(Quanto que uma roupa diz sobre o que nós somos? Seria uma mera questão de moda ou um conflito da verdadeira identidade?)
Olá!
A pandemia ainda não acabou, e demanda cuidados, mas é fato
que as coisas vão lentamente voltando ao seu eixo, muito por conta da
eficiência das vacinas, aquelas que foram tão combatidas por certas trupes de
malucos. Esse tão propalado "novo normal" carrega consigo uma boa
parte de sustos e traumas. Como exemplo, cito as várias pessoas que trabalham
comigo e persistem no uso da máscara (eu incluso), embora não seja mais
obrigatória.
Para além disso, há novos costumes de natureza ainda mais
pessoal. No meu caso específico, adotei uma política diferente de indumentária.
Antes, recobria-me de infernais ternos e gravatas, mesmo para dias senegaleses.
Agora, só o faço de acordo com a pauta: tem reunião com graúdo, tem paletó; do
contrário, há camisetas e o bom e velho brim. Ah, mas tem reunião de
emergência… emergências não são para desfiles de moda, e vamos com o que temos.
Até agora, a chefia não reclamou, então vamos mantendo o hábito até a censura.
Para desgosto da minha defunta mãe, eu nunca primei pela
elegância, mas pelo conforto. A coisa piorou significativamente quando passei a
ostentar abdômen proeminente, que deixam a roupa com a alegre, porém
desengonçada aparência de dono de circo. Embora tenha estudado Filosofia,
trabalho com informática, que, infelizmente, paga melhor. E isso me coloca em
uma condição estranha. Embora haja certa flexibilidade no vestuário dos
desenvolvedores em geral, na área de requisitos temos inumeráveis reuniões, o
que nos coloca com o duvidoso título de "representantes da
instituição". E aí pega mal estar fora do padrão bem aceito, como se um
pano amarrado no pescoço certificasse virtudes em seu portador.
Mas o que a maneira com a qual me visto diz de mim?
Pode-se dizer que é bem pouca coisa, mas há um conjunto de
olhos sociais que buscam desesperadamente alguns tipos, digamos, de selo de
certificação de que aquela pessoa assim vestida tem algum grau de fiabilidade,
de conhecimento, de habilidade, de recursos ou de seja lá o que for. A roupa
não diz o que temos por dentro, mas, para quem é de fora, interessa o que é de
fora. No caso, exatamente a roupa, o tal selo. Pode parecer maluquice? Pode,
mas é assim que se bate o tambor e não tenho muito o que fazer.
Há outros componentes que montam nosso visual. Meu perfil
geral é o seguinte: cabelos amarrados em rabo de cavalo, barba sem bigode,
roupas preferencialmente folgadas e tênis. Tem gente com cabelo pintado, cabelo
raspado, cabelo moicano, cabelo branco e assim por diante, cada um moldando sua
moldura de acordo com a dicotomia vontade-possibilidade. Dão a isso o nome de
estilo, e, embora cada um diga que tem o seu, a verdade é que o nosso velho
ambiente desenha tudo. Se eu fosse ter meu verdadeiro estilo, andaria pelado
como um índio. Mas não se preocupem: sou obediente à lei e às normas, e somente
serei o mais legítimo possível no seio de meu lar, prometo.
Mas essa questão de estilo. Dizem que a maneira como nos
expomos fala muito sobre nós, mas o fato é que diz sobre como queremos ser
vistos, e não como somos de verdade. Isso é mais perceptível quando vemos como
os tais estilos são massificados, a tal da moda (para ler um pouco sobre isso,
tenho estes textos – aqui
e aqui).
Evidentemente, não existem tantas pessoas iguais, como não existem ambientes
iguais, mas temos uma tendência à uniformização, isso não chega a ser surpreendente.
Percebam como as casas também são frutos de modas: temos sua aparência pública,
e embora possam trazer algum tipo de ideia de época ou do tal do estilo, nada
dizem do que ela é por dentro - uma casa rota pode ocultar uma vida harmoniosa,
enquanto em casas eruditas podemos ter violência de todo tipo. O mesmo se passa
com corpos. A aparência exterior diz pouco, diz aquilo que queremos transmitir,
e a paz dos tons azuis pode esconder intensos conflitos. Mas o fato é esse:
variamos de aspecto por conveniências, e não por dar reflexo ao que se passa
por dentro de nós. Porque quando tentamos fazê-lo, a chance de dar errado é
grande.
Eu já falei sobre os motivos pelos quais entendo que as
pessoas têm multiplicidade de apresentações e até justifico isso, em um dos textos
que entendo ser um dos melhores deste espaço. Mas quero aqui abordar a temática
por outro ângulo, desta vez mais psicológico. Isso porque, embora sejamos um e
muitos ao mesmo tempo, há aqueles que mais bem se adequam à nossa realidade
mental, e outros que parecem ir ao exato contraponto. É algo como alguém que
suporta engolir uma amarga cerveja que detesta para ter aceitação de um grupo
que aprecia, adorador dessa mesma cerveja. Vou falar em primeira pessoa, mas
usando profusamente Kierkegaard na análise.
