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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Navegações de cabotagem – O Memorial Padre Léo de Lorena e as tentativas de reforçar a fé através dos argumentos filosóficos

(A fé deveria subsistir por si mesma, mas volta e meia ela precisa de reforços)

“...nada acontece sem uma razão suficiente; isto é, que nada ocorre sem que seja possível, para aquele que conhece as coisas muito bem, fornecer uma razão suficiente para a determinação do porquê as coisas serem assim e não de outra maneira. Dado esse princípio, a primeira questão que colocamos é: por que há alguma coisa em vez do nada? Afinal, o nada é mais simples e fácil do que alguma coisa”.

Leibniz

Olá!

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O Vale do Paraíba, muito mais que um acidente geográfico, é um autêntico manancial de História, com o perdão do trocadilho. Para quem vê desavisadamente, pode parecer a ponte que liga os dois polos da megalópole Rio-São Paulo, mas essa impressão oculta todo o tamanho da cultura que se espalha por esse espaço entre a Serra do Mar e a Mantiqueira, que inclui gastronomia, arquitetura, tropeirismo, ofícios da terra e da fábrica, histórias contadas e religiosidade, muita religiosidade em seus caminhos. É aqui que temos a basílica de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, a sede do movimento Canção Nova, o Santuário das Duas Cabeças e o Santuário da Rosa Mística, somente para citar alguns. Mas há mais.

Em uma tarde de domingo, fui até a cidade de Lorena, distante poucos quilômetros da Taubaté onde mora a filha mais nova. Ela teve fé demais na meteorologia e confiou em uma blusa de lã, para um sol que viria a passar dos trinta graus em poucas horas. A solução, nestes casos, é saber se há algum shopping nas proximidades, porque o comércio dominical abre poucas coisas. Ele há, e fica próximo à Dutra, e foi fácil resolver o problema da camiseta e do almoço. Com o sol pinado, fui até o fundo do estacionamento para tentar achar alguma sombra, que encontrei próximo a uma construção inesperada, muito parecida com uma igreja. Parecida não; é uma igreja… uma igreja em um shopping, é novidade para mim. Mas a questão era o que havia atrás dela: um memorial, dedicado ao Padre Léo, que eu não conhecia ainda. Vamos lá então.

Em primeiro lugar, é preciso dar alguns elementos biográficos e contextuais para se entender que é o Padre Léo. O advento da Renovação Carismática é um movimento que incorporou elementos do protestantismo pentecostal, como cantos emocionais, entoados em primeira pessoa, manifestações do Espírito Santo, uso de depoimentos chamados de testemunhos e outros elementos que transformaram o cerimonial católico mais rebuscado em uma versão mais performática, com ampla participação da assembleia. À parte disso, tem um fundo moral mais conservador do que, por exemplo, aquele das igrejas saídas do Concílio Vaticano II e da Celam de Medellin, menos ligadas aos ritos e mais engajadas socialmente. Nesse contexto, os carismáticos são midiáticos, e começaram, cada vez mais, a ter seus padres pop star, inclusive se tornando fenômenos da cultura popular, como o Padre Marcelo, Padre Zeca e outros. Padre Léo surge nesse meio, sendo considerado uma espécie de comediante de stand up, dado o uso de “causos” e criação de histórias humorísticas para ministrar conteúdo moral, o que o tornou muito querido pela sua comunidade.


A igreja do estacionamento do shopping é a Capela do Sagrado Coração de Jesus, pertencente à Comunidade Bethânia, que foi fundada pelo próprio Padre Léo para tratar de dependentes químicos.

O memorial dedicado ao padre fica logo atrás, em um pequeno anexo que contém muitos dos seus objetos pessoais, de uso no ofício e de seus pensamentos em geral.

O padre teve participações em um programa de televisão, e a curiosidade é que há uma recordação deste fato, que era feito simulando uma beira de fogão à lenha, algo muito típico do interior e que remetia à sua metodologia de ensinar. Lá, ele interagia com um boneco que servia de escada para ele introduzir sua temática religiosa. 

Padre Léo teve a vida curta, morrendo em 2007, aos 45 anos, vítima de um câncer no sistema linfático. Ele colocou o tema abertamente em suas pregações, como uma forma de alimentar a fé de quem se encontrava em situações semelhantes de desesperança. Mesmo já bastante debilitado, ainda participava o quanto podia de celebrações e eventos.

Após sua morte, imediatamente se iniciou um processo de beatificação, que é um dos passos para que uma pessoa entre no cânon dos santos da Igreja Católica, o que levou a uma valorização de suas relíquias, e que desembocou na criação do memorial que visito agora.

Todo processo de inscrição de um santo no Catolicismo é longo e cheio de nuances, Primeiro, há um pedido formal para que alguém se torne elegível à bem-aventurança; ocorrido algum milagre, vai-se à beatificação. Depois, com o correr do processo e mais outro milagre, poderemos ter a canonização, e o novo santo vai aos altares, embora a atual Igreja Católica mire seu olhar mais para a vida do candidato do que propriamente a feitos sobrenaturais. Aqui temos a urna que continha os restos mortais do Padre Léo, que foi trasladada durante seu processo de reconhecimento. Isso ocorreu porque o padre estava enterrado em sua terra natal, Minas Gerais, mas a beatificação começou pela Comunidade Bethânia, que fica em Santa Catarina.

