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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 8º episódio: O distrito de Formoso e as diferenças de impressões que nos convencem da impossibilidade da verdade

(Depois de muito tempo, levo ao papel uma discussão que é a base da epistemologia contemporânea)

Onde basearia a experiência a sua certeza se todas as regras que empregasse fossem sempre empíricas e contingentes?

Kant

Olá!

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Já se vão dez anos. Esse é um tempo suficiente para tanta coisa que nem parece possível o quanto tudo mudou. Eu revejo as fotos daquele momento e constato que o que há de imediato é o quanto meu queixo ficou branco, populado por pelos que foram progressivamente declinando do castanho escuro, passando por um elegante arruivado, indo para um amarelo-fumante e parando agora na dignidade das cãs alvas. Ora (direis), raspe essa barba denunciadora, tão simples. Mas aí são três fatores: não me incomodo com os efeitos da idade, estou acostumadíssimo à barba e meu queixo tem um furo que me incomoda. Feio por feio, fica como está, porque demanda menos cuidado (vide aqui), quarto fator para a manutenção, não enumerado acima.

Eu vou falar sobre o distrito de Formoso, mas não fui para lá há pouco. Faz quase que exatamente dez anos, e até mesmo dei uma pincelada sobre ele no texto que fiz sobre São José do Barreiro, sua sede. E por que tanto tempo depois? Sei lá, sabe? Eu tive uma propensão em fazê-lo a princípio, mas julguei que destacar uma postagem exclusiva para um distrito fugia um pouco do meu escopo. Aí vem o fluxo do tempo e redijo textos para Catuçaba, Luís Carlos, São Francisco Xavier, Monte Verde, Águas de Contendas e, bem recentemente, Vale do Bom Jardim e Jaguary de Cima, derrubando minha tese no chão. Meu princípio padrão não pode ser uma municipalidade, mas uma inspiração, e o fato é que ela existia em Formoso. Por isso, o vírus que me incomoda com a sensação de incompletude ficou me corroendo por todo esse tempo, e eu resolvi soltar a coruja. Vamos até lá.

Fazendo um remember rápido, estamos no Vale Histórico, uma região que acabou ficando bem preservada em sua parte natural por conta de seu declínio econômico, originado da absurda discrepância entre as bitolas de suas linhas férreas e a da Central do Brasil, como bem expliquei neste post. Houve a vantagem de manter um local lindo, cheio de natureza original, com várias trilhas, dentre as quais, as da Serra do Formoso.

É por lá que os rios da região formam os pequenos espetáculos que são as cachoeiras de água gelada, algumas delas embrenhadas na mata e protegidas da insolação. São lugares que conseguimos observar ainda flora e fauna distantes das grandes cidades.

O distrito em si é um lugarejo com pouco mais de trezentos habitantes. Tudo o que puder ser pensado de estereótipos da pequena cidade do interior pode ser aplicado a esta localidade: a praça central…

…a igreja do padroeiro (neste caso, temos uma capela dedicada a São José e outra que mostro daqui a pouco)...

… e o coreto, que, neste caso, tem um formato menos convencional, assemelhado mais a um palanque do que a um palco circular tão típico.

É uma região que, dentro dos parâmetros brasileiros, já é algo antiga, razão pela qual é possível usar o chavão da viagem no tempo. O casario baixo, muitos feitos em abobe ou taipa de pilão guardam a velha arquitetura das paredes sólidas e das janelas com a ventana para dentro.

Como eu já disse, o bairro está em uma região acidentada, repleta de subidas e descidas por toda parte. No topo de um dos morros, fica instalada outra igreja, desta vez a Capela de Sant’Anna. 

Seu acesso era muito difícil de se fazer por uma picada, especialmente nos dias de chuva. Por esse motivo, foi construída uma escadaria para dar caminho mais seguro até o cimo, onde fica o precitado templo.

Essa benfeitoria foi realizada pelo Clube dos 200, uma reunião de pessoas que, nos primórdios da construção do eixo rodoviário (hoje Rodovia dos Tropeiros), utilizava um casarão lá existente como hotel. Era gente de grana, o que era indicado pelo simples fato de possuírem veículos na época, e tomaram para si a responsabilidade de realizar a obra.

No espaço ocupado pelas laterais da escadaria há ainda moradias do tipo que não se vê mais hoje, principalmente pelo fato de que boa parte do imóvel fica situado no interior do morro.

