(Como podemos chegar ao significado do amor em si mesmo?)
“Ou não consideras que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando?”
Diotima de Mantineia
Olá!
Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra
Sempre que se rememora o passado, costumamos fazer
romantizações. Isso acontece por causa daquele velho filtro que nos faz trazer
de volta preferencialmente as memórias boas, deixando de lado aquilo que nos
incomoda. Eu, por exemplo, lembro com carinho dos dias de ver o sol nascendo
por trás do morro da Rua Solidônio, que fazia as casinhas resplandecer seus
telhados romanos e suas antenas de tevê, mas esqueço completamente do frio e do
ódio que dava acordar às 06:00 para ir à escola, ou da correria de sair atrasado,
ou do estresse de chegar à escola com uma tarefa atrasada. Tudo isso é meio
sublimado, por mecanismos psíquicos que não cabem discutir aqui (mas que
poderemos fazer em outro momento).
O mesmo se aplica, fartamente, ao café. Se você perguntar
por aí, 99% das pessoas dirão, com voz embargada e lágrimas penduradas nos
olhos, que a vozinha fazia o café em coadores de pano do tamanho de ceroulas,
escoando o produto para dentro de bules de ágata já desgastados, e que ficavam
fumegando e espalhando o aroma pela casa inteira. Isso pode ser verdade, mas
fica escondido na gaveta da memória o fato do quão pouco prático era o método,
e o quanto as boas velhinhas apreciariam se pudessem automatizar um mínimo esse
processo todo.
Não deu tempo de aplicar à vecchia nonna mia, mas
tanto minha mãe, quanto minha madrinha achavam essa história uma inútil
caceteação, que incluía lavar sacos de pano cada vez mais fedidos, ocupar a
boca do fogão com um bule pesado e quente, e ficar escoando aos poucos a água
pelo pó enquanto os folgados homens da casa enchiam a cozinha com a fumaça de
seus cigarros, muito menos poética que os vapores do café. E não ficaram nada
tristes quando puderam ter uma bela cafeteira elétrica, equipada com filtros
descartáveis e quantidade automática de água, caindo em um bule refratário de
fácil asseio.
Apreciadores de café especial costumam olhar para esses
aparelhos com desdém, dada a retirada de cuidados que só são possíveis com
supervisão manual. Já expliquei um monte de vezes não se tratar de chatice ou
pernosticismo puro e simples, mas de busca por um resultado final melhor. Eu
não tenho cafeteira elétrica, por uma questão estética, mas o senhor meu sogro
tem, e, nos dias em que vou na casa dele, é o método que tenho à disposição.
Melhor com ele do que sem, vamos passar um cafezinho através da modernidade.
A cafeteira elétrica virou um daqueles eletrodomésticos
obrigatórios, que constam na lista de qualquer casamento, em razão da
facilidade no preparo. Não costuma combinar bem com cafés especiais, tendo em
vista que seu funcionamento é todo automatizado: colocou o pó, colocou a água,
colocou o bule e colocou o dedo no botão, o processo se inicia e presto. Aí as
sutilezas dos bons grãos acabam indo para o vinagre.
Entretanto, há as suas vantagens, como já mencionei lá em
cima. A facilidade de operação, a compactação do conjunto, a obtenção rápida do
produto e o permanente aquecimento sempre podem ser alegados pelos consumidores
que só querem ter um cafezinho à mão, ou, como meus falecidos parentes,
precisam de litros prontos muitas vezes por dia.
Nome do utensílio: Cafeteira elétrica
Tipo de técnica: percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Média/fina
Dinâmica: Alimenta-se o depósito de água com a quantidade total indicada para o volume desejado. Insere-se o pó em um filtro de papel do modelo da máquina utilizada (há modelos com filtro de nylon). Deita-se o bule sob o escoadouro e liga-se o aparelho. Como em geral há um prato de aquecimento, mantem-se o utensílio ligado até o consumo total do líquido.
