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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Navegações de cabotagem - o Parque Tanguá de Curitiba e a Alegoria da Caverna colocada em contexto

(Vamos jogar a preguiça fora e contextualizar melhor a Alegoria da Caverna).

"A definição mais precisa que temos da Filosofia ocidental é a de que ela não passa de uma sucessão de notas de rodapé da obra de Platão " - Alfred Whitehead

Olá!

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Conforme falei no meu último texto sobre Curitiba, ela é uma cidade que se caracteriza pela presença do verde. Isso significa que, para dar presença diária na vida das pessoas, um parque tem que estar integrado ao bairro onde se localiza, sem a necessidade de ser grande e mirabolante. Mas não há necessidade que não existam espaços maiores, mais exuberantes, e estes também existem nesta casa, e são bastante interessantes e inspiradores. É o caso do Parque Tanguá, e vou pincelar um pouco sobre ele hoje.

Localizado originalmente em uma área degradada da cidade, onde existiam pedreiras, o Tanguá é um projeto que funde recuperação da flora original e diversidade paisagística, na melhor tradição dos jardins botânicos, desde a sua entrada.

Um mero detalhe curioso: bem na entrada do parque havia um lindo carrossel veneziano, daqueles à moda antiga, com música circense e repleto de espelhos e gravuras.


Um jardim de estilo francês é a principal marca da parte superior do conjunto arquitetônico. Ele homenageia um artista curitibano de renome internacional, Napoleon Potyguara Lazzarotto, mais conhecido simplesmente por Poty, cujas principais obras foram as gravuras dos livros de Dalton Trevisan, outro curitibano ilustre.

Como ainda era época de Natal, havia uma grande árvore cônica após a passagem do espelho d’água, e o tempo fechado permitiu que ela fosse acesa mais cedo do que o normal. Esta árvore fazia parte do circuito da Prefeitura local, que as espalhou por toda a cidade.


O parque é caracterizado por um grande desnível geográfico. Do belvedére, emergem plataformas que permitem avançar sobre o abismo que há entre a parte alta e o baixio.


Mais alto ainda ficam as torres do mirante, de onde é possível ver não somente todo o parque, mas uma boa parte da cidade de Curitiba.


Na medida do possível, o reflorestamento com a flora original permitiu que a bacia norte do rio Barigui fosse novamente protegida, além de resguardar alguns dos exemplares mais intrínsecos do Paraná, as araucárias.


Embora o cuidado paisagístico envolva a manutenção das formas originais, muita coisa está banhada pela mão humana, que tem um duplo viés: a negatividade da destruição imponderada e a vontade de recuperá-la. Há bastante coisa que saiu do eixo pela ação humana, e que só voltou por ela também.


O resultado é belíssimo, com uma cascata de quase setenta metros que parte do belvedére, melhor observada pelo bistrô que serve a carne de onça, prato típico de Curitiba.


Na flor da água, há um túnel escavado na rocha, que liga os dois flancos da lagoa.

Ele tem algo em torno de 50 metros e dá uma virada visual no parque, podendo ser acessado através de um deck de madeira que parte das proximidades do estacionamento.


Túnel e caverna são coisas semelhantes, com a diferença nada sutil de que um tem saída, enquanto o outro, não necessariamente. E como um remete ao outro, é difícil não lembrar de um vendo o outro. Por conta disso, quem milita na área de filosofia vê um retrato desses e imediatamente se sente remetido à Alegoria da Caverna de Platão.

Ora, essa é, na verdade, uma dívida da dívida que eu tenho com vocês, meus bissextos leitores. Tempos atrás, havia admitido que eu estava em falta com a audiência por tardar em falar sobre a alegoria da caverna, e acabei redigindo a peça que vocês podem ler aqui, e recomendo que o façam, por amor à concatenação lógica. O grande problema é que, embora o texto baste em si mesmo, fica no ar uma pergunta importante de ser respondida: o que Platão queria responder com essa metáfora? A alegoria da caverna prima muito por seu aspecto epistemológico, que é o mais usado por professores para fazer ilustrações aos seus estudantes, mas há todo um conjunto de circunstâncias que leva Platão a construí-la e que passa pela Filosofia da Educação e, especialmente, pela Política. Vamos destrinchar.

A alegoria da caverna está inscrita na obra “A República”. Embora o tal mito seja sua passagem mais célebre, há um pano de fundo mais abrangente a lhe costear, que é o conceito de justiça. De acordo com o hábito platônico, ele coloca o protagonista Sócrates a desfiar sua maiêutica, o método dialético que consiste em colocar em xeque um conhecimento preestabelecido e fazer surgir dele uma nova ideia (falo mais sobre o tema neste texto).