Vidas religiosas podem ser admiráveis até por incréus, quando sua ação foge ao mero espectro das liturgias e teologias, e vazam para o terreno social. O exemplo de São Francisco é sempre facílimo de lembrar, mas há sempre casos mais recentes como os de Chico Xavier, dom Paulo Arns, dom Pedro Casaldáliga, irmã Dulce e tantos outros. São pessoas que escolhem doar a vida para uma causa, e isso transcende a fé que defendem.

Mesmo nos meus tempos de religioso, eu tinha muitas restrições práticas ao ponto onde eu acreditava que poderia chegar. Essa dose de heroísmo a que certas pessoas se dão não fazia minha cabeça, e eu sabia que não teria coragem, por exemplo, de encarar um martírio para abnegar minha fé, nem em sonhos, como tantos fizeram. Talvez, parafraseando os testemunhos de conversão, lá no fundo, no fundo eu já soubesse que não acreditava em nada, apenas não deixava aflorar isso em minha consciência por alguma espécie de medo da desconversão.

A questão deus é complexa. Embora seja o sonho da humanidade ter uma entidade que lhe guarde e dê expectativa de dias melhores, o fato é que, estamos assentes, não há como colocar uma divindade em um tubo de ensaio, como li em algum lugar. As próprias características que se lhe dão o excluem do campo da prova, e, ato contínuo, do âmbito científico. Coisas como onipotência, eternidade temporal, infinitude espacial e outros penduricalhos inviabilizam a investigação, e resta a fé, o que, aliás, é defendido por muitos religiosos: deus não precisa estar nos observatórios, mas nas igrejas. Tentar elaborar deus como um artigo científico é afastar-se da essência dele.

Resta só a fé? Não, há também a filosofia, e, por ela, há alguns argumentos que tentam provar deus pela via lógica, sem levar em conta a materialidade necessária para a ciência. Sendo assim, sempre que se tenta falar em provas da existência de deus, é por essas sendas que se corre.

Via de regra, esses argumentos fazem uma regressão de causa e efeito até o ponto em que não há mais como retroceder sem que exista um causador sem causa. É uma hipótese que vem desde Aristóteles e seu primeiro motor imóvel, sendo que nosso amigo estagirita não arriscava uma divindade específica para nomeá-lo, ao contrário de são Tomás de Aquino, que já cravou o seu Deus cristão para a tarefa, utilizando o mesmíssimo argumento.

A coisa é mais ou menos assim: tudo o que existe tem uma causa que lhe deu origem. Um fruto era uma flor, que era um botão, que era uma semente, que veio de outro fruto, que era outra flor, e assim por diante, em um processo de regressão infinita. Entretanto, entende-se que a cadeia de causas e consequências teve um começo, uma causa incausada, o kinoumenon kinei, com os atributos de ser substância imaterial, indivisível, eterno, uniforme, essas coisas todas. Como se pode perceber, esse conjunto de características é imediatamente aderente ao conceito de um deus, sempre igual a si mesmo, que não depende de nada mais do que si para se justificar, e assim vai. Embora seja possível contestar esses arrazoados, o certo é que eles são poderosos, porque fornecem lógica a uma cadeia de fenômenos que são quase todos bastante intuitivos, e onde se encaixa perfeitamente, no começo, o deus que se quiser.

Só que tem uma coisa. Por mais bem engendrado que seja o argumento, ele continua sendo uma hipótese, e não uma prova. Sendo assim, contestações podem ser abundantes, e de fato as são. Por conta disso, o tal argumento cosmológico sempre foi recebendo melhorias, de modo a trazer mais premissas e tentando fortalecer a conclusão. O principal problema é que normalmente ela segue uma rota de petitio principii, ou seja, a resposta já está dada; o que falta é construir as questões de forma a se conduzir para ela.

Leibniz, já no século XVIII, sintetizou uma forma desse argumento em um silogismo e adicionou a questão da contingência para reforçá-lo. Segundo ele, era preciso dar uma resposta à grundfrage, a pergunta fundamental ao redor da qual toda a filosofia girava: por que há algo, ao invés de nada?

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que este nada a que Leibniz se refere não se trata de um grande vácuo, de um imenso vazio onde não há planetas, estrelas ou qualquer outra matéria, onde, no entanto, existe um espaço, mas um nada ontológico, onde não houvesse nem tempo, nem espaço, nem coisa alguma que pudesse ser pensada: o absoluto não-ser.

Para formular sua hipótese, Leibniz lança mão de um antigo princípio que usa um encadeamento lógico semelhante à regressão infinita: a razão suficiente. Este princípio diz que existe uma relação necessária entre um fato e outro, que é de uma determinada maneira e não poderia ser de outra. Se há algo, existe uma razão suficiente que lhe deu causa, que lhe moldou na origem e que justifica não só sua existência, mas que ele seja como é.

