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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Sobre as idéias para uma sociedade que prescinde das escolas

"Nem a aprendizagem individual e nem a igualdade social podem ser incrementadas pelo rito escolar. Não podemos superar a sociedade de consumo sem antes compreender que a escola pública obrigatória recria tal sociedade" – Ivan Illich

Olá!

Tenho me dedicado bastante à questão da educação neste espaço, em especial nos últimos tempos, quando me detive nas questões que levaram à despolitização da juventude, às propostas de uma nova escola e aos mecanismos que permitiriam o aproveitamento da massa de estudantes que remanesceriam da antiga base. Acontece que um sem-número de propostas já foram colocadas pelos mais diferentes pensadores da educação, cada uma com seus elementos de interesse e com suas questões menos bem resolvidas, o que torna difícil fazer uma miscelânea eficiente para resultar em um sistema verdadeiramente adequado. Mas hoje gostaria de fechar meu foco em uma sistemática um tanto inusitada, descrita pelo “maluco” Ivan Illich, um austríaco de origem croata que propôs a extinção da escola.



A pergunta que norteia o pensamento de Illich é a seguinte: para que e a quem serve a escola tal como a conhecemos? Por que necessitamos de escolas? Por que esse modelo é inquestionável? Para ele, a escola é uma instituição que reforça a ascendência das camadas situadas no topo da pirâmide social sobre as demais. Funcionaria como um cabresto social, limitando o alcance da visão daqueles membros que não estão incursos em sua elite. Desta forma, a escola se constitui em uma barreira de proteção às camadas mais abastadas da população, que decretaria o que é útil de ser ensinado para a população em geral. Para tanto, a educação formal desqualifica os conhecimentos adquiridos de maneira autodidática. Illich, no entanto, reputa o valor do conhecimento como intrínseco, ou seja, vale por si mesmo, e não pode depender de uma certidão para validá-lo. A certidão se presta unicamente para constatar a conformidade da educação recebida com os ditames dos detentores do poder.

Neste exercício de dominação, a escola é ferramenta para desnaturar o ser humano e anestesiar sua característica de questionador. De fato, a escola é um estabelecimento com poucos vínculos ao mundo que rodeia a criança. O conhecimento transmitido não passaria de manual de instrução. Essa segregação do educando com seu ambiente é perversa, porque tende a reduzir a importância deste último. Esse descolamento é especialmente prejudicial se considerarmos as dificuldades que há em reconhecer os vínculos simbólicos que existem entre o objeto representado e o conhecimento exposto, causando um brochante desinteresse. Um exemplo muito simples parte de Paulo Freire, que criou um método de alfabetização de adultos extremamente rápido e eficaz. Esse método leva em conta a realidade vivenciada pelos alunos, e procura basear o aprendizado em não deslocar o aluno desta realidade. Para tanto, era considerado, em primeiro lugar, o universo de vocábulos da comunidade em questão, o que facilitava sobejamente a absorção dos códigos lingüísticos. Com isso, a situação existencial do grupo era a baliza para a escolha do que deveria ser transmitido, e não a utilização de algum livro ou cartilha que fixasse normas estranhas ao conjunto empírico dos alunos, dificultando a assimilação. Além disso, o educador se deslocava para a comunidade, e não o contrário. Em resumo, parte-se do mundo em que se vive para a elaboração do código lingüístico, e esse volta em forma de conhecimento ao mundo, para questioná-lo e transformá-lo.

Mas se não existir a escola, o que teremos? O pulo do gato de Illich seria a formação de redes de conhecimento que teriam o objetivo de substituir o modelo escolar por um paradigma de solidariedade. O conhecimento seria objeto de compartilhamento movido por interesses baseados em cada um dos grupos que deles sentissem necessidade ou aptidão. Lembram quando emiti este post? O nome disso é anarquia (ou quase isso), não no sentido corriqueiro de bagunça, mas de ausência de centralização. Illich não falou expressamente em uma anarquia educacional, mas é possível subentender algumas características comuns. A escola como prédio não é necessária, porque os saberes estão no mundo e nas pessoas que o habitam. Como preconizou outro pensador-chave do século XX, Michel Foucault (leiam algo sobre ele neste post) há portas que servem para impedir a saída, como as dos presídios e manicômios, e outras que servem para impedir a entrada, como as dos teatros, cinemas e – cinquina – das escolas. Trocando em miúdos: há sistemas em que a sociedade não quer que tenhamos fuga, porque somos indesejados; e há outros que a mesma sociedade não nos quer dar acesso – ao saber, ao conhecimento. Illich pensa não em derrubar estas portas, mas extingui-las – uma solução mais radical, portanto.

Em suas premissas, Illich indica que a base para o funcionamento de seu sistema está na solidariedade: não se deve pensar unicamente no desejo de aprender, mas também no desejo de ensinar. Para ele, em algum momento da vida, todos os interessados devem ter ao seu dispor o acesso aos meios de aprendizagem disponíveis; mas também devem ter a disponibilidade de oferecer seus conhecimentos a quem possuir interesse em suas áreas de predileção e especialização.

