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terça-feira, 30 de dezembro de 2025

O estoicismo que nos resta quando achamos o tempo breve demais

(As coisas acabam, é assim que a vida é. Nada de crises com isso)

“Quanto é tardio começar a viver só quando é hora de terminar”

Sêneca 

Olá!

Nem só de progressivo o homem viverá. É bem verdade que as explorações sonoras extremas da vertente o fizeram meu gênero favorito de sempre, mas, especialmente para minhas limitações técnicas, é no hard rock que eu repouso uma boa parte das minhas audições, o que vai se traduzir nas músicas que componho (cada vez menos). E por isso estou sempre ligado ao som da década de 70 e seus principais mandachuvas.

É óbvio que tenho decorada toda a produção do trio de ferro*, mas eles tiveram filhotes e alguns deles são verdadeiramente bons. Um deles teve o anúncio da aposentadoria de seu líder bem recentemente. Sem dúvida uma das maiores vozes que tivemos no movimento, David Coverdale anunciou que está deixando os palcos e, com isso, o Whitesnake fecha oficial e definitivamente as suas portas.

Fez bem, o notável vocalista. Se ele sente que seus limites físicos e artísticos foram atingidos, é digno que ele curta a vida da melhor maneira que lhe convier a partir de agora. Alguns de seus shows tiveram de ser cancelados por problemas em sua voz, e, se é exatamente ela que lhe caracteriza o talento, pode ser que os registros gravados em abundância lhe façam mais bem do que as extenuantes rotinas das turnês.

Coverdale está para o rock’n’roll assim como Annie Haslam está para o rock progressivo: na minha opinião, são os representantes máximos dos vocalistas. Embora estejam em ótima companhia, tem aptidões extras, e isso os eterniza. Mas eu preciso delinear um pouco melhor o momento de minha preferência em uma carreira muito heterogênea, movida, em certo momento, mais por sucesso do que por moções artísticas.

A banda nasce a partir do desmonte do Deep Purple original, já com as devidas trocas de componentes. Livre no mercado, Coverdale começa por uma carreira solo mais calcada em um repertório leve, com canções de inspiração soul, e com isso lança dois álbuns de algum sucesso, mas que decepcionaram fãs que esperavam uma continuidade na pauleira da banda anterior, como se mesmo ela já não estivesse em flerte com o som da motown. A partir daí, a sua fase de ouro, com forte influência do blues e o diálogo dos seus geniais guitarristas, Micky Moody e Bernie Marsden. A excelência estava em suas melodias, como faziam Eric Clapton e David Gilmour, e não na velocidade de suas escalas, o que virou uma maldição mais tarde. Ambos eram muito cuidadosos na composição de seus arranjos, traçando uma sintonia que mais tarde se tornaria célebre em uma vertente mais pesada, a New Wave of British Heavy Metal, que tinha como nomes de proa o Iron Maiden, o Judas Priest e o Saxon, todos eles usando muito a técnica de duas guitarras solo se alternando ou trabalhando em conjunto. Tudo isso já existia na formação chapéu-e-bigode, símbolo dado pela indumentária de Moody, mestre dos slides. Lançaram cinco excelentes álbuns nessa fase, incluindo um duplo ao vivo que captou toda a energia da banda no palco. Pouco depois, dois álbuns de transição trouxeram mais distorção ao som da banda, buscando alguma aproximação ao mercado ianque, ainda assim de ótima qualidade, até a virada em 1987, quando se transformou em mais uma banda de metal farofa. Agora se adaptam plenamente ao formato de agrado aos estadunidenses, enfatizaram os cabelões, a performance de guitar hero e uma sensualização meio andrógina, em um pacote que dava muita importância ao imaginário das fãs e pouca às origens rockeiras. Tenho todos os álbuns até esse, que comprei mais pela curiosidade da formação completamente nova. A partir daí, entretanto, perdi inteiramente meu interesse, porque os diferenciais que me atraiam estavam perdidos, exceção feita à vocalização, que continuou ótima. Mas para ouvir um Bon Jovi de voz grossa, prefiro continuar com o Bon Jovi de voz fina. Detalhe para o esplêndido álbum que gravou com Jimmy Page em 1993, que parecia reconduzir as ovelhas ao redil. Mas não.