E qual seria essa razão? Diz Leibniz que ela não poderia partir de uma causa contingente. De uma causa o que?

Contingências são todas as coisas que são de uma determinada forma, mas poderiam ser de outra. Estou aqui em frente à minha xícara de café, mas poderia ser de infinitas outras maneiras: poderia ser chá, leite (eca), chocolate, água, suco, pinga ou nada. Entretanto, o encadeamento de uma série de fatos e fenômenos levou a ser o que é, e, dados todos eles, não seria de forma diferente. O café está contingentemente na minha frente por causa de uma razão suficiente moldada por todo esse conjunto de circunstâncias. Por outro lado, necessário é tudo aquilo que é da forma que é, e não poderia ser de outra forma. Eu coloco no meu caderninho a expressão 2+2, e procuro, de alguma forma, respondê-la diferentemente de 4. Como uma criança, junto duas pedrinhas brancas e duas pedrinhas marrons, duas laranjas e dois abacates, duas galinhas e dois gatos, duas cadeiras à direita e duas cadeiras à esquerda, duas telhas em cima e dois tijolos embaixo, e o resultado é sempre o mesmo: quatro elementos. Temos aqui uma relação de necessidade: dois mais dois é igual a quatro em qualquer circunstância.

Ok. Se o universo não pode partir de uma causa contingente, precisa partir de uma causa necessária. Leibniz retira essa causa da matéria, porque cairíamos em um princípio de regressão infinita e bateríamos na mesma parede de Aristóteles. A matéria, por si só, é inerte, e só se põe em movimento quando há uma causa para isso. Por isso, a matéria não se explica sozinha. Há de existir uma causa necessária fora da cadeia das contingências, e, para isso, essa causa precisa ser bastante em si mesma, conteúdo de toda perfeição, onipotente, onisciente, cuja existência de tudo deriva de sua própria perfeição. Conhecem algum ser que possui esses atributos?

Resumindo, o argumento contingencial de Leibniz é o seguinte: se há algo, é porque há uma razão suficiente para tanto. Essa razão não pode ser contingencial, haja vista que somente uma causa necessária basta em si mesma. A necessidade implica em perfeição e outros atributos inamovíveis, que só podem pertencer a deus.

O grande problema deste modelo de explicação reside no salto lógico que é imputar para um deus determinado a causa necessária. Quando a ciência fala em Big Bang ou coisas semelhantes, para por aí porque não há como especular o que vem antes. O grande círculo que é a imensa expansão universal até um certo limite, para depois voltar a encolher e se concentrar em um mesmo ponto, onde o mesmo fenômeno de expansão se dará novamente, e novamente, e novamente não explica o que colocou aquele ponto incrivelmente concentrado a se mover pela primeira vez. O que faz a ciência? Coloca um ponto final na sua tarefa, até que seja possível novamente aferir o que está na relação de causa e consequência. É incômodo, mas é aceito.

Colocar a causa incausada como princípio de todo o universo é um by-pass lógico, porque responde a tudo sem responder a nada. Isso porque a cadeia de questões continua. Consideremos que, de fato, tenhamos uma divindade que lá em um ponto inespecífico do tempo e do espaço criou o universo. A quantidade de perguntas que surgem daí são ainda maiores do que as materiais: qual divindade é essa? Se é perfeita e basta a si mesma, para que criou o universo? E se não é, não é ela mesma contingente? Não poderia ter sido ela também criada? Neste último ponto, não pode ser o universo divinizado e ele mesmo ser a causa incausada? Ainda: deus é mesmo a única causa necessária por excelência? Não há mais espelho nos entes matemáticos (o 2+2 que citei) do que em uma certa divindade? Ao menos, os números traduzem o universo. São tantas as perguntas possíveis que acabam por transformar a hipótese de Leibniz mais uma entre outras.

Há algo de errado em se especular o que viria antes de todos os movimentos? Não, absolutamente nada, porque é disso que se alimenta a filosofia. A grande intercorrência está em chamar isso de prova. Isso não é prova. É, no máximo, um argumento engenhoso, que pode ser verdadeiro ou não, e que, com isso, vai cair no que acreditamos, e não no que sabemos. Especificamente, é por isso que se presta a alimentar a fé, e não o conhecimento. Bons ventos a todos!

Recomendações:

O escrito de Leibniz que contém seu argumento cosmológico está na seguinte coletânea:

LEIBNIZ, Gottfried. Princípios da Natureza e da Graça. In: A Monadologia e Outros Textos. São Paulo: Hedra, 2009.


O memorial do Padre Leo, como eu disse fica dentro de um shopping, o Eco Valle, e segue o seu endereço:

Centro Cultural Memorial Padre Léo

Estacionamento do Shopping Eco Valle

Rodovia Presidente Dutra, Km 53

Jardim Novo Horizonte

Lorena/SP

A aproximadamente 198 Km do centro de São Paulo

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