(Vejo peregrinos e me pergunto se ainda é possível que exista sentido delas para mim)
A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.
Camus
Olá!
Depois de dois dias alocados no distrito do Vale
do Bom Jardim, acabamos pegando amizade com a dona do chalé. Eu sou um cara
que normalmente falo menos do que escrevo, que é o inverso da patroa. É com
isso que nós conseguimos pegar muitas referências dos lugares que visitamos, e,
para isso, nada melhor do que trocar ideias com os locais. Neste caso, a charla
valeu uma visita para outro distrito do município de Camanducaia, onde
poderíamos contemplar a natureza de um bairro ainda mais alto, e com bastante
história e boa comida. É Jaguary de Cima, e vamos para lá.
O nome do bairro é devido ao rio que tem parte de suas
nascentes lá no alto, e que vai serpenteando por entre as montanhas até
desembocar no estado de São Paulo, não tão longe dali. Ele forma várias
prainhas e tem muitos saltos no trajeto, bons para dar uma molhada nas costas.
Apesar das culturas rurais espalhadas pela região, as
formações montanhosas fazem com que ainda haja um bom tanto de mata nativa, já
que não é tão simples de praticar agricultura em desníveis tão expressivos.
Isso faz com que ainda seja possível encontrar muitos recantos de mata densa e
dá uma pequena ideia de como a Mantiqueira era recoberta originalmente.
O principal ponto turístico é a Fazenda Esperança, uma
antiga herdade de meados do século XIX que ainda guarda muitas de suas
características originais.
Para dar mais guarida ao seu aspecto histórico, a fazenda
possui alguns equipamentos que demonstram como foi sua vida no decorrer dos
tempos. Um deles é um museu, que mantém sua estrutura elevada de época e uma
série de objetos e utensílios utilizados pelos moradores em tempos passados.
Muitos desses objetos são artigos corriqueiros, da vida de
ofício e de afazeres domésticos, dando uma dimensão de deslocamento no tempo
para um momento histórico onde os trabalhos eram realmente mais manuais.
Outros fazem remissão discreta ao contexto histórico que
levou ao povoamento não só daquela região, mas de todo o estado de Minas
Gerais: os tropeiros que partiam do litoral e que para lá levavam víveres e de
lá traziam produtos agrícolas.
Do lado de fora, há uma parafernália que chamamos de
trapizonga. Trata-se de um conjunto de monjolos que são acionados
alternadamente por um conjunto de chavetas dispostas em um eixo que, por sua
vez, é movimentado através de uma roda d'água. Da próxima vez que alguém chamar
algo por esse nome, saiba que a sua origem não é sinônimo de coisa
desconjuntada, mas de mecanismo complexo.
Também há plantações e pomares espalhados pela área, sendo
que as figueiras estavam em plena produtividade. Muito do que se serve no
restaurante – ótimo – é produzido na própria fazenda.
A estrada que leva ao distrito tem uma característica toda
própria. Ela faz parte do Caminho da Divina Providência, uma rota de
peregrinação criada por um grupo de jovens da paróquia de São José, da cidade
de Limeira/SP, no meio da década de 80. Faz a linha a mais reta possível até a
cidade de Aparecida, no Vale do Paraíba, destino final de diversas romarias.
Todo o caminho é marcado pelo propósito da peregrinação
mencionada. Logo no começo da estradinha que leva a Jaguary, uma pequena
capelinha já é ponto de parada para os devotos que se preparam para encarar
aquele trecho de subida.
E é exatamente uma igreja dedicada à mesma santa que informa
ao caminheiro que ele chegou ao povoado.
Estamos praticamente no meio do caminho que vai à terra da
padroeira desta Pindorama. Daqui, são mais 127 quilômetros em meio a vales,
matas e muita terra nos calçados.
Disponível em
https://tvjaguari.com.br/caminho-da-divina-providencia-38096/
Eu cruzei com dois grupos de romeiros pelo caminho. Fiquei com vergonha de fotografá-los, como se fossem curiosidades de circo. Um deles era bem grande, com umas cinquenta pessoas e um guia. Já o outro era bem menor, mais motorizado e com bastante idosos, mas igualmente bem organizado. São caminhadas que levam dias, e demandam muitos pontos de parada e apoio, geralmente conseguidos com membros das comunidades religiosas que se distribuem pelo caminho.
