“Não conheço
vingança perfeita.
Não se vingar talvez seja a melhor
vingança.
Fazer esperar uma resposta que nunca virá.”
Fabrício
Carpinejar
Olá!
Fato curioso ocorrido
na última sexta à noite. Estava eu com meu amor e meus amigos
(Alex, Jano e Luizão) tomando um suco de cereais fermentados
na padaria Santa Tereza, dissertando sobre aventuras e desventuras em
animada tertúlia, quando de repente tudo parou. Sobre nossas
cabeças, uma televisão LCD de mais de 40 polegadas
anunciava o início do último capítulo da novela
“Avenida Brasil”.
Agitação
em alto grau seguida de silêncio sepulcral, entrecortado por
alguns comentários e psius. Solitários reunidos em
multidão... Sim, admito. Acompanhei a novela, pelo menos do
meio para o fim.
Ora, direis: justo o
senhor, crítico mordaz dos folhetins televisivos, corrosivo
opositor dos meios de comunicação como ferramenta da
alienação, prescindiu de tão sólidos
princípios e da egrégia atenção de seus
raros confrades para apreciar um produto por ti tão
vilipendiado? Como explica tal paradoxo, tal ambigüidade, tal
bivalência, tal antagonismo, tal disparate, tal contra-senso,
tal incoerência? Será desequilíbrio ou mero
cinismo?
É verdade. De
fato, já falei mal das novelas, como pode ser observado neste texto. Acontece que esta, na minha opinião, foi boa. Suas
qualidades superaram os defeitos típicos de um programa deste
tipo.
Ela entra no raro
panteão das obras de arte, como já havia acontecido com
“O bem amado”, que fixou o bom humor como instrumento da crítica
política em plena ditadura, e com “Saramandaia”,
experiência única no campo do realismo fantástico,
aproximando-a da literatura. Seu pulo do gato foi estabelecer a
discussão sobre temas caros à Filosofia, como a questão
da vingança.
Claro que a novela patinou em muitos momentos, porque precisava se estender por um período relativamente longo (por isso prefiro as minisséries, muito mais concisas). Claro que algumas pontas ficaram soltas, claro que alguns dei ex machina precisaram ser acionados, claro que algum excesso de publicidade foi utilizado e claro que muita incredulidade foi gerada (lembremos que se trata de uma obra de ficção), mas, como um todo, as rotinas foram executadas com competência, porque despertou um interessante questionamento sobre a pertinência e o alcance de uma vingança que levou anos para ser levada a cabo, um tema muito incômodo.
A grande questão aqui levantada é a seguinte: a vingança realmente vale a pena? Vingança é sinônimo de justiça?
O cerne da trama estava nas atitudes da personagem Nina, que se imiscuiu no seio da família de um jogador de futebol famoso e agora aposentado, casado com Carminha, que causou muito mal à tal Nina em sua infância. Bom, não preciso me deter em contar esta história, que se tornou muito popular. Em uma longa cadeia de armações, seu desejo de vingança foi sendo construído e executado, até chegar ao êxito, ainda que por vias muito mais tortas do que as desejadas de início.
Muitos pensadores já
trataram desta aporia. Ela nasce de uma necessidade psicológica
de reparação em um movimento pendular, ou de causa e
efeito, ou de ação e reação. Quem se
vinga, quer no mínimo infligir o mal recebido na mesma medida
em quem o causou. Pode-se até mesmo extrapolar, procurando
executar um mal muito maior, desproporcional, porque a psique humana
tem a capacidade de se pouco satisfazer muito facilmente.
Mas a justiça
estabelecida pela sociedade pode ser equiparada à vingança?
Colocar um homem na cadeia não corresponde a uma vingança
de toda a sociedade contra quem subverteu suas regras?
