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quarta-feira, 7 de março de 2012

Sobre a loucura e a impossibilidade de defini-la

Olá!

Há dois domingos atrás, resolvi encarar com minha esposa e minha filha nossa agora difusa Cracolândia e fui ao CCBB assistir uma peça chamada “Isso é o que ela pensa”, de autoria do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn e protagonizada com maestria pela atriz Denise Weinberg, simplesmente brilhante. A obra versa sobre a perda da razão. Apesar de ser apresentada ao grande público como sendo uma comédia, discordo frontalmente. Sim, há momentos de humor, mas estes são amaríssimos (como o riso histriônico de Demócrito). Na verdade, o mote principal é o drama da perda da identidade e a transformação da história de uma pessoa que, flutuando entre realidade e alucinação, e das alucinações introjetadas e realimentadas dentro de si próprias, transita entre a razão e a loucura. Os desejos reprimidos se engalfinham com os registros da experiência vivida, vencem-nos, encontram novas resistências e repressões, e enfiam-se em uma espiral sem começo nem fim, destruindo os sustentáculos psicológicos da personagem.



Resta perguntar o que é a loucura. Se assumirmos que ela é a oposição da razão, e que esta é histórica (segundo Hegel), devemos pressupor que também a loucura o é. De fato, algumas coisas que reputaríamos por insanas no passado, hoje são aceitas, praticadas e incentivadas. Querem exemplos?

Que tal o fisiculturista que toma remédios que “secam suas bolas” para ficar com o corpo todo marombado? Ora, elimina-se a masculinidade real para enfatizar a masculinidade aparente. Isso não é loucura?

Ou pensemos no botox. É uma toxina. Faz os lábios ficarem grandes porque causam uma inflamação, ou seja, um fenômeno patológico. O mesmo se aplica aos seios turbinados – as mulheres de outrora dormiam com os seios desnudos, sujeitas ao frio e ao desconforto se fosse o caso, para que seus filhos pudessem se alimentar à noite. As próteses de silicone impedem esse ato em muitos casos, como já observei neste post. A sociedade visual não é tresloucada? Pois milhões (bilhões?) de pessoas cotejam a anorexia, a bulimia, cirurgias de difícil recuperação, extração de costelas e outras mutilações sortidas, vendidas no varejo e anunciadas em revistas de publicação semanal e grande circulação. A história mudou o conceito da loucura. Hoje, não é mais.

Mas há o oposto também. Cito o caso da lobotomia, intervenção cirúrgica que consiste, grosso modo, em “desligar fiozinhos” do cérebro para conter comportamentos agressivos. Seu uso indiscriminado transformou muitas pessoas em legumes, porque o funcionamento nervoso ainda está longe de ser desvendado. Mexer nessa caixa-preta (cinzenta) é sempre arriscado. Além disso, o procedimento começou a ser utilizado não só em indivíduos violentos, mas também em pessoas com comportamento “inadequado”. Hoje, tudo isso é irracional, mas a lobotomia já foi considerada uma glória da medicina, sendo que seu desenvolvedor, o português Egas Moniz, foi laureado com o Nobel de 1949. Também já foram utilizadas sangrias, trepanações, inaladores radiativos... Tudo isso já foi considerado benéfico. Hoje, é pura e simples... loucura!

Isso tudo porque é muito difícil estabelecer um limite preciso entre razão e loucura. Nosso mundo, desde o Iluminismo, mas principalmente a partir do Positivismo, é regido pela técnica, pelo pragmatismo, que considera importante apenas e tão-somente aquilo que é útil. Daí, um primado da ciência que despreza o que é metafísico e enterra o que é espiritual. Se pensarmos como Max Scheler (vide este post), veremos que essa é uma negação de nossa própria humanidade, porque encostamos em um canto remoto um dos componentes do tripé que nos caracteriza – corpo-pensamento-espírito.

Um exemplo da espiritualidade perdida: olhamos para o céu à noite e vemos milhões de pontos brilhantes, que sabemos se tratar de gigantescos conglomerados de gases reunidos ao redor de um ponto gravitacional, e isso é tudo. Para os gregos antigos, eram animais, reais e imaginários, heróis, deuses, retratos históricos, como podemos perceber nos nomes das constelações – Órion, Cisne, Dragão, Cabeleira de Berenice, Ursas Maior e Menor, os signos do zodíaco. Para os africanos, as constelações eram compostas pelas almas dos grandes líderes que velavam o povo após a morte (sim, o Rei Leão está certo – a lenda existe). ISSO é espiritualidade, não há um vínculo religioso necessário. Se quiser chamar de capacidade abstrata, também pode.