Embora sejamos menos do que uma minúscula partícula de areia
em um imenso universo, quando olhamos para nosso particular percebemos que, no
final das contas, somos, para nós mesmos, mais importantes do que todo o
restante deste mesmo universo. Pode parecer se tratar de ato de magno egoísmo,
mas não é isso. Basta que pensemos o seguinte para compreender: o que seria do
universo sem mentes que o absorvam? Ele poderia continuar a existir, mas a
poeira e os gases que estão por toda parte não têm em si uma compreensão de sua
existência. Ou seja, dar importância a alguma coisa é uma prerrogativa de seres
viventes, o que, pelo que sabemos até agora, limita-se ao planetinha azul, essa
esferinha cada vez mais judiada. E quem, dentre todos estes, é aquele que
percebe o mundo e sabe que percebe? O ser humano. Essa percepção, ainda que
possamos pensar em uma espécie de ação coletiva, é feita individualmente. Quem
ganha o jogo é o time, é bem verdade, mas o goleiro que defende é um indivíduo,
o zagueiro que entra no meio da canela é um indivíduo, o centroavante que
goleia é um indivíduo. Nesse escrete chamado de humanidade, a história é
escrita por todos, mas vivida individualmente. Cada um de nós adquire o
universo para si através dos sentidos, de maneira única e irrepetível. Por essa
razão, o indivíduo é, para si mesmo, o centro do universo.
Aí então eu pergunto: o que vale mais para uma pessoa?
Seriam os sistemas que explicam no atacado e no varejo as verdades tidas como
universais e necessárias, válidas a todo lugar e a todo momento, ou seria a
busca individual, que reflita uma realidade que esteja em consonância com o que
ela é? Sendo assim, é no detalhe que residem as questões mais importantes para
cada um de nós - quem sou, por que sou como sou e quais são os fatores que me
afastam de meu verdadeiro eu, a minha essência.
Mas, para além da consciência que temos do universo e de
certas noções próprias, como a finitude e a intencionalidade, o que nos
caracteriza como humanos? Qualquer que seja a essência de cada um, ela precisa
ser materializada de alguma forma. Mesmo que consideremos que há almas, e que
elas sejam igualmente intrínsecas ao homem como é o corpo, elas nada seriam sem
estar concretas no mundo. Ou seja, nós existimos. E nessa existência está nossa
materialidade, a realização de nossa essência, tida aqui como nosso modo
autêntico de ser.
Nós existimos não porque respiramos ou enxergamos, mas
porque exercemos arbítrios. Em outras palavras, nós fazemos escolhas. O fato de
que eu esteja digitando este texto nesse exato momento é um critério meu: eu
poderia estar cochilando, escutando a fofoca alheia, especulando sobre a rodada
do Brasileirão ou fumando maconha um charuto, e cada uma dessas seria
uma escolha, mas eu, dentro das possibilidades, optei por escrever. Se o fiz
com liberdade, é uma manifestação da minha essência.
Ocorre que, se eu estou escrevendo, não posso estar
cochilando, nem escutando fofoca alheia, nem nada mais. Por isso, a minha
escolha implica na renúncia de todas as demais possibilidades. Existe na
economia um termo chamado de custo de oportunidade, que é representado
por todas as oportunidades que deixei de lado para investir na área de negócio
que escolhi, e que representará um encargo eterno na minha mente: não teria
sido melhor investir em ações do que ter aberto uma tabacaria? Há uma
característica na escolha ampla – ela impossibilita paralelos. Eu não consigo
ser careca e cabeludo ao mesmo tempo... que exemplo bobo... Vamos melhorar. Ao
optar por não ter filhos, eu trago comigo tudo o que isso representa. Serei
livre dos encargos da criação, terei mais dinheiro, minha responsabilidade se
limitará a mim e poderei fazer coisas que um pai não faz. Por outro lado, todo
o lado positivo de ser pai fará parte da escolha tida na forma de renúncia: a
um descendente, a um sucessor, a alguém que cuide de mim na velhice, a alguém
que possa receber minhas histórias, etc. Essas questões não são nada óbvias e
viram um peso, especialmente nos momentos em que sentimos o barco adernar.