As peregrinações são importantes nas religiões porque
carregam uma boa dose de conteúdo sacrifical. A ideia é que ninguém faz nada,
se faz fácil. Se eu sair de casa para peregrinar até a Catedral da Sé,
peregrinarei por trezentos metros, o que é uma tapeação contra a divindade, ou
seja, eu posso até ir à catedral, mas sem esse teor de sacrifício que é a longa
caminhada. Elas fazem muito sentido quando se relembra das grandes caminhadas
que eram necessárias no passado para ir de um lugar a outro, que atravessavam
os campos (per agro, ou através dos campos, em grego) quando
evidentemente não existiam aviões para se deslocar fisicamente, nem internet
para fazê-lo virtualmente.
Houve momentos em que eu quis fazer alguma peregrinação desse
tipo, principalmente a famosa rota de Santiago de Compostela, na Espanha. Mas
aí tem a grana e eu me contentaria com Trindade, Bonfim ou Aparecida mesmo.
Confesso que não se tratava exatamente de uma questão de fé, de alcance de
graça ou de coisa parecida, mas porque o espírito de romaria me parecia muito
atraente, aquela coisa de se percorrer uma estrada como se fosse uma metáfora
para a vida. Hoje esse sentido não existe mais.
Para quem é religioso (de fato) é bem isso: o caminho
representa a vida terrena. Cada pedra que se tropeça pode ser entendida como as
dificuldades para a manutenção da fé, e o destino final, aqui uma igreja ou
outro lugar santo, é a vida eterna, onde se retornará à divindade à escolha.
E para um ateu? A experiência vale?
Não no mesmo sentido, é óbvio. Seguindo a mesma alegoria, há
uma divergência muito grande: não há nada no fim do caminho, a não ser a morte.
Se partirmos da premissa de que não há transcendência, o fim é o fim. O que
resta, então? O caminho.
O caminho representa uma mudança de foco no que normalmente
seria a peregrinação. Pode-se até enxergar que o trajeto é como um tapete
vermelho de igreja, que leva do pórtico ao altar, e isso realmente faz muito
sentido no âmbito religioso, mas, novamente, o que temos aqui é um plano
secundário. Agora imagine uma estrada que leva para um barranco. O que importa
é só ela, e não o que está no fim.
Por esse motivo, a caminhada da peregrinação dos sem-fé é
mais importante do que a chegada. E isso é prova do absurdo que é a existência.
Qual das duas é melhor? Sem dúvida, a do religioso, admito.
Eu às vezes me pego pensando: qual não seria a decepção daquele que acreditou a
vida inteira e, chegando no fim, não vê nada? Mas se tudo acaba, acabou,
inclusive a chance da decepção. Acreditando, pelo menos não se teve a angústia.
Quer dizer… isso quando a crença é legítima, né? Eu vejo
choro e desespero sob qualquer condição. Pela lógica religiosa, uma morte
deveria ser comemorada, e não lamentada. É a passagem para a vida eterna, onde
poderemos rever os pais, parentes e amigos que se foram. Em outra lógica, é o
caminho completo, uma etapa que obrigatoriamente deveria ser cumprida. Mas
choramos nos enterros, lamentamos de saudades. Acho que isso demonstra que
somos todos agnósticos. É aquela velha história: não há ateu em avião caindo,
não há religioso enfartando. Não temos certeza nem disso.
Só que a escolha não é possível. Quando se crê, se crê; o
resto é autoengano. Só atingimos algum nível de reconforto quando cremos de
verdade em alguma coisa. Crer da boca para fora é, digamos, ilusão para quem o
faz e jogo sujo com a teórica divindade. Por assim dizer, está fora da regra do
jogo, como tentou Pascal
em sua aposta.
