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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

O café filosófico do quotidiano – a lembrança dos velhos professores e a escala do conhecimento rumo ao amor

(Como podemos chegar ao significado do amor em si mesmo?)

“Ou não consideras que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando?”

Diotima de Mantineia

Olá!

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Sempre que se rememora o passado, costumamos fazer romantizações. Isso acontece por causa daquele velho filtro que nos faz trazer de volta preferencialmente as memórias boas, deixando de lado aquilo que nos incomoda. Eu, por exemplo, lembro com carinho dos dias de ver o sol nascendo por trás do morro da Rua Solidônio, que fazia as casinhas resplandecer seus telhados romanos e suas antenas de tevê, mas esqueço completamente do frio e do ódio que dava acordar às 06:00 para ir à escola, ou da correria de sair atrasado, ou do estresse de chegar à escola com uma tarefa atrasada. Tudo isso é meio sublimado, por mecanismos psíquicos que não cabem discutir aqui (mas que poderemos fazer em outro momento).

O mesmo se aplica, fartamente, ao café. Se você perguntar por aí, 99% das pessoas dirão, com voz embargada e lágrimas penduradas nos olhos, que a vozinha fazia o café em coadores de pano do tamanho de ceroulas, escoando o produto para dentro de bules de ágata já desgastados, e que ficavam fumegando e espalhando o aroma pela casa inteira. Isso pode ser verdade, mas fica escondido na gaveta da memória o fato do quão pouco prático era o método, e o quanto as boas velhinhas apreciariam se pudessem automatizar um mínimo esse processo todo.

Não deu tempo de aplicar à vecchia nonna mia, mas tanto minha mãe, quanto minha madrinha achavam essa história uma inútil caceteação, que incluía lavar sacos de pano cada vez mais fedidos, ocupar a boca do fogão com um bule pesado e quente, e ficar escoando aos poucos a água pelo pó enquanto os folgados homens da casa enchiam a cozinha com a fumaça de seus cigarros, muito menos poética que os vapores do café. E não ficaram nada tristes quando puderam ter uma bela cafeteira elétrica, equipada com filtros descartáveis e quantidade automática de água, caindo em um bule refratário de fácil asseio.

Apreciadores de café especial costumam olhar para esses aparelhos com desdém, dada a retirada de cuidados que só são possíveis com supervisão manual. Já expliquei um monte de vezes não se tratar de chatice ou pernosticismo puro e simples, mas de busca por um resultado final melhor. Eu não tenho cafeteira elétrica, por uma questão estética, mas o senhor meu sogro tem, e, nos dias em que vou na casa dele, é o método que tenho à disposição. Melhor com ele do que sem, vamos passar um cafezinho através da modernidade.

A cafeteira elétrica virou um daqueles eletrodomésticos obrigatórios, que constam na lista de qualquer casamento, em razão da facilidade no preparo. Não costuma combinar bem com cafés especiais, tendo em vista que seu funcionamento é todo automatizado: colocou o pó, colocou a água, colocou o bule e colocou o dedo no botão, o processo se inicia e presto. Aí as sutilezas dos bons grãos acabam indo para o vinagre.

Entretanto, há as suas vantagens, como já mencionei lá em cima. A facilidade de operação, a compactação do conjunto, a obtenção rápida do produto e o permanente aquecimento sempre podem ser alegados pelos consumidores que só querem ter um cafezinho à mão, ou, como meus falecidos parentes, precisam de litros prontos muitas vezes por dia.


Nome do utensílio: Cafeteira elétrica

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média/fina

Dinâmica: Alimenta-se o depósito de água com a quantidade total indicada para o volume desejado. Insere-se o pó em um filtro de papel do modelo da máquina utilizada (há modelos com filtro de nylon). Deita-se o bule sob o escoadouro e liga-se o aparelho. Como em geral há um prato de aquecimento, mantem-se o utensílio ligado até o consumo total do líquido. 

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média/alta

Nível de ritual: Baixo

Cheguei a pegar a cafeteira da falecida dona Magdalena, mas ela ficou encostada e ocupando espaço. Então mandei o aparelho para uma igreja perto de casa, onde terá melhor proveito. E ela foi para o fundo do quintal do esquecimento.

Em alguma dessas vezes que esperava escoar o café do sogrão, ouvi a mãe da patroa lhe falando sobre a morte de uma das professoras que davam aula na escola de sua infância. O tom de lamentação me tirou do fluxo de atenção para me colocar no meu habitual “plethoverso”, e me pus a recordar de muitos dos meus professores, como quem recordava dos cafés escoados no pano: Amélia, a primeira, e que depois veio a ser minha vizinha. As do primário: Néli, Yolanda, Marina, Neusa. Alguns do ginasial: Rosalina, Luiza, Osvaldo, Vera Lúcia, Catarina favorita da galera por suas calças justas, a hippie Marina, Messias que jogava um truquinho com a gente. No colegial - Nadeo, Irineu, Lalau, Nelson, Teka… Na faculdade, o vecchio Grecco, o ex-padre Jairo, o gigante Ricardo, o sofisticado Fábio… E forcei a cabeça, lembrando de mais ninguém. Que coisa.

