"Nem a aprendizagem individual e nem a igualdade social podem ser incrementadas pelo rito escolar. Não podemos superar a sociedade de consumo sem antes compreender que a escola pública obrigatória recria tal sociedade" – Ivan Illich
Olá!
Tenho me dedicado
bastante à questão da educação neste
espaço, em especial nos últimos tempos, quando me
detive nas questões que levaram à despolitização
da juventude, às propostas de uma nova escola e aos
mecanismos que permitiriam o aproveitamento da massa de estudantes
que remanesceriam da antiga base. Acontece que um sem-número
de propostas já foram colocadas pelos mais diferentes
pensadores da educação, cada uma com seus elementos de
interesse e com suas questões menos bem resolvidas, o que
torna difícil fazer uma miscelânea eficiente para
resultar em um sistema verdadeiramente adequado. Mas hoje gostaria de
fechar meu foco em uma sistemática um tanto inusitada,
descrita pelo “maluco” Ivan Illich, um austríaco de origem
croata que propôs a extinção da escola.
A pergunta que norteia
o pensamento de Illich é a seguinte: para que e a quem serve a
escola tal como a conhecemos? Por que necessitamos de escolas? Por
que esse modelo é inquestionável? Para ele, a escola é
uma instituição que reforça a ascendência
das camadas situadas no topo da pirâmide social sobre as
demais. Funcionaria como um cabresto social, limitando o alcance da
visão daqueles membros que não estão incursos em
sua elite. Desta forma, a escola se constitui em uma barreira de
proteção às camadas mais abastadas da população,
que decretaria o que é útil de ser ensinado para a
população em geral. Para tanto, a educação
formal desqualifica os conhecimentos adquiridos de maneira
autodidática. Illich, no entanto, reputa o valor do
conhecimento como intrínseco, ou seja, vale por si mesmo, e
não pode depender de uma certidão para validá-lo.
A certidão se presta unicamente para constatar a conformidade
da educação recebida com os ditames dos detentores do
poder.
Neste exercício
de dominação, a escola é ferramenta para
desnaturar o ser humano e anestesiar sua característica de
questionador. De fato, a escola é um estabelecimento com
poucos vínculos ao mundo que rodeia a criança. O
conhecimento transmitido não passaria de manual de instrução.
Essa segregação do educando com seu ambiente é
perversa, porque tende a reduzir a importância deste último.
Esse descolamento é especialmente prejudicial se considerarmos
as dificuldades que há em reconhecer os vínculos
simbólicos que existem entre o objeto representado e o
conhecimento exposto, causando um brochante desinteresse. Um exemplo
muito simples parte de Paulo Freire, que criou um método de
alfabetização de adultos extremamente rápido e
eficaz. Esse método leva em conta a realidade vivenciada pelos
alunos, e procura basear o aprendizado em não deslocar o aluno
desta realidade. Para tanto, era considerado, em primeiro lugar, o
universo de vocábulos da comunidade em questão, o que
facilitava sobejamente a absorção dos códigos
lingüísticos. Com isso, a situação
existencial do grupo era a baliza para a escolha do que deveria ser
transmitido, e não a utilização de algum livro
ou cartilha que fixasse normas estranhas ao conjunto empírico
dos alunos, dificultando a assimilação. Além
disso, o educador se deslocava para a comunidade, e não o
contrário. Em resumo, parte-se do mundo em que se vive para a
elaboração do código lingüístico, e
esse volta em forma de conhecimento ao mundo, para questioná-lo
e transformá-lo.
Mas se não
existir a escola, o que teremos? O pulo do gato de Illich seria a
formação de redes de conhecimento que teriam o objetivo
de substituir o modelo escolar por um paradigma de solidariedade. O
conhecimento seria objeto de compartilhamento movido por interesses
baseados em cada um dos grupos que deles sentissem necessidade ou
aptidão. Lembram quando emiti este post? O nome disso é
anarquia (ou quase isso), não no sentido corriqueiro de
bagunça, mas de ausência de centralização.
Illich não falou expressamente em uma anarquia educacional,
mas é possível subentender algumas características
comuns. A escola como prédio não é necessária,
porque os saberes estão no mundo e nas pessoas que o habitam.
Como preconizou outro pensador-chave do século XX, Michel
Foucault (leiam algo sobre ele neste post) há portas
que servem para impedir a saída, como as dos presídios
e manicômios, e outras que servem para impedir a entrada, como
as dos teatros, cinemas e – cinquina – das escolas.
Trocando em miúdos: há sistemas em que a sociedade não
quer que tenhamos fuga, porque somos indesejados; e há outros
que a mesma sociedade não nos quer dar acesso – ao saber, ao
conhecimento. Illich pensa não em derrubar estas portas, mas
extingui-las – uma solução mais radical, portanto.
Em suas premissas,
Illich indica que a base para o funcionamento de seu sistema está
na solidariedade: não se deve pensar unicamente no desejo de
aprender, mas também no desejo de ensinar. Para ele, em algum
momento da vida, todos os interessados devem ter ao seu dispor o
acesso aos meios de aprendizagem disponíveis; mas também
devem ter a disponibilidade de oferecer seus conhecimentos a quem
possuir interesse em suas áreas de predileção e
especialização.
A educação
se daria em termos de redes, que Illich denominou “teias de
aprendizagem”, que pressupõe democracia da informação,
no sentido de que esta estaria disponível no momento em que
houvesse requisição por um interessado. Também
pressupõe a interconectividade e a possibilidade de permuta
dos conhecimentos, numa relação dialética,
utilizando todos os meios de propagação disponíveis.