Resíduos: Baixos
Temperatura de saída: Média/alta
Nível de ritual: Baixo
Cheguei a pegar a cafeteira da falecida dona Magdalena, mas ela ficou encostada e ocupando espaço. Então mandei o aparelho para uma igreja perto de casa, onde terá melhor proveito. E ela foi para o fundo do quintal do esquecimento.
Em alguma dessas vezes que esperava escoar o café do sogrão,
ouvi a mãe da patroa lhe falando sobre a morte de uma das professoras que davam
aula na escola de sua infância. O tom de lamentação me tirou do fluxo de
atenção para me colocar no meu habitual “plethoverso”, e me pus a recordar de
muitos dos meus professores, como quem recordava dos cafés escoados no pano:
Amélia, a primeira, e que depois veio a ser minha vizinha. As do primário:
Néli, Yolanda, Marina, Neusa. Alguns do ginasial: Rosalina, Luiza, Osvaldo,
Vera Lúcia, Catarina favorita da galera por suas calças justas, a hippie
Marina, Messias que jogava um truquinho com a gente. No colegial - Nadeo,
Irineu, Lalau, Nelson, Teka… Na faculdade, o vecchio Grecco, o ex-padre
Jairo, o gigante Ricardo, o sofisticado Fábio… E forcei a cabeça, lembrando de
mais ninguém. Que coisa.
Se você fizer o mesmo exercício, provavelmente o mesmo te
acontecerá, ocasional leitor, bissexta leitora. A não ser que você que me lê
esteja em pleno exercício acadêmico, a memória vai se esvaindo e somente os
mais significativos vão ficando, pelos melhores ou piores motivos. O velho
Messias, por exemplo, ao invés de nos mandar para a diretoria pelo truco em
hora de aula, sentava-se para soltar seus discretíssimos gritos de ladrão. Já a
Heidi de Cobol me botou suspensão porque escrevi um palavrão no código fonte do
teste de login, um exagero que me custou três provas (e o óbvio custo da
segunda chamada). E quanto aos demais, necas.
Normalmente fazemos grandes dedicatórias aos professores
quando nos formamos, dentre lágrimas e músicas do Milton Nascimento, porque
sabemos do esforço que os mestres nos tributaram, mas, como disse, isso passa
rápido. Porém, mesmo com o esquecimento, o conhecimento fica lá, ainda que na
forma de discreto tijolinho na construção total.
O fenômeno do conhecimento não fica adstrito aos reles
mortais, como nós. Também os grandes mestres tiveram os seus professores,
porque o completo autodidatismo é muito raro. Claro que uma educação formal
ampla é algo relativamente recente, e esse modelo de educação era bem distinto
no passado, atingindo pouca gente e mais reservado a pequenos grupos, quando
não a uma única pessoa, o tal do preceptor. Alguns chegaram a ficar famosos,
como Aristóteles em relação a Alexandre Magno, ou Lêucipo
com o fedelho Demócrito, mas a verdade é que a grande maioria teve seu nome
perdido no tempo.
Isso pode provocar algumas injustiças, porque várias das
intervenções desses professores têm influência significativa na formação do
pensamento de grandes mestres, e hoje quero exemplificar com um caso célebre,
mas que não resultou em relevo para seu emissor. Será que é porque se trata de
uma mulher na antiguidade clássica? Talvez. Vamos falar de Diotima de
Mantineia, professora de ninguém menos que Sócrates.
Essa sacerdotisa e pensadora aparece no Banquete (Simposium)
de Platão, pela boca do próprio Sócrates, que se coloca no papel passivo de
investigado que ele mesmo costuma aplicar no seu método
maiêutico. Não se sabe ao certo se é uma figura real ou uma personagem
metafórica, mas dado o caráter pouco favorável às mulheres da cultura grega de
então, é de se supor que, ainda que o fato não tenha ocorrido ipsis litteris,
tenha seu fundamento real.
