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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sobre o alcance das concepções da verdade (e a pornografia como sua expressão)

Olá!

Há algum tempo atrás, levantei um pequeno debate sobre a validade da ciência como detentora da verdade (neste post). Como se trata de um tema em que não conseguimos encontrar pontos pacíficos, um leitor de alcunha Wako (não tenho certeza de quem seja, mas desconfio - certo, Bola?) redigiu o seguinte comentário, que passo a transliterar:

“Humm ... Ciência detentora da verdade ? Não conheço, mas vou conhecer o tal Popper. Minha dúvida é se isso não seria um reforço no seguinte dilema : Se a ciência não é detentora da verdade, então quem seria o detentor ? Afinal de contas o conforto da existência da verdade é a base que da existência. A verdade não se discute, ela se aprimora...então qual é a verdade senão a ciência essa mutante eterna sempre em busca de si mesmo.”

Colocações interessantes. É necessário, como compete a um bom filósofo (não que eu o seja, mas tento) ampliar o objeto da discussão.

Em primeiro lugar, é preciso delinear sob qual escopo formamos nossa concepção de verdade. Em nosso mundo ocidental, ela parte de três linhas de pensamento principais:

Aletheia – a verdade como correspondência
Do pensamento grego, nasceu a vertente chamada aletheia, que se preocupa com a correspondência entre o que é observado e sua respectiva descrição. A verdade como aletheia é largamente utilizada na Ciência, porque se baseia no real palpável. Ela é a mais conforme com essa visão científica porque está contida nas próprias coisas, está depositada no objeto, que possui características que podem ser descritas objetivamente, ainda que não o façamos. A verdade é presente: está no aqui e agora. Desta forma, constituímos a idéia de edifício, por exemplo, a partir da observação que fazemos dele.

Veritas – a verdade como coerência
A veritas tem ascendência latina. Aqui, a precisão não está na apresentação de um objeto ao seu observador, como acontece na aletheia; seu foco é voltado para a descrição coerente dos acontecimentos. Por essas características, a veritas é mais aplicável à história, porque se volta aos fatos já ocorridos e sua correta descrição. Há um compromisso entre linguagem e fato. Esta relação se dá de maneira satisfatória quando não há uma distorção que torna o relato mentiroso.

Emunah – a verdade como consenso
Uma terceira vertente é chamada de emunah, e tem origem judaica. Sua origem tem forte conotação religiosa, porque se baseia na confiança na realização dos fatos. Há aqui uma perspectiva futura, portanto. Nesta modalidade, a verdade encontra-se na expectativa de realização de algo que é tido como consenso. Verdadeira, nesse sentido, é a promessa que se cumpre, de acordo com o que foi preconizado por aquele que a proferiu.

Todas essas correntes se entrelaçam para formar nosso modo ocidental de encarar a verdade. Ocorre que, por vezes, elas conflitam entre si, turvando a perspectiva que temos daquilo que tentamos considerar como verdadeiro. Vejam a questão das ilusões de ótica: o que temos diante de nós é uma visão concreta de algo que nos induz ao erro. O mesmo podemos dizer dos relatos históricos, constantemente revistos após a descobertas de evidências contraditórias. Também os consensos mudam de acordo com o desenvolvimento das ciências e o desenrolar da história.

Um exemplo bem bacana vem da religião. No Cristianismo, há um confronto bastante significativo quando Jesus se coloca a frente de Pôncio Pilatos, seu julgador. Em um determinado momento do debate (versículos 37 e parte do 38 do capítulo 18 de São João), temos o seguinte:

“37. Perguntou-lhe então Pilatos: És, portanto, rei? Respondeu Jesus: Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz. 
38. Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?”

Eis aí o confronto entre a emunah judaica e a veritas romana. Para Jesus, a verdade está nas coisas divinas, na promessa de uma vida eterna após a morte, o que se traduzia em uma concepção não palpável, não verificável, que somente pode ser obtida através da confiança na realização futura. Pilatos não reconhece esta modalidade da verdade. Originário de Roma, esta verdade de consenso na realização futura não tem valor algum. O discurso de Jesus é vago e impreciso para ele, justamente as características que dão força à fidedignidade da linguagem na formação da veritas. Não há coerência em um relato que discorre sobre um evento ainda não ocorrido. E com isso temos a pergunta mais filosófica da Bíblia: O que é a verdade?

Pois então. Se as bases que constituem nosso paradigma de verdade não são unívocas, como poderíamos pensar em uma verdade absoluta?

