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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Sobre o cuidado necessário para estabelecer diferenças entre vingança e justiça

“Não conheço vingança perfeita.
Não se vingar talvez seja a melhor vingança.
Fazer esperar uma resposta que nunca virá.”
Fabrício Carpinejar

Olá!

Fato curioso ocorrido na última sexta à noite. Estava eu com meu amor e meus amigos (Alex, Jano e Luizão) tomando um suco de cereais fermentados na padaria Santa Tereza, dissertando sobre aventuras e desventuras em animada tertúlia, quando de repente tudo parou. Sobre nossas cabeças, uma televisão LCD de mais de 40 polegadas anunciava o início do último capítulo da novela “Avenida Brasil”.

Agitação em alto grau seguida de silêncio sepulcral, entrecortado por alguns comentários e psius. Solitários reunidos em multidão... Sim, admito. Acompanhei a novela, pelo menos do meio para o fim.

Ora, direis: justo o senhor, crítico mordaz dos folhetins televisivos, corrosivo opositor dos meios de comunicação como ferramenta da alienação, prescindiu de tão sólidos princípios e da egrégia atenção de seus raros confrades para apreciar um produto por ti tão vilipendiado? Como explica tal paradoxo, tal ambigüidade, tal bivalência, tal antagonismo, tal disparate, tal contra-senso, tal incoerência? Será desequilíbrio ou mero cinismo?

É verdade. De fato, já falei mal das novelas, como pode ser observado neste texto. Acontece que esta, na minha opinião, foi boa. Suas qualidades superaram os defeitos típicos de um programa deste tipo.

Ela entra no raro panteão das obras de arte, como já havia acontecido com “O bem amado”, que fixou o bom humor como instrumento da crítica política em plena ditadura, e com “Saramandaia”, experiência única no campo do realismo fantástico, aproximando-a da literatura. Seu pulo do gato foi estabelecer a discussão sobre temas caros à Filosofia, como a questão da vingança.

Claro que a novela patinou em muitos momentos, porque precisava se estender por um período relativamente longo (por isso prefiro as minisséries, muito mais concisas). Claro que algumas pontas ficaram soltas, claro que alguns dei ex machina precisaram ser acionados, claro que algum excesso de publicidade foi utilizado e claro que muita incredulidade foi gerada (lembremos que se trata de uma obra de ficção), mas, como um todo, as rotinas foram executadas com competência, porque despertou um interessante questionamento sobre a pertinência e o alcance de uma vingança que levou anos para ser levada a cabo, um tema muito incômodo.

A grande questão aqui levantada é a seguinte: a vingança realmente vale a pena? Vingança é sinônimo de justiça?


O cerne da trama estava nas atitudes da personagem Nina, que se imiscuiu no seio da família de um jogador de futebol famoso e agora aposentado, casado com Carminha, que causou muito mal à tal Nina em sua infância. Bom, não preciso me deter em contar esta história, que se tornou muito popular. Em uma longa cadeia de armações, seu desejo de vingança foi sendo construído e executado, até chegar ao êxito, ainda que por vias muito mais tortas do que as desejadas de início.

Muitos pensadores já trataram desta aporia. Ela nasce de uma necessidade psicológica de reparação em um movimento pendular, ou de causa e efeito, ou de ação e reação. Quem se vinga, quer no mínimo infligir o mal recebido na mesma medida em quem o causou. Pode-se até mesmo extrapolar, procurando executar um mal muito maior, desproporcional, porque a psique humana tem a capacidade de se pouco satisfazer muito facilmente.

Mas a justiça estabelecida pela sociedade pode ser equiparada à vingança? Colocar um homem na cadeia não corresponde a uma vingança de toda a sociedade contra quem subverteu suas regras?