O contexto em que Sócrates recorda dos ensinamentos
recebidos de Diotima é o questionamento sobre o amor ocorrido durante o célebre
banquete. Mas, antes de ir a ele, vou dar uma passeada rápida pela teoria das
formas de Platão, porque uma está intimamente ligada a outra.
Observe o mundo ao seu redor. Eu, por exemplo, estou na
minha cozinha agora, e olho para a mesa, e vejo que seu tampo é retangular.
Olho para um copo e percebo que ele é cilíndrico, assim como a caixa de bombons
que não posso comer é cúbica. Ora, essas características tornam alguns objetos
semelhantes a outros, mas sempre é possível verificar que, entre eles, essa
coisa em comum é redutível à perfeição. Por exemplo: a barra de manteiga, a
caixa de chá e o sabão em pó têm o mesmo formato de paralelepípedo de uma peça
de macadame. Só que, olhados na lupa, é só uma semelhança, já que nenhum passa
por um mero teste de régua. Eles têm essa forma, mas o paralelepípedo perfeito
só há geometria, ramo da matemática destinada às medidas. E a matemática não é
algo que desfila nas ruas em suas fórmulas, mas na concreção dos objetos, todos
eles imperfeitos, mesmo a melhor de suas representações, como um traçado
técnico em uma prancheta – trouxe para o mundo sensível, trouxe defeito. Sendo
assim, concluímos que a perfeição não existe no plano perceptível pela
sensibilidade, mas neste espaço racional administrado pelo intelecto.
A questão é que é mais simples de se entender a teoria das
formas pela via de objetos palpáveis, mas ela é bem mais profunda, tendo como
premissa que abstrações também partem de um modelo de perfeição para aplicações
da vida prática. Por exemplo, temos uma forma de justiça perfeita, que, uma vez
colocada nas situações mundanas, não se aplica por inteiro. Coragem, altivez,
rapidez de raciocínio, misericórdia e tantos outros significados abstratos
são como cilindros e esferas: também possuem formas perfeitas que se plasmam imperfeitamente
no mundo concreto. Assim é com toda gama de sentimentos e emoções, incluindo o
amor.
Nossa limitação em perceber as coisas em si mesmas tem
relação com a famosa alegoria
da caverna, onde Platão compara nossa capacidade de perceber as ideias
imutáveis como sombras projetadas na parede: imperfeitas, indefinidas, obnubiladas,
sujeitas à mutabilidade própria de uma visão distorcida. Entretanto, essas
sombras são o início do contato que temos com a perfeição das ideias, porque,
mesmo assim sendo, elas contêm em si algo do seria o objeto perfeito, e
participam das formas reconhecíveis pela razão.
Esse processo de associação dos objetos com suas formas se
dá na forma de reminiscência. No entendimento de Platão, sabemos reconhecer um
objeto como sendo o que é porque temos suas formas essenciais registradas em
nosso intelecto, e isso acontece porque resgatamos essa forma original e a
moldamos no objeto coletado pelos sentidos. Ainda que de forma imperfeita, os
sentidos captam a essência gravada no mundo das ideias, ou seja, a forma
perfeita.
O ensinamento de Diotima está relacionado a isso. A premissa
fundamental é que temos a sensibilidade para adquirir o mundo, e a intelecção,
embora possa atingir maiores níveis de conhecimento, precisa do arcabouço
sensível para iniciar a escalada racional, e isso se faz através dos impulsos
mais basilares, mais próximos da animalidade. Fundamentalmente, Diotima entende
que a busca do amor se identifica com a busca pelo belo, e que isso não se faz
com uma conexão direta, mas em um caminho que se sobe por degraus, a cada passo
se conectando um pouco mais com a forma perfeita. Por isso, essa tese ficou
conhecida como scala amoris, ou seja, escada do amor.
