecendo uma série de atividades que vão além do mero ensino. Não quero aqui discutir se esse paradigma pode ser adotado de forma sempre eficiente, mas o fato é que comunidades carentes passaram a contar com piscinas, teatros, cinemas, quadras esportivas e outras benesses, nunca pensadas antes. Eram equipamentos de contos de fadas que agora estavam disponíveis para seu uso. Acontece que, em um primeiro momento, os CEU’s foram objeto dos mesmos atos voltados às escolas comuns, ou seja, vandalismo.

Tudo tem a ver com a expectativa do desejo irrealizável. A vontade é um imperativo difícil de lidar, porque é constante e insaciável. Há uma dificuldade, no caso, em se perceber que tudo o que antes era símbolo de obstáculo para a sua satisfação agora se encontra ao seu alcance. A primeira reação diante de uma outrora distante piscina é de raiva cega, no sentido de que a validade do símbolo permanece, ainda que inconscientemente. Ou seja, essa mesma piscina permanece como significado de pressão à minha classe social, só que ela agora está ao meu alcance, e meu desejo submerso não é de usufruí-la, mas de destruí-la. Está mais próxima de minhas pedras do que de mim. Em resumo: a piscina é minha, mas não a sinto como minha. Ela parece pertencer a uma classe social que não é minha, e eu a odeio por causa disso, justamente porque eu a sempre quis e nunca pude a ter. Somente com muita insistência este sentimento cessará, e passarei a reconhecê-la como parte de meu meio. O processo não se aplica unicamente às camadas mais pobres. Também a elite tem anseios que não estão ao seu alcance, como a sensação de desapego que a “ralé” tem, com sua capacidade de se unir com maior simplicidade ou com a alegria desinteressada de se reunir para uma feijoada na laje, em um amplo espírito de colaboração. Os instintos destrutivos coletivos não podem ser menosprezados, conforme já analisei neste post.

E nisso reside o segundo pilar desta minha sustentação: o homem age por mimese. Essa estrutura pode ser explicitada em dois sentidos: é vertical quando transmitida de pais para filhos, professores para alunos, governantes para contribuintes; e é horizontal quando entendida como benéfica para um determinado grupo. Explicando melhor: os filhos imitam os pais sem muito juízo crítico, algo próprio da idade, porque os tem como modelos. Se as atitudes dos genitores não se pautam na ética, serão absorvidas pelos filhos da mesma forma, com o perigoso estatuto de boas e verdadeiras. Idem com os gestores da coisa pública. Se os políticos são interesseiros e corruptos, validam e permitem essas mesmas mazelas para a população como um todo.

O mesmo vale para os nichos sociais. Se o vandalismo é bem aceito, será praticado por todos. Desta forma, a destruição da lixeira é encarada como um protesto, mas um protesto burro, porque não se espelha na razão e não se preocupa em deixar claros os motivos que o levam ser feito. As pessoas passam a tomar atitudes que foram interiorizadas totalmente sem critérios, e não percebem o mal que fazem a si próprias, como se o ódio fosse coletivo, ainda que injustificado.

A mistura da reatividade negativa diante da simbologia que pula o muro do significado, com a capacidade mimética e multiplicadora inerente à vida em grupo é explosiva. E vai dinamitar muros, paredes e lixeiras. É a mostra do nosso ethos desagregado, que se julga incapaz de lidar com suas próprias mazelas.

Há ainda um terceiro fator, mais técnico e mais sórdido. As lixeiras foram projetadas para que seu acesso fosse dificultado. Isso traz problemas para o processo de coleta de materiais recicláveis, que os governos proclamam aos sete ventos que fazem questão de incentivar. Os catadores precisam acessar o lixo, e muitas vezes, seja por desleixo, seja por raiva, seja por simples inadequação do recipiente, provocam a quebra das lixeiras. Isso seria facílimo de resolver, bastando utilizar lixeiras mais “amigáveis”. Mas não sei se há interesse em tornar as coisas mais simples para quem exerce uma importante função social, mas é visto com repugnância (lembremos que, se o Brasil é campeão mundial em reciclagem de alumínio, não é por conta da conscientização da população, mas pelo trabalho dos catadores).

A solução para esta aporia? Basicamente, insistência no poder público em repor os equipamentos danificados, punição na forma de trabalhos comunitários aos vândalos (e/ou multa, se o gracioso tiver posses) e educar as crianças e os jovens, tantas vezes quantas forem necessárias, a respeitar como suas as coisas públicas. Se não há respeito ao outro, que haja a si mesmo.

Desamor, enfim, é a palavra correta. Desamor à cidade, ao próximo, a si mesmo. Parabéns, Rê. Enquanto não nos convencermos que São Paulo não é a nossa periguete, continuaremos a vendo e tratando como tal.

Recomendações:

O livro de Aristóteles que discorre sobre a eudaimonia é o seguinte:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

Toda a base psicanalítica utilizada neste texto foi extraída do pensamento da professora Maria Rita Kehl, membro da Comissão da Verdade, que possui um mui interessante site no seguinte endereço:

2 comentários:

  1. Professor Décio, parabéns pelo seu dia, primeiramente!
    Penso que a questão das lixeiras é um pouco mais ampla, tanto em sua causa quanto em sua solução.
    Parte da minha família mora na capital, e os visito com grande frequência. Moro em São Bernardo do Campo, e ando por todo o ABCDMRPS...
    As lixeiras usadas em São Paulo e na maioria das outras cidades da periferia não é só a questão de serem pouco amigáveis, mas, a de serem mal pensadas, pouco práticas e extremamente frágeis.
    No bairro do Jordanópolis, em São Bernardo do Campo, existe uma porção de praças, até que conservadas. Em Janeiro de 2016, a prefeitura da cidade instalou novas lixeiras nas praças, nos mesmos pontos em que as anteriores estavam instaladas. Hoje, depois de quase 10 meses, vemos a maioria das lixeiras no chão, mas ainda no mesmo local. São feitas de um plástico injetado frágil (PP), tem uma espessura incompatível com o material que possuem (não tem nem 5mm de espessura de parede), os suportes são mal dimensionados e o conjunto não é pensado para o peso real do lixo. Em muitos casos, não vejo 'vandalismo', mas sim algo feito para não durar, para causar problemas, ao invés de resolvê-los. Por quê não investir um pouco mais inicialmente e fazer lixeiras mais resistentes? Podem ser feitas de concreto, embutidas nos postes (existe no sul do país), podem ser feitas em material plástico com resistência muito maior, podem ser feitas com apoio inferior e melhor dimensionamento do suporte, podem ter uma tampa que não atrapalhe a entrada de lixo e que facilite a saída para os coletores...
    Enfim, o seu texto é excelente, e claro que a população tem uma boa parcela de culpa neste caso, mas, veja o metrô de São Paulo: as estações mais antigas ainda possuem as lixeiras originais. Vejamos o Sul do país, como em Caxias do Sul, que possui lixeiras de madeira há décadas, e, mesmo pichadas, ainda cumprem sua função muito bem...
    Quanto custou cada lixeira como a da foto? Será que valeu a pena? Quantas são compradas e em qual rotina? Vejo que a população precisa fazer questionamentos mais profundos antes de, apenas, apontar o dedo para sí mesmo. Prefeituras procuram sempre motivos para licitações... Governos no geral...

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