Quem enfrentar a subida se candidata a sorver uns bons goles de água mineral que fica disponível na bica ao lado da igreja.

Mas depois tem a descida, e é aqui que nasce minha filosofia. Eu tenho uma estranha sensação de infinitude ao começar a ida para baixo, como se eu fosse cair, tipo abismo. A patroa simplesmente vê o espetáculo como uma escada que ela é, ponto.

A escadaria é realmente longa, e isso começa a me trazer mais e mais estranheza. E vai, e vai…

E vai, até chegar no chão de novo.

Longe de ser uma experiência mística, a descida da escadaria deve ter sido uma espécie de dissonância mental, meio parecida com a que acontece quando eu vejo a Catedral da Sé do alto. As variedades de planos me bugam a noção de tridimensionalidade e o resultado é a perda da intuição de profundidade de uma cena qualquer. Parece que eu estou vendo uma pintura, com as noções de longe e perto dadas unicamente pelas dimensões das partes. Como eu já disse, a patroa se sentiu meramente descendo a escada, talvez com um pouco mais de cuidado dado o tamanho dos degraus, assemelhados a rampas. Kant se sentiria satisfeito, vendo nisso uma minúscula amostra das suas teorias.

As diferenças de percepção são um dos principais motes para a teoria do conhecimento de Immanuel Kant, renomadíssimo filósofo alemão do século XVIII que se debruçou sobre a questão da absorção do mundo exterior pelos sujeitos que o observam, e já o mencionei em tantos cantos deste blog que nem farei remissões. Entretanto, tenho que admitir que nunca cheguei a me aprofundar como deveria, sempre pensando que minha intenção não é produzir tratados, mas pequenos ensaios de convite à reflexão e pesquisa. Sempre fiquei muito na assertiva de que nós não conseguimos acessar a realidade como ela é em si mesma, mas somente através da manifestação de seus fenômenos. Chegou o momento de subir um degrau, para não cansar os pulmões e nem dar vertigens nos cérebros. Essa escalada vai ser aos poucos.

O que é essa tal de verdade? Se formos pensar de uma maneira mais próxima à objetividade grega, diríamos que é a correspondência entre um objeto qualquer e a impressão que obtivermos dele: quanto melhor essa correspondência, maior será o teor de verdade que teremos à nossa frente. Mas o que você me diria se eu assegurar que é impossível de se obter essa perfeita correspondência, ainda que a captação do objeto seja feita à mais reluzente das iluminações? Eu não, de fato, mas o tal do Kant a quem me referi nos parágrafos anteriores.

A questão é que partimos de uma premissa simples quando queremos conhecer uma coisa qualquer: ela está diante de mim, e me cabe estudá-la. Só que eu dou a primazia ao objeto e esqueço de mim mesmo, a pessoa que exerce a porção ativa da relação. Esqueço de pensar em como se dá esse processo todo, e isso faz com que eu prejulgue minha posição na trama como sendo absoluta, o que de fato não é. Também a ela é preciso restar análises, e esse é o pulo do gato kantiano.

Vejam bem. Toda relação de conhecimento envolve dois polos: o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, ou, em palavras mais simples, alguém para conhecer e algo para ser conhecido. Essa relação parece ser direta, mas ela possui alguns intermediários ocultos, e que estão em dependência direta conosco mesmos: nossos sentidos e nosso intelecto.

Ocorre que Kant afirma que não podemos conhecer a tal da coisa-em-si, pelo simples fato de não termos acesso direto aos objetos do conhecimento. Os processos pelos quais se dá essa relação é o que Kant chamou de filosofia transcendental, cuja primeira etapa é a estética transcendental.

Mas… o que significa esse nome estranho? São quadros de deuses? São músicas de inspiração religiosa? É o conhecimento elevado a arte e ao misticismo? Nada disso.

Kant não ajuda muito com os termos, mas também não chegam a ser indecifráveis. Ele utiliza a palavra estética porque se refere aos sentidos. De fato, a área da filosofia que recebe este nome diz respeito ao estudo do conhecimento sensível, e como, nessa etapa, Kant quer entender como se dá a absorção dos objetos através dos sentidos, ele fala em estética. Com relação ao transcendental, é um termo usado aos montes por Kant, mas que nada tem a ver com divindades ou com misticismo. É um termo que significa “estar além” ou “estar sobre”, que indica a nós a maneira como se dá o processo cognitivo, com elementos que vem antes do contato com os objetos. Kant usa esse termo repetidas vezes: sujeito transcendental, lógica transcendental, idealismo transcendental, e hoje nós vamos nos debruçar especificamente sobre a estética para irmos devagar com o andor.