A um primeiro olhar, pode parecer que sim e concordo que boa parte das penas estabelecidas em um código penal tem em seu substrato uma boa parcela de sentimento de vingança, mas há alguns pontos em que, a meu ver, há diferenças:
- A lei é preestabelecida, ou seja, há conhecimento prévio de que uma reação será adotada e qual o seu tamanho. Em uma vingança pessoal, nunca é possível estabelecer qual a medida que a reação terá e mesmo se ela existirá;
- Uma reparação não é necessariamente uma vingança. Digamos que eu quebre o vidro de uma janela com uma bolada. Se o dono da janela quiser que eu lhe conserte a janela, não necessariamente quererá me punir, porque não temos aí um sentimento essencial na vingança, que é o ódio. Se não houver a reparação, aí sim brotará o desejo de vingança;
- A justiça institucionalizada proporciona aos mais fracos meios de reparação que uma vingança pessoal não conseguiria atingir. É o caso, por exemplo, das mulheres que são agredidas por seus maridos. Fisicamente, sempre haverá uma desvantagem, e se a vingança for baseada em uso de armamentos, a reação será despropositadamente maior que a ação;
- A justiça procura estabelecer penas que previnam o mal, desencorajando sua execução de modo coercitivo. Já a vingança pressupõe a existência de um mal já realizado;
- A vingança é muito mais subjetiva. Não é rigorosamente necessário que o mal objetivamente tenha ocorrido, mas apenas que um indivíduo tenha se sentido lesado de alguma forma. É como a destruição do bem público que mencionei neste texto;
- A vingança nem sempre utiliza o mesmo metro da ofensa recebida. Por vezes, além de se desejar que o ofensor sinta a mesma dor do ofendido, também se quer que aquele sofra ainda mais, como meio de punição.
Tenho um ótimo
exemplo. Já fiz remissões aqui a um desenho animado do
cineasta francês Michel Ocelot, chamado “Kirikou e a
feiticeira” (neste post). É preciso voltar a citá-lo,
porque proporciona uma visão alternativa à necessidade
de justiça e, por extensão, de vingança. Atenção: vou
fazer spoiler.
A aldeia onde Kirikou
nasceu vive em miséria por conta das ações
maldosas da feiticeira Karabá. Por suas obras e artes, a
aldeia enfrenta uma seca que destrói suas plantações,
e seus homens são seqüestrados e supostamente mortos,
trazendo um sentimento de desesperança aos seus habitantes.
Em confronto com outro
desenho ambientado na África, como “O Rei Leão”,
percebemos que as soluções são diferentes, como
já veremos. Na obra estadunidense, o mal é representado
pelo leão Scar, que tem sede de poder e quer tomá-lo
através da ação violenta. Aqui, o mal é
extirpado; sua solução vem pela sua eliminação.
Scar morre atacado pelas suas próprias seguidoras, as hienas.
A maioria dos desenhos da Disney é assim, é uma visão
maniqueísta em que somente existe o bem e o mal, e que ambos
possuem as mesmíssimas ferramentas para a solução
do conflito. Já em Kirikou, esta solução é
tomada em outras bases. A primeira atitude do menino é
filosófica: pergunta-se o que leva a feiticeira a ser má.
E parte na investigação destas causas. Depois de uma
longa caminhada para chegar ao templo de Karabá, onde foi
buscar a história vivida por sua comunidade e os
aconselhamentos de sua mãe e do velho sábio, Kirikou
descobre que a feiticeira, em sua juventude, foi agredida e
violentada, e para radicalização da maldade, um espinho
foi encravado em suas costas, fazendo-a sentir dor incessantemente.
Sem dúvida, temos aqui uma metáfora do sentimento de
culpa carregado por Karabá desde então, ou a marca de
um trauma a acompanhá-la por toda a vida. E então temos
a explicação para a pesquisa de Kirikou: a feiticeira é
má porque ela sofre.
O que isso explica? Que
a feiticeira não tem a maldade em sua essência humana.
Ela é tão vítima quanto os homens que robotiza.