A obra está na conhecidíssima forma de diálogo*, onde um dos interlocutores sempre é Sócrates, e que debate com jovens, velhos, doutos e simples. A fórmula é aquela da maiêutica: uma pessoa possui uma firme opinião formada, e atribui a ela valor de verdade. Quando defrontada pelas oposições socráticas, começa a claudicar - será expressão de conhecimento, ou não passa de doxa, a boa e velha opinião, tão sujeita a erros? No caso da justiça, entre os diversos interlocutores, vários argumentos são apresentados para lhe dar fundamento:

·         Dar a cada um o que lhe pertence;

·         Fazer bem aos amigos e mal aos inimigos;

·         A conveniência do mais forte;

·         Ser injusto, mas parecer justo (utilidade).

Sócrates refuta cada uma dessas definições colocando-as em condição absurda, como tanto gostava de fazer. Ao fazê-lo, conduz o roteiro para a extensão da justiça do homem para a sociedade, porque é nela que está em ponto maior, e aí começa a construção de sua teoria sobre o estado ideal. Fundamentalmente, este seria dividido em três classes, articuladas entre si para o perfeito funcionamento do todo: os artesãos, os guerreiros e os guardiães. Aos primeiros, caberia o trabalho mais básico: a obtenção de alimentos, confecção de vestimentas, construção de habitações e tudo o mais que demandasse um ofício com um mínimo de especialização, obtido por aprendizado e vivência; aos guerreiros, obviamente, caberia a proteção do território, brando no trato interior, animoso contra o inimigo. Aos guardiães, caberá o governo da cidade, incluindo, naturalmente, a distribuição da justiça em um plano mais alongado, menos baseado nos indivíduos, mais no benefício à sociedade como um todo. É de se notar como a noção de justiça como virtude do indivíduo vai se estendendo a um ponto mais institucional, assemelhado à função judiciária como conhecemos em um estado constituído.

Essa extensão do conceito de justiça como virtude leva a uma comparação entre o funcionamento do estado e da alma. Cada cidadão deverá ser guiado por sua aptidão para exercer sua função social, da mesma forma que há diferentes funções no espírito : há uma porção racional que tem a função de conduzir e equilibrar as ações do indivíduo, um aspecto volitivo que impulsiona os apetites e desejos, e uma parte do ímpeto, que leva à ação em si. Quando essas três partes atuam harmonicamente, todo o organismo ganha, porque nem será incontroladamente impetuoso, nem se resguardará de qualquer ação, nem se dominará unicamente pelas vontades. Aplicada à sociedade, essa regra traz o melhor conceito de justiça: a harmonia entre as diferentes classes da cidade.

Daí, surgem dificuldades. Para que o guardião exerça efetivamente a justiça, é preciso que receba educação apropriada e que não possua bens próprios, maior corruptor de virtudes conhecido. Toda a classe dirigente deve comungar de bens comuns de acordo com a necessidade da classe, e não do indivíduo. Nesse condão, também não deve constituir família, para que não aja no interesse de seus descendentes. Plasmando para a atualidade, vejam como os governantes ocupam uma residência oficial unicamente pelo período em que exercerem seus mandatos, e como há leis impedindo a prática do nepotismo**. Além disso, tanto no corpo dirigente, quanto mesmo no exército, não deverá haver distinção entre homens e mulheres. Na guerra e na política, não há argumentos sustentáveis para estabelecer qualquer tipo de distinção que coloque um ou outro gênero como mais capacitado. E, por último, mas não em último, Platão estabelece que a virtude da justiça somente poderá ser distribuída na pólis quando os reis se tornarem filósofos, e os filósofos se tornarem reis.

Ser filósofo, no caso, não é uma tentativa de privilégio de classe que Sócrates sugere, mas que os basileus tenham a capacidade de ser virtuosos no sentido mais necessário: para ser justo no mais perfeito grau, é preciso saber reconhecer a máxima virtude - o Bem. O Bem, agora com inicial maiúscula, é uma espécie de gabarito que guia todas as demais virtudes: só é virtuosa a justiça calcada no bem; só é virtuosa a caridade calcada no bem; só é virtuosa a beleza calcada no bem. Ou seja, não há como fugir do conhecimento. Para se compreender o que é o Bem, é preciso escalar das experiências obtidas no mundo até que se chegue ao perfeito conceito de Bem.