O problema é que o culto à ciência vem matando duas outras áreas do conhecimento, que vão sendo relegadas ao plano da loucura devido a suas características eminentemente abstratas: a religião e a arte, ambas possuidoras de interpretações para a loucura que a ciência não alcança. Muito do que ambas dizem é tido como desvario ou mito, quando na verdade são perspectivas alçadas a partir de ângulos alternativos. A ciência as desconsidera, não as toma a sério. Vejamos rapidamente como é definido Jesus Cristo:

“Jesus nasceu em uma cidade do atual Oriente Médio, chamada Belém. Ele é o próprio Deus encarnado, sendo que foi gerado a partir de uma gravidez em que o Espírito Santo, também ele Deus fecundou uma adolescente virgem esta moça chamava-se Maria que recebeu por milagre um aviso divino através de um arcanjo de nome Gabriel ela deu sua aceitação ao chamado de Deus ao se prontificar a dar à luz o menino Jesus-cresceu-e-se-tornou-homem-iniciando-seu-ministério-com-um-jejum-no-deserto-que-durou-40-dias-onde-foi-tentado-pelo-demônio-a-desistir-de-suamissãonãopodiafazê-loporqueeraDeusalémdeserhomemviveuparaensinaroshomensoamorqueseuPaidesejava paratodoseparatantoseconfrontoucomospoderososdaépocaFOIlevadoÀcruzONDEmorreuEfoiSEPULTADOmasSAIUdoSEPULCROparaAvidaETERNAparaONDEpromete LEVARtodosaQuElEsQuEpAuTaReMsUaViDaNaLeIdOaMoRSeuMEmoRIalÉOviNHocONveRTidOEmsANguEEopÃOcoNVerTIdoEMcoRPocOMOsquAISmanTÉMsuaPREsenÇARealNOMeioDAHumaNIDadeATÉofiMDOsdiASHSEIKDIGFMRHCYR...”

É difícil encaixar esta descrição em um modelo puramente racional e empírico. A religião busca explicações para suas aporias em princípios transcendentais, baseados em uma fé que a ciência diz não ter, mas que muitas vezes utiliza ao formular suas hipóteses, como eu já tentei explicar neste post.

O mesmo ocorre com a arte. Dá para explicar em termos racionais o teatro do absurdo de Beckett, o teatro da crueldade de Artaud (de quem já falei neste texto aqui), o serialismo de Stravinski, o dodecafonismo de Schoenberg, o cubismo de Picasso e Braque, o concretismo geométrico de Mondrian, o fluxo da consciência de Joyce, o realismo absurdo de Kafka, a psicodelia de Frank Zappa utilizando meramente a luz da ciência? A arte é a única atividade humana completamente livre, onde diferentes visões de mundo podem prescindir do formalismo acadêmico e de uma lógica estruturada. Se foge do lógico, se é assim, é loucura.

Tem outra coisa ainda. A ciência, em especial a psicologia e a psiquiatria, possui uma tendência moderna em enquadrar e tipificar qualquer forma de conduta que se desvie minimamente do padrão como uma patologia. Assim, qualquer moleque inquieto tem hiperatividade; uma criança avoada tem déficit de atenção; uma maniazinha de limpeza é um transtorno obsessivo-compulsivo (credo!); um sonhador tem síndrome de Walter Mitty; alguém que varie de opinião é bipolar, por aí afora e dá-lhe comprimidos. Loucura e mais loucura por todos os cantos e em todos os poros. Para o mundo que eu quero descer no Brás, tomar vinho e comer pizza!

A ciência arroga-se um atributo que não é exclusivamente seu. Se a loucura é desrazão, não há como fixar um modelo puramente racional para esgotar todas suas pluralidades. E, muitas vezes, religião e arte lidam melhor com essa questão.

Poderia ampliar ainda mais o campo, utilizando a antropologia cultural e a variação do conceito de insanidade nas diversas etnias, ou estabelecer que, como preconizou Schopenhauer, o que nos guia é nossa vontade, e não nossa razão, mas prefiro ficar com a interpretação de Erasmo de Roterdã, para quem a loucura nada mais é do que o amor às coisas simples do mundo; a vida como facilidade, e não como um amontoado de teoremas e axiomas tão difíceis de compreender que sua própria decifragem já é, em si mesma, uma forma muito mais dolorosa de loucura. Se ela é uma aporia, também é louco quem tenta defini-la.

Recomendações:

Hoje serão múltiplas. A peça a que me referi ainda está em cartaz e é excelente, muitíssimo bem dirigida e interpretada. Vale a pena o risco. Está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil até 06/05/2012, dirigida por Alexandre Tenório e o ingresso é baratíssimo (R$ 6,00). Recomendo fortemente.

A interpretação de Erasmo pode ser lida em seu capolavoro, onde a loucura é vista de forma aberta e de muito bom humor.

ERASMO. O elogio da loucura. São Paulo: Novo Brasil, 1983.

E por último (mas não em último), para quem quiser conhecer a lobotomia por um prisma artístico, recomendo, com soberba interpretação de Jack Nicholson, o seguinte filme:

FORMAN, Milos. Um estranho no ninho. Filme. EUA: 1975. 133 min.

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