Pensemos, por exemplo, na pornografia. Lá, tudo é falso: os seios fartos, as bundas enormes, os membros caracterizados por um misto de tamanho, dureza e durabilidade, quantidades incomensuráveis de parceiros, penetração em todos os buracos, furos, orifícios e poros possíveis e imagináveis. Quantidade industriais de secreções, jatos mais poderosos que a mais pressurizada válvula de descarga; dois em uma, três em uma, quatro em uma, cinco em uma; duas pra um, três pra um, quatro pra um; uma, duas, três, dez, duzentas sem tirar de dentro. Posições dignas de causar inveja no mais elástico contorcionista e na mais talentosa ginasta olímpica. Tudo é exagero, tudo é superdimensionado. Sexo praticado nestes termos é algo incômodo, conforme explicou uma atriz pornô que foi entrevistada pela Antonio Abujamra, em seu programa Provocações. O que é agradável de fazer no dia-a-dia? Sexo convencional, com um pouco de sacanagem, explicou ela. Então, a que tipo de verdade aplicaremos a pornografia? Ora, à verdade dos desejos.


O desejo não se limita ao real palpável, mas influencia decisivamente os “filtros” que aplicamos em nossas interpretações. Estas estão plenas de símbolos e cifragens.

Não é preciso descer ao fundo das teorias representativas e imagéticas de Freud para deduzir que o desejo se realiza de maneira multiforme. Isso corresponde a dizer que, através de um mecanismo de projeção, o meu desejo pode ser realizado através do outro. Sim, é verdade, o cara na tela tem ao seu dispor um harém completo, enquanto temos apenas o auxílio de nossa inseparável companheira mão, mas o jogo de representações mentais é algo tão complexo que esta forma de realização do desejo pode acabar sendo mais completa do que se todo o seu transcurso fosse cópia fiel do que acontece na tela. Vejam as variáveis: não há cobrança de desempenho, tamanhos não fazem diferença, é possível parar a brincadeira a qualquer momento, e o máximo que teremos é um pouco de complexo de culpa (algo a ser tratado mais profundamente em um outro momento).

Pois bem. O que faz o diretor de filme pornô? Exponencializa essas expectativas ao máximo. Pega as pulsões sexuais mais comuns e as multiplica por cem, derruba os tabus sociais (por vezes o mais reprimido é o mais desejado – lembram que goiaba roubada é mais gostosa?), lida com a libido e com o desejo hiperbólico. Cria, através da ilusão do ato sexual idealizado, uma perspectiva de concretização da vontade, e essa vontade é real, expressiva de uma realidade difícil de ser medida em outros termos que fujam ao simbólico.

O homem é um ser desejante, que vive em constante insatisfação. O mito de Sísifo é bastante representativo desta busca incessante. Nele, encontramos nosso herói às voltas com sua punição pela ousadia de desafiar os deuses, por não aceitar seus desígnios. Esta punição consistia em carregar uma enorme pedra até o alto de um monte, de onde invariavelmente acabava por rolar até sua base novamente, e o trabalho precisava ser reiniciado eternamente. A pedra pode ser interpretada como os desejos que o homem carrega por toda a sua existência. Ao chegar ao topo do monte (a realização do desejo), perde-se toda a energia despendida, porque um novo desejo nascerá, e novamente terá que ser carregado para sua realização, incessantemente, por mais falta de sentido que pareça ter. A expectativa da realização do desejo é permanente, principalmente porque o realizado nunca é espelho fiel do desejado.

Eis que, portanto, a pornografia, com todos os seus aparatos, seus falsos prazeres, carrega em si tanta ou mais verdade que qualquer demonstração científica, porque lida com a falta de lógica contida na relação do real com o simbólico e com a metáfora; carrega em si tanta ou mais verdade que qualquer relato histórico, porque não se obriga a estabelecer coerência entre as loucuras praticadas por duas (ou três, ou quatro, etc.) pessoas; e carrega em si tanta ou mais verdade que qualquer consenso, porque convenções e tabus não significam absolutamente nada dentro do seu domínio, o plano dos desejos.

Para que ninguém diga que sou um putanheiro, declaro que o mesmo fenômeno se repete em qualquer instância que envolva o desejo. E isso se dá porque este cara faz largo uso de símbolos. Seguindo o ensinamento de Fernando Pessoa, por seu heterônimo Álvaro de Campos, percebemos a dicotomia da realidade colocada diante de nós: a coisa como é e a coisa como a percebemos, a articulamos e a retrabalhamos:

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Portanto, meu caro e desconhecido amigo Wako, se quisermos o conforto da verdade, se é essencial que não tenhamos a dúvida como companhia eterna, precisamos crer nela de maneira dogmática, sem dar muita bola para a diferença de significados que há entre o ato concreto e suas respectivas representações simbólicas. Sendo a própria linguagem um conjunto de símbolos, é difícil a ela dar conta de tudo o que é real. Será que é isso o que queremos?


Recomendações de leitura:

Mais um pouco de apoio freudiano para nossas discussões:

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Com relação às concepções da verdade, uma boa dica é o didaticíssimo livro abaixo. Simples e bom de ler.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

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