Se você fizer o mesmo exercício, provavelmente o mesmo te acontecerá, ocasional leitor, bissexta leitora. A não ser que você que me lê esteja em pleno exercício acadêmico, a memória vai se esvaindo e somente os mais significativos vão ficando, pelos melhores ou piores motivos. O velho Messias, por exemplo, ao invés de nos mandar para a diretoria pelo truco em hora de aula, sentava-se para soltar seus discretíssimos gritos de ladrão. Já a Heidi de Cobol me botou suspensão porque escrevi um palavrão no código fonte do teste de login, um exagero que me custou três provas (e o óbvio custo da segunda chamada). E quanto aos demais, necas.

Normalmente fazemos grandes dedicatórias aos professores quando nos formamos, dentre lágrimas e músicas do Milton Nascimento, porque sabemos do esforço que os mestres nos tributaram, mas, como disse, isso passa rápido. Porém, mesmo com o esquecimento, o conhecimento fica lá, ainda que na forma de discreto tijolinho na construção total.

O fenômeno do conhecimento não fica adstrito aos reles mortais, como nós. Também os grandes mestres tiveram os seus professores, porque o completo autodidatismo é muito raro. Claro que uma educação formal ampla é algo relativamente recente, e esse modelo de educação era bem distinto no passado, atingindo pouca gente e mais reservado a pequenos grupos, quando não a uma única pessoa, o tal do preceptor. Alguns chegaram a ficar famosos, como Aristóteles em relação a Alexandre Magno, ou Lêucipo com o fedelho Demócrito, mas a verdade é que a grande maioria teve seu nome perdido no tempo.

Isso pode provocar algumas injustiças, porque várias das intervenções desses professores têm influência significativa na formação do pensamento de grandes mestres, e hoje quero exemplificar com um caso célebre, mas que não resultou em relevo para seu emissor. Será que é porque se trata de uma mulher na antiguidade clássica? Talvez. Vamos falar de Diotima de Mantineia, professora de ninguém menos que Sócrates.

Essa sacerdotisa e pensadora aparece no Banquete (Simposium) de Platão, pela boca do próprio Sócrates, que se coloca no papel passivo de investigado que ele mesmo costuma aplicar no seu método maiêutico. Não se sabe ao certo se é uma figura real ou uma personagem metafórica, mas dado o caráter pouco favorável às mulheres da cultura grega de então, é de se supor que, ainda que o fato não tenha ocorrido ipsis litteris, tenha seu fundamento real.

O contexto em que Sócrates recorda dos ensinamentos recebidos de Diotima é o questionamento sobre o amor ocorrido durante o célebre banquete. Mas, antes de ir a ele, vou dar uma passeada rápida pela teoria das formas de Platão, porque uma está intimamente ligada a outra.

Observe o mundo ao seu redor. Eu, por exemplo, estou na minha cozinha agora, e olho para a mesa, e vejo que seu tampo é retangular. Olho para um copo e percebo que ele é cilíndrico, assim como a caixa de bombons que não posso comer é cúbica. Ora, essas características tornam alguns objetos semelhantes a outros, mas sempre é possível verificar que, entre eles, essa coisa em comum é redutível à perfeição. Por exemplo: a barra de manteiga, a caixa de chá e o sabão em pó têm o mesmo formato de paralelepípedo de uma peça de macadame. Só que, olhados na lupa, é só uma semelhança, já que nenhum passa por um mero teste de régua. Eles têm essa forma, mas o paralelepípedo perfeito só há geometria, ramo da matemática destinada às medidas. E a matemática não é algo que desfila nas ruas em suas fórmulas, mas na concreção dos objetos, todos eles imperfeitos, mesmo a melhor de suas representações, como um traçado técnico em uma prancheta – trouxe para o mundo sensível, trouxe defeito. Sendo assim, concluímos que a perfeição não existe no plano perceptível pela sensibilidade, mas neste espaço racional administrado pelo intelecto.

A questão é que é mais simples de se entender a teoria das formas pela via de objetos palpáveis, mas ela é bem mais profunda, tendo como premissa que abstrações também partem de um modelo de perfeição para aplicações da vida prática. Por exemplo, temos uma forma de justiça perfeita, que, uma vez colocada nas situações mundanas, não se aplica por inteiro. Coragem, altivez, rapidez de raciocínio, misericórdia e tantos outros significados abstratos são como cilindros e esferas: também possuem formas perfeitas que se plasmam imperfeitamente no mundo concreto. Assim é com toda gama de sentimentos e emoções, incluindo o amor.

Nossa limitação em perceber as coisas em si mesmas tem relação com a famosa alegoria da caverna, onde Platão compara nossa capacidade de perceber as ideias imutáveis como sombras projetadas na parede: imperfeitas, indefinidas, obnubiladas, sujeitas à mutabilidade própria de uma visão distorcida. Entretanto, essas sombras são o início do contato que temos com a perfeição das ideias, porque, mesmo assim sendo, elas contêm em si algo do seria o objeto perfeito, e participam das formas reconhecíveis pela razão.