Pois muito bem. Um dos pontos com os quais Kant se alinhava aos empiristas era com o fato de que todo o nosso conhecimento principia por um contato com o objeto que é feito através dos sentidos. Essa é sempre a porta de entrada do conhecimento, seja olhando um objeto qualquer, ouvindo uma lição, percebendo um peso e etc. Ou seja, um objeto primeiramente é dado pelos sentidos, para depois ser pensado pelo intelecto.

Acontece que, desde os ensinamentos do velho Platão, já sabemos que os sentidos estão sempre prontos para nos trair, ou seja, não temos novidades com relação aos problemas de confiar nos sentidos como porta de entrada do conhecimento. Mas não tem remédio. É por eles que temos nosso contato com o mundo, embora haja exceções decisivas, como veremos mais adiante.

O nosso sujeito é conectado aos objetos através das sensações, que podem ser definidas como modificações exercidas em nós mesmos. Como assim, somos modificados? Quando um objeto é apresentado a nós, ele produz impressões que nos deslocam de um momento do nosso conhecimento para outro. Lendo isso, passa -se a impressão de que estamos diante de um livro onde estudamos um tratado, mas, na verdade, o sujeito está em um ponto passivo da relação. Basta que se pense no deslocamento entre ambientes desses dias inconstantes da Terra da Garoa. Estamos embaixo daquele sol de rachar, e entramos em um ambiente fechado, com seus gélidos ares condicionados. A nossa reação é passiva, já que recebemos a sensação e somos modificados por ela - passamos a sentir calor ou frio. Isso é ação de um objeto (o clima) sobre um sujeito (nós). Nesse exemplo, somos acionados através de um sentido específico, o tato, que percebe a alteração de temperatura. Mas aí, resgate de sua memória aquele colega que todo mundo chama de louco, e que anda de blusa seja lá qual for o sol que estiver lá fora, e podemos ter um leve esclarecimento de como cada sujeito forma seu próprio conjunto de impressões. E também podemos perceber que não somos os mesmos na chapa quente ou no projeto de geladeira. Por isso, o conhecimento nos modifica, inclusive nas coisas miúdas do dia-a-dia. Essa relação é muito mais prosaica do que pode parecer, e dizer que estamos aprendendo a cada instante nos coloca em uma posição didática, o que nem sempre é o que está acontecendo.

Isso tudo nos coloca a pensar: o objeto está antes dos nossos sentidos, e precisará passar por eles para serem processados em nossa mente. E aí eu conto uma historinha. Meu sogro é um senhor já idoso, passado dos oitenta anos. Ele vinha reclamando de uma piora na visão, e a solução, nesses casos, é procurar um profissional. Além das esperadas degenerações típicas da idade, houve a constatação de uma catarata que precisava ser removida. Tudo isso é de pouco interesse, mas o que importa de verdade é que a oftalmo disse que os olhos do meu sogro são admiravelmente pequenos, sem prejuízo de sua funcionalidade. E aí vem a pergunta: será que ele, pelo fato de ter olhos menores, enxerga exatamente igual a mim? Será que ele, com um cristalino novinho em folha, enxerga igual ao que enxergava antes? O que isso tudo pode ter a ver com sua relação com o conhecimento?

Eis que nós, eu e meu sogro, tentamos decifrar a realidade através do contato com esse imenso objeto que é o universo. E para nós ambos, o processo é o mesmo e o filtro é o mesmo: antes de chegar aos nossos sujeitos, a realidade já passou pelos nossos sentidos, eu com meus olhos grandes, o sogrão com os seus zoínhos

Só que ainda poderíamos pensar em formas de correção das percepções para torná-las mais próximas, e ainda assim não teríamos a aporia da impossibilidade do contato direto resolvido, já que o problema não é meramente de igualar indivíduos, mas de compreender uma característica inerente do conhecimento. Portanto, Kant entendeu ser imprescindível compreender como se dava a percepção dos objetos através dos nossos equipamentos cognitivos.