É um nome bonitinho, e parece aqueles filmes da Sessão da Tarde,
onde uma turma do barulho causa as maiores confusões para ajudar o jovenzinho
apaixonado a conquistar a namorada que não liga para ele, mas a realidade nada tem
a ver com isso, pertencendo ao peculiar olhar epistemológico platônico. O mundo
da sensibilidade é a porta de entrada para o universo intelectivo, então é
através dele que pegamos o degrau mais baixo da escala do conhecimento.
No caso do amor, esse primeiro patamar se dá quando
observamos um corpo e dele percebemos a sua beleza. O exemplo mais raso que eu
posso dar é do rapazinho que acompanha o molejo sensual da garota que passa
pela rua. Esse é um olhar erótico mesmo, mais basilar, cheio de segundas,
terceiras e quartas intenções, porque, embora todo distante da perfeição do
amor, está prenhe de sua semeadura, e, como se atribui a Confúcio, a maior de
todas as caminhadas começou pelo primeiro passo. Ao estender seu olhar para um
segundo corpo, também ali será encontrada a beleza e assim por diante, de forma
a se compreender que ela não é exclusividade de um só corpo, mas que aquela que
está em um é irmã da que está em outro, tem sua mesma natureza. Já aqui é
possível abandonar as paixões implacáveis e possessivas por um único corpo
belo. O próximo degrau está no reconhecimento de que, para além dos corpos, a
beleza se encontra de forma ainda mais aperfeiçoada nas almas. E por quê?
Porque, ao contrário dos corpos, as almas são eternas e, desta forma, estão
mais próximas à perfeição do que estes últimos. Sendo assim, reconhecer a
beleza contida nas almas significa ter contato com a beleza perene, e não com a
transitória existente nos corpos.
Sobe-se um pouco mais para contemplar o principal produto
das almas: as suas ideias. O laboratório humano e seus ofícios, as suas leis e,
finalmente, sua capacidade de obter ciência derivam diretamente da beleza que
há na intrincada realidade que rodeiam corpos e almas. Isso conduz a outra
instância da beleza: as reflexões e os discursos consequentes. O que produz a
beleza da sabedoria é o amor que se tem por ela. Esse é o ponto em que se verá
que a beleza que se vê no intelectual é muito superior que a beleza que se vê
no físico, e, aparentada do amor, estar em seus fundamentos.
Por fim, passadas todas essas etapas, o sábio poderia se
defrontar com aquela beleza divina, do belo pelo belo, do belo em si mesmo, o
Belo com letra maiúscula, despido de todas as circunstâncias da sensibilidade,
partilhado com o próprio divino. Esse é o belo de quem subiu a ladeira da
caverna e não vê mais sombras, mas que conhece de fato uma perfeita da beleza
contida no mundo das ideias, assim como alcança o círculo perfeito da
matemática. Está no topo da scala amoris, e conhece o amor em si mesmo.
Como eu já disse, a existência de Diotima de Mantineia é
incerta. Se o próprio Sócrates já é objeto de discussão, uma sacerdotisa cuja
única fonte histórica é o Simposium fica ainda mais com os parênteses em
aberto. Torna-se importante na medida em que se procura, hoje em dia, trazer a
claro a importância nunca dada às mulheres na Filosofia, mas obviamente se ela
é uma pessoa de carne e osso, se é uma personagem criada para servir de escada
a uma tese, se ela existiu, mas não o diálogo em si, pouco importa. Já aqui
temos um exemplo do que Platão dizia quando a busca pelas essências deve
prescindir do corpóreo: o que importa é, neste caso, a ideia em si mesma.
Sendo assim, bom é que apuremos nossas recordações, porque
isso faz dar importância real aos nossos professores, ao lugar das mulheres no
conhecimento e que românticos sacos de coar são agradáveis para quem bebe o
café, e não para quem o faz. Uma maquininha, às vezes, não é um mal negócio
quando gostamos de nossas avós. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Já citei o Simposium outras vezes, mas vale fazer de novo:
PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Martin
Claret, 2015.



Nenhum comentário:
Postar um comentário