A um primeiro olhar, pode parecer que sim e concordo que boa parte das penas estabelecidas em um código penal tem em seu substrato uma boa parcela de sentimento de vingança, mas há alguns pontos em que, a meu ver, há diferenças:

  1. A lei é preestabelecida, ou seja, há conhecimento prévio de que uma reação será adotada e qual o seu tamanho. Em uma vingança pessoal, nunca é possível estabelecer qual a medida que a reação terá e mesmo se ela existirá;
  2. Uma reparação não é necessariamente uma vingança. Digamos que eu quebre o vidro de uma janela com uma bolada. Se o dono da janela quiser que eu lhe conserte a janela, não necessariamente quererá me punir, porque não temos aí um sentimento essencial na vingança, que é o ódio. Se não houver a reparação, aí sim brotará o desejo de vingança;
  3. A justiça institucionalizada proporciona aos mais fracos meios de reparação que uma vingança pessoal não conseguiria atingir. É o caso, por exemplo, das mulheres que são agredidas por seus maridos. Fisicamente, sempre haverá uma desvantagem, e se a vingança for baseada em uso de armamentos, a reação será despropositadamente maior que a ação;
  4. A justiça procura estabelecer penas que previnam o mal, desencorajando sua execução de modo coercitivo. Já a vingança pressupõe a existência de um mal já realizado;
  5. A vingança é muito mais subjetiva. Não é rigorosamente necessário que o mal objetivamente tenha ocorrido, mas apenas que um indivíduo tenha se sentido lesado de alguma forma. É como a destruição do bem público que mencionei neste texto;
  6. A vingança nem sempre utiliza o mesmo metro da ofensa recebida. Por vezes, além de se desejar que o ofensor sinta a mesma dor do ofendido, também se quer que aquele sofra ainda mais, como meio de punição.
Falar em vingança como meio de justiça remete, invariavelmente, à questão da pena de morte. E aqui temos uma exponenciação do problema. Lembremos que a personagem Nina, ao final, pede perdão à Carminha pela vingança levada a cabo, o que pressupõe arrependimento. Isso só aconteceu quando os motivos que levaram a vilã a se tornar tal como era foram clareados. Se há arrependimento, e se este é sincero, é-nos lícito imaginar que há um sofrimento adicional para Nina, que carregará consigo o peso de haver infligido uma dor maior à sua oponente (amenizado pelo perdão concedido e pelo reconhecimento dos erros por parte de Carminha). Como a pena de morte é cabal e irreversível, um posterior arrependimento não tem como ser amenizado. Antes de punir é preciso compreender as distorções de caráter de quem é titular da vileza.

Tenho um ótimo exemplo. Já fiz remissões aqui a um desenho animado do cineasta francês Michel Ocelot, chamado “Kirikou e a feiticeira” (neste post). É preciso voltar a citá-lo, porque proporciona uma visão alternativa à necessidade de justiça e, por extensão, de vingança. Atenção: vou fazer spoiler.

A aldeia onde Kirikou nasceu vive em miséria por conta das ações maldosas da feiticeira Karabá. Por suas obras e artes, a aldeia enfrenta uma seca que destrói suas plantações, e seus homens são seqüestrados e supostamente mortos, trazendo um sentimento de desesperança aos seus habitantes.

Em confronto com outro desenho ambientado na África, como “O Rei Leão”, percebemos que as soluções são diferentes, como já veremos. Na obra estadunidense, o mal é representado pelo leão Scar, que tem sede de poder e quer tomá-lo através da ação violenta. Aqui, o mal é extirpado; sua solução vem pela sua eliminação. Scar morre atacado pelas suas próprias seguidoras, as hienas. A maioria dos desenhos da Disney é assim, é uma visão maniqueísta em que somente existe o bem e o mal, e que ambos possuem as mesmíssimas ferramentas para a solução do conflito. Já em Kirikou, esta solução é tomada em outras bases. A primeira atitude do menino é filosófica: pergunta-se o que leva a feiticeira a ser má. E parte na investigação destas causas. Depois de uma longa caminhada para chegar ao templo de Karabá, onde foi buscar a história vivida por sua comunidade e os aconselhamentos de sua mãe e do velho sábio, Kirikou descobre que a feiticeira, em sua juventude, foi agredida e violentada, e para radicalização da maldade, um espinho foi encravado em suas costas, fazendo-a sentir dor incessantemente. Sem dúvida, temos aqui uma metáfora do sentimento de culpa carregado por Karabá desde então, ou a marca de um trauma a acompanhá-la por toda a vida. E então temos a explicação para a pesquisa de Kirikou: a feiticeira é má porque ela sofre.