O ser humano é um ser dividido entre o sim e o não
permanentemente. Há uma grande dificuldade em se enxergar as diversas nuances
possíveis entre dois pontos distintos, e isso se reflete até mesmo em nossa
argumentação, forçando dicotomias
onde há multiplicidade. Sendo assim, se não há vida após a morte, só resta o
desespero. Mas, se houver, não temos a justa medida do que nos fará ser
agraciados pela vida eterna ou banidos ao fogo eterno. Ou seja, a angústia
persiste. E se nada há, o que nos dá sentido? Desde Aristóteles acredita-se que
a causa final do ser humano é a felicidade, mas como esta pode ser conciliada
com a perspectiva da morte, com a ideia de que todo o castelo de cartas se
desmancha com o vento? Sendo assim, só resta concluir que a vida é absurda.
Não é que o mundo e a natureza sejam absurdos em si, mas é a
nossa necessidade de sentido que os tornam assim. Pelo contrário, as coisas se
movem de acordo com a lei que lhes rege, e isso é para absolutamente tudo,
menos para ela, a humanidade.
Por esta razão, a vida tem um aspecto trágico incontrolável.
Por mais que se busque sentido na existência, ele não existe por si só.
Agarramo-nos aos deuses por mais óbvia que seja a sua inexistência, criamos
mundos futuros por não nos conformarmos com nossa finitude. O Calígula de Camus
pede que se lhe traga a lua. Ele não a quer porque é louco, mas porque quer
algo que não pertença a este mundo. Ele quer a lua, ou a felicidade, ou a
imortalidade, qualquer coisa que se possa chamar de absurda, qualquer coisa de
fora do mundo, justamente para justificar sua existência.
O absurdo é o aspecto trágico permanente e incontrolável da
existência. O mundo desmente sozinho a religião, porque as respostas que elas
dão são ainda mais absurdas que o próprio universo que se move por si mesmo.
Kierkegaard lembra do exemplo de Abraão. Não é a execução de seu filho o
absurdo, já que é uma exigência de deus para provar sua fidelidade canina, mas
o fato de Abraão ter aceitado a incumbência, algo contraintuitivo até no
universo dos animais ditos irracionais. Ela é uma prova tão inequívoca do absurdo
que até mesmo é enviado um anjo para impedi-lo*.
A solução é mais simples, porém mais dolorosa a quem se
prende somente à perspectiva da morte. Heidegger
já dizia que a humanidade nasce para a morte, e esse era, de certa forma, o
auge da sua existência. Tudo o que vai para frente é inatingível, exista ou
não. Dessa forma, sendo irresoluta, a vida é absurda porque a consideramos
assim. Camus, no mito
de Sísifo, propõe algo que se assemelha aos que os antigos
céticos já propunham: nunca chegarei ao conhecimento de nada, mas isso não
significa que ficarei parado. Transmudado para a existência, esse pensamento se
desloca para a tarefa infindável de Sísifo, sua pedra que sempre rolará morro
abaixo. No que é diferente nossa vida? Ela é vivida no trânsito da montanha,
para cima e para baixo, e é na revolta contra o destino inexorável que vivemos.
Não adianta que os deuses tenham castigado Sísifo pela eternidade: ele reverte
a vingança caso tenha achado um norte em seu próprio destino. De lá, na subida
da montanha, sempre teremos uma vista bonita, uma paisagem curiosa, um céu que
se alonga ao infinito e que nos traz perguntas mais edificantes do que o mero
peso que se carrega. Imaginar Sísifo feliz corresponde a nos convencer de que a
vida pode valer a pena, mesmo que não tenha desfecho, porque o seu propósito é
dado diariamente, no momento e no lugar em que estamos, seja lá qual ponto da
caminhada for.
Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Como já mencionei o mito de Sísifo anteriormente, vou
recomendar a peça Calígula, onde Camus também fala do absurdo da existência sob
um ponto de vista desvinculado da religião. Curto e fascinante.
CAMUS, Albert. Calígula. In: Calígula seguido de O
Equívoco. Porto: Livros do Brasil, 2002.
* Embora um deus onisciente deveria saber que seria
obedecido, tornando dispensável todo o evento. Mas o absurdo se manifesta
estruturalmente, e não só episodicamente.
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