Precisamos aqui discorrer rapidamente sobre a teoria epistemológica platônica, embora eu já tenho falado sobre ela diversas vezes neste espaço. Platão fala em uma divisão entre mundo sensível e mundo inteligível, sendo que o primeiro é captado pelos sentidos, enquanto o outro é acessado unicamente pelo intelecto. Em um exemplo, nossos olhos percebem o Sol como uma bolinha que cabe entre os dedos. Entretanto, ainda que sem grandes instrumentações, é possível fazer associações com outras fontes luminosas e perceber que ele é muito maior. Tomemos uma vela, por exemplo. Embora seja ínfima, consegue iluminar um cômodo de modo que não tropecemos nos móveis. Sua chama também cabe no espaço entre os dedos, e quanto mais longe, menos eficaz é. Ela ilumina muito menos que o Sol, que traz luz para meia Terra pelo dia inteiro. A inferência é simples: o Sol é muito maior do que meus sentidos captam. E isso eu deduzi utilizando apenas processos mentais.

Se eu faço isso para reconhecer que o Sol não é o que aparenta ser, o filósofo-rei precisa ter o mesmo discernimento para reconhecer o bem, que deve ser seu principal objeto de saber. É preciso escapar das aparências dos sentidos e das convenções sociais, para escalar dialeticamente pela cadeia intelectual que leva a um governo justo. 

Para que seja possível trazer ilustrações à sua tese, Sócrates/Platão tecem três símiles, hipóteses ilustrativas que se tornaram célebres. O primeiro é a Analogia do Sol, que é usada para ilustrar como o bem possui uma hierarquia superior às demais ideias e lhes dá sustentação. O sol é primordial para que se permita ao homem ver e ser visto. Como o nosso sensório visual é o mais expressivo de todos, ao menos para a espécie humana, sem que o Sol exista não há uma fonte para que se percebam todas as coisas do mundo. Assim como é o Sol para o universo sensível, é também o Bem para o universo inteligível. O Bem é a condição que dá virtudes ao conhecimento, porque faz parte do Bem que o conhecimento seja verdadeiro, que a ação seja ética ou que a sensação seja bela. 

Caminhando mais um pouco, vamos chegar ao exercício mental da Linha Dividida. Sócrates propõe que se imagine uma linha reta, e que esta seja dividida em duas partes desiguais, sendo que a primeira seria menor que a segunda. Depois, repetir-se-ia a mesma operação em cada uma das seções, de modo a se obter quatro pedaços, do menor para o maior. Esse tamanho progressivo corresponderia à capacidade de cada um carregar verdade. Os dois primeiros segmentos estariam no campo do sensível, enquanto os dois últimos estariam na senda do inteligível.  Do mundo visível, teríamos as imagens das coisas e as próprias coisas. Já na esfera inteligível, teríamos o discurso que traduz a natureza e a inteléquia pura. Imagem, opinião, razão discursiva e intelecção. Em grego, eikasia, pistis, dianoia e noesis.


O terceiro símile é a Alegoria da Caverna, que traz a fusão das duas construções anteriores e ainda acrescenta uma espécie de conduta ao filósofo-rei. O prisioneiro que se liberta não é somente aquele que procura a verdade, mas aquele que a usa para trazer o Bem em retorno à polis, mesmo que isso possa custar sua integridade física, e aqui tudo está unido: a metafísica do mundo das ideias, a gnosiologia do descompasso entre aparência e essência, a ética da distinção do bem e de sua distribuição à polis, tudo amarrado pela estética da metáfora, para desembocar em uma conclusão política.

Mais adiante, Platão comentará sobre a degeneração das formas de governo e sobre o mito de Er, mas, como eu já tenho outros textos engatilhados para tratar desses dois temas, vou deixar para esse momento. Até mesmo porque entendo que, desta vez, consegui cumprir a missão de contextualizar a Alegoria da Caverna devidamente, como deve ser feito, sem indolência, nem incompletude.

E o Parque Tanguá com tudo isso? Ele dá o exemplo de que um túnel dá aparência de caverna, e dessa imagem, tão nos primórdios do conceito platônico de conhecimento, é que obtemos um caminho sistêmico para a chegada ao saber que até hoje traz influências no pensamento geral. Bons ventos a todos!

Recomendações:

A República é uma obra tão fundante da Filosofia como um todo que não posso deixar de repetir sua recomendação. Procurem pelas indicações que fiz nos meus posts indicados, mas também vou deixar aqui uma versão online pesquisável, para fica ainda mais fácil:

PLATÃO. A República. Da Justiça. Disponível em http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf .  Acesso em 22.10.2022.

E este é o endereço do Parque Tanguá:

Parque Municipal Tanguá
Rua Oswaldo Maciel
Taboão
Curitiba/PR
A aproximadamente 400km do centro de São Paulo

*Conhecidíssima hoje, bem entendido. Na época, a abordagem, apesar de comum, era uma criação razoavelmente original.

** Se funcionam ou não, são outros quinhentos.

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