Daí para frente, não tenho mais condições de expedir meus pitacos. Espero que nosso caro David curta muito suas pescarias e o churrasquinho na laje, porque seu legado está gravado para todo o sempre. Merece repousar na glória que construiu, mesmo que tenha ido para caminhos que não tenham me agradado tanto. Afinal de contas, o mundo não gira em torno do meu umbigo, mas os discos de minha vitrola, esses sim.

Também eu tenho meus projetos de aposentadoria, que são diametralmente opostos ao do nosso caro inglês. Enquanto ele decide se afastar, eu quero me aproximar. Suma ironia do destino seria se ele passasse a descrever requisitos como hobby. Na minha juventude, eu tinha bandas e músicas, um monte delas, mas a vida me impediu de prosseguir, enfiando-me em um escritório para eu destilar minhas frustrações. Tudo ficou gravado na memória, mas eu ganhei o objetivo de gravá-las em formato mp3, e virou uma espécie de hobby antecipado para os dias que me restarem. Espero que desta vez dê certo, como não deu da outra vez.

A ideia é aproveitar as benesses da tecnologia e gravar tudo eu mesmo. Algumas coisas já estão disponíveis: tenho uma boa bateria, alguns microfones e duas guitarras para pegar emprestado. O violão eu também tenho e o software para gravar é livre. Nestes quatro anos que me separam da aposentadoria, pretendo juntar o suficiente para comprar um baixo minimamente bom e um teclado, que eu ainda preciso aprender a tocar. Não precisa ser grande coisa, só as coberturas para dar elegância e um certo ar de pesquisa.

Na verdade, eu já comecei paulatinamente o trabalho. Embora eu tenha uma boa fornada prontinha, prontinha, também é verdade que muitas músicas ainda estão cruas, só com letra e melodia, mas sem um arranjo definitivo, porque ainda não tinham ido para ensaio, e tenho pensado bastante nisso. Também tenho ajustado algumas letras, aproveitando a maturidade para encaminhar melhor minhas mensagens.

Não tenho me concentrado em escrever nada novo, porque quero me livrar primeiro do estoque. Se tudo der certo, talvez eu passe a compor mais um pouco, quem sabe.

O que eu vou fazer com essas músicas se eu conseguir cumprir meu objetivo? Apresentar para alguma gravadora? Montar uma banda e sair tocando pelos bares? Nada disso. Quero dar uma cópia para cada filho, para que mostrem aos eventuais netos e tenham o registro da “genialidade” do vovô. Encher o saco dos velhos amigos para relembrar, e dos novos para impressionar são possibilidades. Também eu mesmo vou me ouvir, da mesma forma que faço com este blog. Talvez eu me enleve com algumas, e me envergonhe com outras, mas tudo para marcar o pensamento que eu tive em diferentes épocas da minha vida. Se conseguir isso, me dou por satisfeito e dou por fechada minha existência com chave de ouro.

E se não conseguir? Se o corpo não corresponder mais, se eu não me entender com a tecnologia, ou se tudo for tão cansativo que eu desista? Ou, pior ainda, se aparecerem os mesmos problemas que me impediram de continuar no passado, os mesmos impedimentos, a mesma vida que seleciona as suas necessidades?

Certamente ficarei frustrado, porque tenho consciência de que não terei meios para subir numa moto e cortar estradas, ou viajar para países exóticos. Também não tenho a menor intenção de ficar em um sítio, tendo ainda mais trabalho do que já tenho hoje. Do barco eu já desisti ainda cedo.

Mas eu tenho a hipótese de continuar vivendo, e com isso eu tenho que lidar. Embora tenhamos alguma espécie de governo sobre nossas ações e não possamos simplesmente ficar encostando em um barranco esperando o tempo passar, o fato é que somos senhoreados pelo destino. Planos e mais planos submergem no vinagre por meio de uma veia entupida. Nem precisamos ser tão dramáticos: um chefe mal-humorado, uma paixão mal resolvida, tudo muda o lado para onde o vento assopra, a maioria das vezes sem que possamos fazer grandes coisas.

Há maneiras e maneiras de lidar com a situação, e a filosofia já trabalhou das mais diversas com a questão da imprevisibilidade do futuro. Em algumas, coloca-se tudo nas mãos de uma divindade; em outras, conclui-se pelo absurdo da existência e desiste-se de encontrar uma razão e uma solução. Em outras ainda, vê o fracasso como um impulso da vontade para buscar ainda mais. Mas há certas formas de fatalismo ativo, em que a resistência à dor é a principal escolha ética para enfrentar a derrota da felicidade.