A liberdade de escolher entre a infinidade de possibilidades
é uma geradora inesgotável de angústia. E é principalmente dolorosa para quando
pensamos em retransformar quem somos para algo diferente. Parece coisa frívola,
e pode ser mesmo, mas há duas implicâncias possíveis, tanto no sucesso quanto
no fracasso. Pode ser que queiramos virar monstrões, com músculos capazes de
esmagar pulgas. Faríamos isso para atender uma necessidade de destaque visual,
sob a desculpa de estarmos cuidando da saúde. Se der certo, o cara gordinho,
meio suarento e disponível a qualquer instante dará lugar ao marombado que será
temido por homens e admirado por mulheres, que, entretanto, não será mais o
cidadão boa praça de antes, sempre presente nas rodas de amigos. O novo eu pode
se ressentir de tudo o que o antigo perdeu, mas a escolha já se deu e carrega todo
o peso das perdas. Se fracassar, contudo, vem o desespero. Esse desespero não
está no simples fato de que o gordinho continua ostentando a pança, mas porque
ele quis se afastar de si mesmo e não conseguiu. O indivíduo já não suporta a
si mesmo, mas não consegue deixar de sê-lo.
É um beco sem saída, uma aporia? Sem dúvida. Vivemos em
confronto com nossa realidade dupla - nosso temporal e nosso eterno, nossa
liberdade e nossa necessidade. A cada instante o homem precisa decidir e
exercer sua síntese - uma pessoa é um ser sintético. Somos livres para
escolher, mas sempre dentro de um leque de possibilidades. Isso indica que a
liberdade não é absoluta: temos o arbítrio, mas ele não pode nos levar a
qualquer lugar. Menos do que impossibilidades óbvias, como voar ou viver sem
ar, a angústia está na imprevisibilidade da possibilidade. Talvez eu resolvesse
tingir meus poucos cabelos de rosa, para criar uma imagem de ousadia, mas o
efeito seria de tolice. Mas a coisa ainda não seria grave, ainda. Bastaria raspar
os cabelos. A questão vai muito mais para o quando temos de corda para nos
afastar da âncora que nos prende à nossa própria personalidade. Renegá-la
significa expressar uma insatisfação consigo mesmo, mas nós somos o que somos -
sou destro e não adianta tentar ser canhoto, sou baixo e não adianta tentar ser
alto, tudo o que terei são garranchos ou calos nos pés.
Quantas vezes não nos vemos desesperados? Não o desespero
fático de nos vermos ameaçados pela morte, mas por nos vermos desiludidos,
especialmente nos momentos em que algo dá errado com nossas escolhas? Ainda que
não esteja em sua consciência, o homem luta em desespero para ser a si mesmo,
porque toda construção que ele faça para si é um afastamento de si, da sua
própria essência. Isso é contínuo e este presente todos os dias de nossa vida.
É uma doença da própria vida.
A solução kierkegaardiana é uma aproximação com Deus - ele é
cristão. Esse empuxo do espírito vai sempre em direção aos céus, pensa ele, e a
angústia é uma decorrência do medo da morte, de quem o cristão, com sua
expectativa pela vida eterna, está livre. Nietzsche, por outro lado, diria que
a solução para a angústia está em beber a vida de um gole só, ainda que o gole
lhe custe a vida*. Ou seja, as contingências da vida carregam a angústia no
conjunto, e o negócio não é se paralisar, mas soltar-se na torrente do destino.
Na minha humilde, talvez devamos ter um meio termo. Ser cristão e imaginar que
a cura do desespero está na religião leva a uma ilusão, porque ninguém consegue
assegurar qual seria o caminho certo para chegar a Deus (vejam o número
infindável de correntes dentro do Cristianismo) e é mais um elemento de
angústia, afinal pecados são julgados e nem sempre conseguimos mensurar o
tamanho da gravidade de nossos atos. Por outro lado, o largar-se de Nietzsche é
meio radical demais, e podemos quebrar a cara na primeira esquina. Sendo assim,
um pouco de prudência, mesmo a nível psicológico, não faz mal, como o caldo de
galinha dado ao doente, que não cura, mas alimenta. Isso serve para tudo,
inclusive para roupas. Ternos são detestáveis e inexplicáveis, mas ir de sunga
para o trabalho não diz quem eu sou, a não ser que limites não são uma noção
muito clara para mim.
Portanto, a maneira com a qual me visto diz que sou um ser
que experimenta possibilidades, que exerce escolhas, um eu-público que tenta
demonstrar uma faceta que tem mais a ver com meu desejo do que com meu eu
autêntico, porque muitas vezes estamos apenas forçando uma barra para ser o que
não somos. Se conseguimos, maravilha, não importa se causa escândalo ou ironia;
se não, estamos apenas continuando a ser humanos. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Como em toda sua obra, Kierkegaard é um bocado difícil de
ler, mas sempre precisamos tentar. Segue a indicação.
KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano. Col. Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
*Na bela figura do trecho de Snegs de Biufrais, música da
banda Som Nosso de Cada Dia.
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