Isso não significa que ela não seja punida pelo mal que
causou. Pelo contrário, seu isolamento, o medo que causa na
aldeia, o ódio que existe contra ela, tudo isso é causa
de uma punição que ela não sabe reconhecer. Ela
imputa a todos as causas de suas dores e de seu envenenamento, e usa
isso como arma. O medo que ela causa imobiliza as pessoas. No fim das
contas, os aldeões não percebem que toda a maldade que
caracteriza a feiticeira também está presente neles, é
preciso que a maldade exista em seus interiores para que eles
reconheçam a ação má. O mal causado pela
feiticeira é maior para si mesma do que para todos os outros
membros da tribo, porque ele se auto-alimenta e, em seu isolamento,
não encontra quem possa ajudá-la, o que acaba por
tornar sua vida um autêntico castigo.
Quando Kirikou consegue
extrair o espinho das costas da feiticeira, quebra-se o encanto que a
escravizava, e temos uma cena lindíssima: ao ser beijado por
Karabá, em reconhecimento à sua libertação,
imediatamente vemos o menino se transformar em homem. O efeito
imediato da luta pelo bem é o crescimento do indivíduo
como ser humano. Karabá ainda sentirá o peso de seus
atos ao chegar à aldeia e enfrentar a desconfiança de
suas pessoas em sua regeneração, mas ela agora tem
outra visão do mundo, iniciando pelo reconhecimento de suas
próprias culpas e das conseqüências de suas más
ações.
Pois então.
Quando pensamos na vingança, não estaremos esquecendo o
fator humano? Que nem toda a maldade é produzida de forma
espontânea e calculada? E, além disso, que a maldade
pode ser considerada por alguns como algo natural, fruto do descaso
com que são tratados? A sociedade precisa pensar até
que ponto ela não produz seus próprios assassinos, seus
próprios corruptos, o quanto ela mesma não aceita
inquestionavelmente suas próprias mazelas. Basta que estudemos
nosso sistema prisional para entender que nada de bom pode sair de
uma cadeia.
Muitos argumentos podem
ser usados a favor da adoção da pena de morte, e, mesmo
que assumidamente seja por vingança, alguns deles são
verdadeiramente bons. Mas, na essência, sou contra a pena de
morte por um motivo bem mais simples: nosso judiciário não
tem condições morais para lidar com a punição
extrema. Por volta do século XI, surgiu uma heresia na Igreja
Católica cujos seguidores eram chamados de cátaros.
Essa seita apregoava que apenas os mais puros seriam portadores da
verdadeira mensagem de Deus, e apenas a eles seriam reservado o
lícito direito de administrar sacramentos. Ora, quem tem
condições de estabelecer quem é detentor de uma
pureza equiparada a de seu próprio Deus? Por isso, a própria
heresia se mutilou, por impossibilidade de definir um estatuto
essencial a si mesma (além, é claro, das espadas fieis
à Igreja).
Vale o mesmo para o
juiz. Pode um juiz corrupto distribuir justiça em casos de
corrupção? Seria necessária uma neutralidade que
sabemos não existir, e para funcionar a contento, as
instituições do porte do judiciário necessitam
de confiabilidade, o que não é o caso brasileiro, dadas
as denúncias de desvios de verbas e condutas que têm se
tornado tão abundantes em nossos noticiários. Por isso,
prefiro ainda ter a garantia legal do direito à vida do que
viver sob uma espada que ameaça cair constantemente sobre
nossas cabeças.
Recomendações:
Já havia citado
o desenho Kirikou aqui por estes lados, mas o faço novamente
porque vale de fato a pena:
OCELOT, Michel. Kirikou e a feiticeira. Animação. França, 1998. 71 min.
Sobre a pena de morte,
há livretinho bastante interessante que descreve uma série
de processos de morte por enforcamento no Brasil. Perceba que a
imensa maioria (quase a totalidade) dos casos se refere a escravos
que reagiram contra seus senhores. É bastante difícil
de encontrar.
BARROSO, Gustavo. O
livro dos enforcados. Rio de Janeiro: Getúlio M. Costa,
1939.
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