Como já dissemos, o processo de conhecimento é majoritariamente empírico. Isso quer dizer que os conteúdos que são trazidos para o sujeito não estão contidos antecipadamente nele, mas extraídos da experiência, ou seja, do contato do sujeito com um objeto que é externo a ele. Ao contrário do que adoraria Platão, eu não tenho um modelo de pedra, coelho, bola ou qualquer outra coisa dentro de mim, ou em um mundo externo de onde meu intelecto possa resgatar informações anteriores ao meu contato com o tal do objeto. Entretanto, há elementos que já se encontram presentes no mecanismo sensível antes que se estabeleça a relação de conhecimento, ou, como Kant dizia, eram conhecimentos apriorísticos (a priori, o que vem primeiro). Sem eles, é impossível conhecer.

E o que são esses elementos a priori que se colocam na dinâmica do conhecimento? Segundo Kant, são o espaço e o tempo.

Kant, nesse sentido, não concebe que espaço e tempo sejam propriedades intrínsecas da realidade em si mesma, mas como parte do aparato cognitivo humano. Enquanto todas as demais informações são absorvidas pelo sujeito como intuição empírica, tempo e espaço são intuições puras, sem as quais não há nenhuma possibilidade de se falar em conhecimento. Não é muito simples de se elucidar como Kant colocava esses dois juízos a priori na cadeia do conhecimento, mas podemos fazer um exercício, no qual podemos pensar em algo que esteja fora do espaço ou do tempo, e veremos que é impossível. Podemos pensar em uma partícula que seja ainda menor que a menor de todas as partículas subatômicas. Ainda assim ela ocupa um perímetro e ocupa algum lugar, que são noções espaciais. Se, por outro lado, pensarmos em um objeto que ocupe uma extensão infinita, ainda assim a ausência de limites é espacial. Se pensarmos em qualquer coisa estática, que nunca se mova, estamos situando essa imobilidade no tempo. Se pensarmos em um acontecimento instantâneo, estamos igualando um antes e um depois, o que é temporal, mesmo assim. Não há como pensarmos absolutamente nada que esteja fora do espaço e do tempo. Tente aí.

[Não arrisque falar que divindades estão fora do tempo e do espaço. Ainda que assim seja, os parâmetros são nossos, e mesmo que coloquemos os tais deuses na eternidade (noção temporal) e na onipresença (noção espacial), continuamos processando os tais deuses através de nossos escopo humano. Se eles existem, são igualmente incognoscíveis].

O mais curioso é que Kant não dá estatuto de absoluta realidade para a intuição pura. Não se trata de dizer que tempo e espaço sejam componentes indissociáveis da realidade em si mesma, mas como configurações da nossa percepção. Kant admitia que não há como saber se outros seres percebem a realidade de forma não temporal e não espacial, mas nós, humanos, temos essa forma de sensibilidade com relação ao universo: temos em nossa cognição componentes a priori que antecedem o próprio ato empírico, e somente inseridos neste gabarito eles fazem sentido no intelecto.

E é nesse ponto que Kant concilia o inatismo dos racionalistas com a tabula rasa dos empiristas. A parte originária de nós na relação é dada pelo espaço e pelo tempo, que já preexistem em nossa cognição, enquanto tudo o que vem de fora é absorvido pelos sentidos. A cadeia de conhecimento só é completa porque há uma estrutura a priori que possui a capacidade de receber os conteúdos a posteriori, que nos chega através do filtro dos sentidos. É inata toda a porção que depende do sujeito, é empírica a parte que cabe ao objeto.

E isso nos leva a uma conclusão que até poderia ser colocada nas feridas narcísicas, se científica fosse: não temos como conhecer a realidade como ela é, pelo simples fato de que os objetos inseridos no espaço e no tempo são a maneira como a qual percebemos a realidade, mas não há nada que assegure que a maneira como a qual uma barata apreende a mesma realidade seja mais próxima ou mais distante do que nosso pobre aparelho cognitivo consegue fazer. Não é decepcionante?

Mas, enfim, ainda que da forma fenomênica, nós temos uma forma de conhecimento e Kant também lidou com ela, mas vai ficar para outro momento, porque a coisa já está extensa. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livrinho, meus amiguinhos candidatos a filósofos, que não há como fugir. Muna-se de paciência e um bom tempo livre para interpretá-lo, e peça ajuda a um professor se tiver dificuldades, mas é essencial para a compreensão de toda a filosofia contemporânea.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

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