A educação se daria em termos de redes, que Illich denominou “teias de aprendizagem”, que pressupõe democracia da informação, no sentido de que esta estaria disponível no momento em que houvesse requisição por um interessado. Também pressupõe a interconectividade e a possibilidade de permuta dos conhecimentos, numa relação dialética, utilizando todos os meios de propagação disponíveis. Percebam que a obra-prima de Illich foi lançada em 1971, quando a internet não estava ainda nem no sonho dos meios educativos (nossa concepção de futuro estava mais para os Jetsons, com sua revolução nos transportes, do que em uma revolução da disponibilização dos saberes) e já nesse momento ele aventa a possibilidade de utilização da mídia, como a televisão e o rádio, para a disponibilidade do saber. Hoje, sem dúvida, estas idéias estariam muito mais palpáveis. Vejamos:

A educação deveria levar em conta as seguintes teias para ser levada a cabo:

1º - Acesso aos objetos educacionais: diversos ambientes são, por si só, educacionais, como museus, laboratórios e bibliotecas. Outros deles são oficinas de trabalho, mas que também podem fornecer conhecimento, seja ele técnico, artístico, religioso. São as fábricas, os portos, as lojas, as agências de viagem, os consultórios médicos, as fazendas, as igrejas, os ateliês. Todos os processos realizados nesses estabelecimentos podem ser utilizados na educação formal, como já acontecia com os antigos aprendizes;

2º - Compartilhamento de habilidades: trata-se do escambo de saberes. Disponibiliza-se uma determinada habilidade em troca da obtenção de informações sobre outra área de conhecimento afim. Desta forma, com a conciliação desses saberes, temos uma expansão da sua disponibilidade, já que o conhecimento detido por um indivíduo agora passa a ser compartilhado por dois, e assim sucessivamente;

3º - Encontros entre colegas: trata-se de uma modalidade que permite aos interessados em uma determinada especialização se reúnam para delinear objetivos e pesquisas a serem realizadas. Esta reunião teria o escopo de estabelecer uma divisão de tarefas que seriam, por fim, agrupadas e discutidas em comum. Seus resultados finais deveriam ser objeto do mesmo compartilhamento mencionado no item anterior;

4º - Consulta a educadores: os especialistas em determinadas áreas estariam disponíveis para consulta em questões que se tornassem mais complexas, em uma espécie de consultoria. O importante é notar que o especialista em uma determinada área é aprendiz em outra. O processo de aprendizagem, desta forma, tornar-se-ia incessante.

Todas estas redes, ao fim e a cabo, também se entrelaçariam entre si. Como a informação não teria dono, o grande interesse em movê-las seria a aquisição de mais e mais conhecimentos, sem propósitos econômicos. Com isso, não existiria a intermediação deturpante da escola, enviesada pelos rumos que a sociedade como conhecemos dá a ela. O simples fato de existir uma rede de alcance mundial, como é a internet, já nos faz pensar nestas possibilidades de uma maneira um pouco mais tangível.

Tenho muita dificuldade em concordar com as teses de Illich. Os porquês:

- Em primeiro lugar, porque a sociedade está de tal forma institucionalizada que fica muito difícil supor a possibilidade de uma transmissão de conhecimentos que funcionaria de maneira tão difusa. É preciso pensar, portanto, que todo o organismo social funciona a partir de “compartimentos”, como os partidos políticos, os sindicatos, as empresas, os órgãos de defesa do consumidor, as ONG’s e assim por diante. Isso porque há uma tendência em segmentar interesses e reunir funções e aptidões ao redor de núcleos, que estariam ausentes em uma sociedade desescolarizada.

- Também é preciso supor uma rede de solidariedade tão bem aceita que provavelmente seria impossível praticar a livre iniciativa. Mesmo que eu ache isso lindíssimo, parece-me algo absolutamente infactível no modelo social que temos hoje, baseado no mérito.

- Outra coisa: a escola não precisa, necessariamente, ser aprisionadora para existir. É certo que é muito difícil remover o véu ideológico porque os professores e diretores são humanos e não são neutros, mas de toda forma é possível supor, a partir de várias experiências, que os alunos possam ter uma tal participação na guia de suas vivências acadêmicas que a simples extinção da escola não seria necessária para solucionar a questão da utilização dos conhecimentos em suas vidas práticas.

- Mais uma questão diz respeito a um fenômeno recente, que é a aplicação da educação a distância (EAD), que, mesmo involuntariamente, acaba por utilizar algumas teses de Illich, como a utilização de redes de informação e autonomia de horários e pesquisas. Ou seja, mesmo com a elaboração das disciplinas e da avaliação dos educandos estando centralizado em uma escola, todo o processo em que se dá a aprendizagem prescinde (ou minimiza) a presença física do aluno e a disponibilidade de um professor.

No entanto, as teses de Illich não deixam de ser uma visão muito interessante sobre os males que o mundo liberal-capitalista exerce sobre os métodos de transmissão do conhecimento aos alunos, principalmente quando pensamos na educação como ferramenta da alienação. E, em um país que assiste fenômenos como a evasão e o fracasso escolar em quantidades industriais, pode ser importante pensar em caminhos alternativos, ainda que não os adotemos, ao menos para fazer com que nossa massa encefálica receba algum tipo de massagem estimulante.

Conclusão: se Illich corre atrás de sombra de avião, o faz com uma lógica pertinente, que não pode deixar de ser vista como um protesto contra uma educação meramente instrumental e subordinada a uma ideologia que não é humanizadora.


Recomendação de leitura:

Illich propõe a desescolarização em termos muito inteligentes, muito embora tenha uma aparência utópica demais. É interessante de ler mesmo que não se creia em suas propostas, porque se trata de uma análise ampla de como a sociedade exerce sua influência na constituição de seus mecanismos educacionais.

ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985.

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