Nos dias de hoje, frente a um mundo em que noções de fracasso estão muito mais próximas a nós, é notável como a corrente estoica está cada vez mais reavivada. Há livrinhos e videozinhos falando sobre essa corrente como se fosse uma grande novidade, mas que não era nova nem para o Cristianismo, que absorveu muitos de seus princípios gerais. Mas eu já falei sobre ele, em um texto bastante abrangente, razão pela qual vou pegar um pouco do chamado estoicismo imperial, a vertente romana dos estoicos, mais especificamente a partir de Sêneca.

Sêneca é um pensador romano proveniente da Espanha, que veio a ser senador e preceptor de Nero, e, embora pareça contraditório, pregou ativamente o desprendimento como fórmula de atingir a virtude e a felicidade.

Mas quais princípios pregava Sêneca? Fundamentalmente, o estoicismo reside na ataraxia, ou seja, a ausência de perturbações diante das dificuldades da vida. Isso não é um simples “deixar para lá” apático, mas uma atitude de busca constante da felicidade através da virtude. O que  é basilar especificamente em Sêneca é o entendimento de que somente devemos exercer controle sobre aquilo que é possível controlar. Não temos como conter uma avalanche ou impedir que venha uma tempestade, mas é possível evitar o baixio de uma montanha no inverno ou se colocar a público quando as nuvens fecham. Da mesma forma, nós conseguimos controlar nossa conduta, mas não a opinião que os outros tem de nossas atitudes. O foco para onde devemos aplicar nossos esforços é no aperfeiçoamento de nossa sabedoria.

Talvez o melhor exemplo esteja na gestão do tempo. Em um mundo onde estamos constantemente reclamando da falta dele, temos a clara sensação de que a vida é curta demais. De fato, quando penso que já vivo a meio século e meia década, quando vejo que me aproximo do momento de aposentar, chego a me horrorizar. Certas coisas parecem ter ocorrido ontem, mas quando se enumera tudo o que ocorreu entre elas e o momento atual, tenho em conta o quanto já se passou. A resposta estoica é que essa sensação de brevidade do tempo é inautêntica. O tempo não é tão breve quanto parece, a questão está no seu uso. Desperdiçamos o tempo com coisas fúteis, preocupações vãs, alta expectativa para objetivos pouco importantes, procura incessante de posses e prazeres e com as suas consequentes angústias e ansiedades.

Não adianta lutar contra leis naturais, esse é o cerne do pensamento de Sêneca. Só é desejável procurar mudar aquilo que é possível mudar. Tudo o mais, é exatamente o campo da frustração e suas consequências. E isso está no nosso quotidiano. Não seguraremos a avalanche. Não controlaremos nosso chefe.

Pense, por exemplo, nos dias que antecedem a grande final do campeonato. Eu mesmo sinto um frio no estômago que acaba se espalhando para todos os dias anteriores, às vezes na forma de angústia sem objeto, um sentimento incômodo de que nada vai dar certo, sabe? É um medo infundado, porque não muda o preço do dólar, não nos trará méritos pessoais e, no final das contas, não entramos em campo para influenciar no resultado. Quem se entrega a medos vazios acaba criando medos reais, sofrimento inútil que nos afasta da felicidade.

Tendo estas “instruções” como guia, entendo que somente no momento em que acontecerem impedimentos ou impossibilidades para minhas ideias e projetos que eu vou me incomodar com eles. Sofrer por antecipação é sofrer dobrado e, se pararmos para pensar, é nossa grande usina de desesperos. Se as coisas vão dar certo ou não dependem menos de mim do que do destino. O que é da minha alçada eu estou fazendo, arranjando, rearranjando, refazendo trechos, tentando manter minimamente a forma e a vontade. Eu conto quando chegar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livrinho que explodiu no mercado editorial nos últimos tempos, especialmente porque os estoicos entraram na vibe de coachs. Injustiça com eles.

SÊNECA. Sobre a Brevidade da Vida. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2017.

*Para quem é muito novo, ou aportou de Marte recentemente, são as bandas Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple, os principais sustentáculos do que se convencionou chamar de rock pesado.



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