Esse processo de associação dos objetos com suas formas se dá na forma de reminiscência. No entendimento de Platão, sabemos reconhecer um objeto como sendo o que é porque temos suas formas essenciais registradas em nosso intelecto, e isso acontece porque resgatamos essa forma original e a moldamos no objeto coletado pelos sentidos. Ainda que de forma imperfeita, os sentidos captam a essência gravada no mundo das ideias, ou seja, a forma perfeita.

O ensinamento de Diotima está relacionado a isso. A premissa fundamental é que temos a sensibilidade para adquirir o mundo, e a intelecção, embora possa atingir maiores níveis de conhecimento, precisa do arcabouço sensível para iniciar a escalada racional, e isso se faz através dos impulsos mais basilares, mais próximos da animalidade. Fundamentalmente, Diotima entende que a busca do amor se identifica com a busca pelo belo, e que isso não se faz com uma conexão direta, mas em um caminho que se sobe por degraus, a cada passo se conectando um pouco mais com a forma perfeita. Por isso, essa tese ficou conhecida como scala amoris, ou seja, escada do amor.

É um nome bonitinho, e parece aqueles filmes da Sessão da Tarde, onde uma turma do barulho causa as maiores confusões para ajudar o jovenzinho apaixonado a conquistar a namorada que não liga para ele, mas a realidade nada tem a ver com isso, pertencendo ao peculiar olhar epistemológico platônico. O mundo da sensibilidade é a porta de entrada para o universo intelectivo, então é através dele que pegamos o degrau mais baixo da escala do conhecimento.

No caso do amor, esse primeiro patamar se dá quando observamos um corpo e dele percebemos a sua beleza. O exemplo mais raso que eu posso dar é do rapazinho que acompanha o molejo sensual da garota que passa pela rua. Esse é um olhar erótico mesmo, mais basilar, cheio de segundas, terceiras e quartas intenções, porque, embora todo distante da perfeição do amor, está prenhe de sua semeadura, e, como se atribui a Confúcio, a maior de todas as caminhadas começou pelo primeiro passo. Ao estender seu olhar para um segundo corpo, também ali será encontrada a beleza e assim por diante, de forma a se compreender que ela não é exclusividade de um só corpo, mas que aquela que está em um é irmã da que está em outro, tem sua mesma natureza. Já aqui é possível abandonar as paixões implacáveis e possessivas por um único corpo belo. O próximo degrau está no reconhecimento de que, para além dos corpos, a beleza se encontra de forma ainda mais aperfeiçoada nas almas.  E por quê? Porque, ao contrário dos corpos, as almas são eternas e, desta forma, estão mais próximas à perfeição do que estes últimos. Sendo assim, reconhecer a beleza contida nas almas significa ter contato com a beleza perene, e não com a transitória existente nos corpos.

Sobe-se um pouco mais para contemplar o principal produto das almas: as suas ideias. O laboratório humano e seus ofícios, as suas leis e, finalmente, sua capacidade de obter ciência derivam diretamente da beleza que há na intrincada realidade que rodeiam corpos e almas. Isso conduz a outra instância da beleza: as reflexões e os discursos consequentes. O que produz a beleza da sabedoria é o amor que se tem por ela. Esse é o ponto em que se verá que a beleza que se vê no intelectual é muito superior que a beleza que se vê no físico, e, aparentada do amor, estar em seus fundamentos.

Por fim, passadas todas essas etapas, o sábio poderia se defrontar com aquela beleza divina, do belo pelo belo, do belo em si mesmo, o Belo com letra maiúscula, despido de todas as circunstâncias da sensibilidade, partilhado com o próprio divino. Esse é o belo de quem subiu a ladeira da caverna e não vê mais sombras, mas que conhece de fato uma perfeita da beleza contida no mundo das ideias, assim como alcança o círculo perfeito da matemática. Está no topo da scala amoris, e conhece o amor em si mesmo.

Como eu já disse, a existência de Diotima de Mantineia é incerta. Se o próprio Sócrates já é objeto de discussão, uma sacerdotisa cuja única fonte histórica é o Simposium fica ainda mais com os parênteses em aberto. Torna-se importante na medida em que se procura, hoje em dia, trazer a claro a importância nunca dada às mulheres na Filosofia, mas obviamente se ela é uma pessoa de carne e osso, se é uma personagem criada para servir de escada a uma tese, se ela existiu, mas não o diálogo em si, pouco importa. Já aqui temos um exemplo do que Platão dizia quando a busca pelas essências deve prescindir do corpóreo: o que importa é, neste caso, a ideia em si mesma.

Sendo assim, bom é que apuremos nossas recordações, porque isso faz dar importância real aos nossos professores, ao lugar das mulheres no conhecimento e que românticos sacos de coar são agradáveis para quem bebe o café, e não para quem o faz. Uma maquininha, às vezes, não é um mal negócio quando gostamos de nossas avós. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Já citei o Simposium outras vezes, mas vale fazer de novo:

PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2015.



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