Percebam que a obra-prima de Illich foi lançada em 1971,
quando a internet não estava ainda nem no sonho dos meios
educativos (nossa concepção de futuro estava mais para
os Jetsons, com sua revolução nos transportes,
do que em uma revolução da disponibilização
dos saberes) e já nesse momento ele aventa a possibilidade de
utilização da mídia, como a televisão e o
rádio, para a disponibilidade do saber. Hoje, sem dúvida,
estas idéias estariam muito mais palpáveis. Vejamos:
A educação
deveria levar em conta as seguintes teias para ser levada a cabo:
1º
- Acesso aos objetos educacionais: diversos ambientes são, por
si só, educacionais, como museus, laboratórios e
bibliotecas. Outros deles são oficinas de trabalho, mas que
também podem fornecer conhecimento, seja ele técnico,
artístico, religioso. São as fábricas, os
portos, as lojas, as agências de viagem, os consultórios
médicos, as fazendas, as igrejas, os ateliês. Todos os
processos realizados nesses estabelecimentos podem ser utilizados na
educação formal, como já acontecia com os
antigos aprendizes;
2º
- Compartilhamento de habilidades: trata-se do escambo de saberes.
Disponibiliza-se uma determinada habilidade em troca da obtenção
de informações sobre outra área de conhecimento
afim. Desta forma, com a conciliação desses saberes,
temos uma expansão da sua disponibilidade, já que o
conhecimento detido por um indivíduo agora passa a ser
compartilhado por dois, e assim sucessivamente;
3º
- Encontros entre colegas: trata-se de uma modalidade que permite aos
interessados em uma determinada especialização se
reúnam para delinear objetivos e pesquisas a serem realizadas.
Esta reunião teria o escopo de estabelecer uma divisão
de tarefas que seriam, por fim, agrupadas e discutidas em comum. Seus
resultados finais deveriam ser objeto do mesmo compartilhamento
mencionado no item anterior;
4º
- Consulta a educadores: os especialistas em determinadas áreas
estariam disponíveis para consulta em questões que se
tornassem mais complexas, em uma espécie de consultoria. O
importante é notar que o especialista em uma determinada área
é aprendiz em outra. O processo de aprendizagem, desta forma,
tornar-se-ia incessante.
Todas
estas redes, ao fim e a cabo, também se entrelaçariam
entre si. Como a informação não teria dono, o
grande interesse em movê-las seria a aquisição de
mais e mais conhecimentos, sem propósitos econômicos.
Com isso, não existiria a intermediação
deturpante da escola, enviesada pelos rumos que a sociedade como
conhecemos dá a ela. O simples fato de existir uma rede de
alcance mundial, como é a internet, já nos faz pensar
nestas possibilidades de uma maneira um pouco mais tangível.
Tenho muita dificuldade
em concordar com as teses de Illich. Os porquês:
- Em primeiro lugar,
porque a sociedade está de tal forma institucionalizada que
fica muito difícil supor a possibilidade de uma transmissão
de conhecimentos que funcionaria de maneira tão difusa. É
preciso pensar, portanto, que todo o organismo social funciona a
partir de “compartimentos”, como os partidos políticos, os
sindicatos, as empresas, os órgãos de defesa do
consumidor, as ONG’s e assim por diante. Isso porque há uma
tendência em segmentar interesses e reunir funções
e aptidões ao redor de núcleos, que estariam ausentes
em uma sociedade desescolarizada.
- Também é
preciso supor uma rede de solidariedade tão bem aceita que
provavelmente seria impossível praticar a livre iniciativa.
Mesmo que eu ache isso lindíssimo, parece-me algo
absolutamente infactível no modelo social que temos hoje,
baseado no mérito.
- Outra coisa: a escola
não precisa, necessariamente, ser aprisionadora para existir.
É certo que é muito difícil remover o véu
ideológico porque os professores e diretores são
humanos e não são neutros, mas de toda forma é
possível supor, a partir de várias experiências,
que os alunos possam ter uma tal participação na guia
de suas vivências acadêmicas que a simples extinção
da escola não seria necessária para solucionar a
questão da utilização dos conhecimentos em suas
vidas práticas.
- Mais uma questão
diz respeito a um fenômeno recente, que é a aplicação
da educação a distância (EAD), que, mesmo
involuntariamente, acaba por utilizar algumas teses de Illich, como a
utilização de redes de informação e
autonomia de horários e pesquisas. Ou seja, mesmo com a
elaboração das disciplinas e da avaliação
dos educandos estando centralizado em uma escola, todo o processo em
que se dá a aprendizagem prescinde (ou minimiza) a presença
física do aluno e a disponibilidade de um professor.
No entanto, as teses de
Illich não deixam de ser uma visão muito interessante
sobre os males que o mundo liberal-capitalista exerce sobre os
métodos de transmissão do conhecimento aos alunos,
principalmente quando pensamos na educação como
ferramenta da alienação. E, em um país que
assiste fenômenos como a evasão e o fracasso escolar em
quantidades industriais, pode ser importante pensar em caminhos
alternativos, ainda que não os adotemos, ao menos para fazer
com que nossa massa encefálica receba algum tipo de massagem
estimulante.
Conclusão: se
Illich corre atrás de sombra de avião, o faz com uma
lógica pertinente, que não pode deixar de ser vista
como um protesto contra uma educação meramente
instrumental e subordinada a uma ideologia que não é
humanizadora.
Illich propõe a
desescolarização em termos muito inteligentes, muito
embora tenha uma aparência utópica demais. É
interessante de ler mesmo que não se creia em suas propostas,
porque se trata de uma análise ampla de como a sociedade
exerce sua influência na constituição de seus
mecanismos educacionais.
ILLICH, Ivan. Sociedade
sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985.
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