O que isso explica? Que a feiticeira não tem a maldade em sua essência humana. Ela é tão vítima quanto os homens que robotiza. Isso não significa que ela não seja punida pelo mal que causou. Pelo contrário, seu isolamento, o medo que causa na aldeia, o ódio que existe contra ela, tudo isso é causa de uma punição que ela não sabe reconhecer. Ela imputa a todos as causas de suas dores e de seu envenenamento, e usa isso como arma. O medo que ela causa imobiliza as pessoas. No fim das contas, os aldeões não percebem que toda a maldade que caracteriza a feiticeira também está presente neles, é preciso que a maldade exista em seus interiores para que eles reconheçam a ação má. O mal causado pela feiticeira é maior para si mesma do que para todos os outros membros da tribo, porque ele se auto-alimenta e, em seu isolamento, não encontra quem possa ajudá-la, o que acaba por tornar sua vida um autêntico castigo.

Quando Kirikou consegue extrair o espinho das costas da feiticeira, quebra-se o encanto que a escravizava, e temos uma cena lindíssima: ao ser beijado por Karabá, em reconhecimento à sua libertação, imediatamente vemos o menino se transformar em homem. O efeito imediato da luta pelo bem é o crescimento do indivíduo como ser humano. Karabá ainda sentirá o peso de seus atos ao chegar à aldeia e enfrentar a desconfiança de suas pessoas em sua regeneração, mas ela agora tem outra visão do mundo, iniciando pelo reconhecimento de suas próprias culpas e das conseqüências de suas más ações.

Pois então. Quando pensamos na vingança, não estaremos esquecendo o fator humano? Que nem toda a maldade é produzida de forma espontânea e calculada? E, além disso, que a maldade pode ser considerada por alguns como algo natural, fruto do descaso com que são tratados? A sociedade precisa pensar até que ponto ela não produz seus próprios assassinos, seus próprios corruptos, o quanto ela mesma não aceita inquestionavelmente suas próprias mazelas. Basta que estudemos nosso sistema prisional para entender que nada de bom pode sair de uma cadeia.

Muitos argumentos podem ser usados a favor da adoção da pena de morte, e, mesmo que assumidamente seja por vingança, alguns deles são verdadeiramente bons. Mas, na essência, sou contra a pena de morte por um motivo bem mais simples: nosso judiciário não tem condições morais para lidar com a punição extrema. Por volta do século XI, surgiu uma heresia na Igreja Católica cujos seguidores eram chamados de cátaros. Essa seita apregoava que apenas os mais puros seriam portadores da verdadeira mensagem de Deus, e apenas a eles seriam reservado o lícito direito de administrar sacramentos. Ora, quem tem condições de estabelecer quem é detentor de uma pureza equiparada a de seu próprio Deus? Por isso, a própria heresia se mutilou, por impossibilidade de definir um estatuto essencial a si mesma (além, é claro, das espadas fieis à Igreja).

Vale o mesmo para o juiz. Pode um juiz corrupto distribuir justiça em casos de corrupção? Seria necessária uma neutralidade que sabemos não existir, e para funcionar a contento, as instituições do porte do judiciário necessitam de confiabilidade, o que não é o caso brasileiro, dadas as denúncias de desvios de verbas e condutas que têm se tornado tão abundantes em nossos noticiários. Por isso, prefiro ainda ter a garantia legal do direito à vida do que viver sob uma espada que ameaça cair constantemente sobre nossas cabeças.


Recomendações:

Já havia citado o desenho Kirikou aqui por estes lados, mas o faço novamente porque vale de fato a pena:

OCELOT, Michel. Kirikou e a feiticeira. Animação. França, 1998. 71 min.

Sobre a pena de morte, há livretinho bastante interessante que descreve uma série de processos de morte por enforcamento no Brasil. Perceba que a imensa maioria (quase a totalidade) dos casos se refere a escravos que reagiram contra seus senhores. É bastante difícil de encontrar.

BARROSO, Gustavo. O livro dos enforcados. Rio de Janeiro: Getúlio M. Costa, 1939.

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