(Os processos mentais estão entre os grandes mistérios da humanidade. E a memória é uma espécie de musa dentre eles)
“Memórias são retratos na parede
Que não se cansam de mudar de lugar”
Picumã - Eu
Olá!
Começo a digitar essas mal traçadas linhas no dia seguinte
ao Natal do ano da graça de 2025, e vou concluí-lo no último. No dia de hoje, a
patroa recebeu a notícia de que uma tia dela morreu. Era informação que podia
demorar dias antigamente, com o favor de um telefone local ligando para um
número que recebia o recado como um favor, mas hoje os aplicativos de mensagem
instantânea fazem uma transmissão praticamente ao vivo. Morava na pequena
cidade de Ibiporã, no norte do Paraná, e não era exatamente uma visita
constante, porque não gostavam do agito de São Paulo. Nós também não íamos
muito para aquelas redondezas, um pouco por desleixo, um pouco por
desinteresse. Mas a tia era cozinheira de mão cheia, e isso tornava sua casa
uma atração turística. Como faltava a ela dois dedos abaixo para ser chamada de
anã, recebeu o maledicente apelido de Botija, posto pelo próprio marido, esse
sim um tio de sangue da consorte, ainda vivo.
Evitamos contar o passamento para minha sogra, para não transformar o ato em pantomima. Ela é daquelas que transformam um evento triste, porém corriqueiro, na encenação de uma tragédia grega, com coro e tudo. Isso inclui pressentimos, galos que cantam tristes e outras mandingas, além da necessidade peremptória de viajar correndo para acompanhar o enterro. Não se faz necessário esse movimento todo, especialmente no intervalo entre as festas. Afinal de contas, o falecimento de uma idosa de 86 anos não deveria causar estrépitos superiores à natural tristeza pela perda, mas até ameaças de desmaio já testemunhamos, então é melhor deixar passar. É mais fácil controlar a raiva posterior da senhora pela intempestividade do comunicado do que seus impulsos teatrais.
Morreu de Alzheimer, dizem os parentes mais diretos. Bem,
não se morre de Alzheimer, mas que ele atrapalha muito, atrapalha. As perdas
progressivas de importantes funções cognitivas vão levando a quadros de
disfagia e imobilidade, que, por sua vez, favorecem a aquisição de infecções e
de desnutrição, o que é pedra de campa para quem já tem os problemas típicos da
idade. É uma doença misteriosa, cujo principal ataque se dá à memória.
Quem já teve algum avô com Alzheimer sabe o quanto a
condição é triste. São pessoas que você ama e quem não tem mais condições de
reconhecê-lo, nem aos outros, nem a si próprios. É uma morte que ocorre antes
da morte, porque a pessoa só está lá fisicamente, sem sua história e aquelas
lembranças que tanto gostamos de ouvir dos mais velhos, como vieram parar aqui,
porque tomaram as decisões que tomaram, como conheceram fulano e sicrano, e
essas coisas que dão um sabor extra ao jantar de Natal. Mas, para além do
sentimentalismo da situação, existe um processo orgânico que deixa de funcionar
a contento, e provoca o tão indesejado efeito.
Na minha família, não costumamos precisar de lidar com este
mal, por um motivo de pouco alento: a turma morre cedo, antes de se ver
acometido por doenças neurológicas. São cânceres e enfartes que puxam a galera
para a barca antes que haja tempos de esquecimentos. Então não sei se é um
infortúnio ou um privilégio. O único caso que sei foi da exceção: a Tia
Antônia, irmã do meu avô, por um curtíssimo período viveu seus dias de demência,
exatamente pela morte algo prematura dele, que, sendo temporão, era bem mais
jovem e inverteu a lógica dos falecimentos. Nos oito meses entre a morte dos
dois, la vieja saiu de uma perfeita lucidez para tudo aquilo que está no
paradigma do Alzheimer – perda da memória recente, falta de reconhecimento de parentes,
lembrança de gente dos tempos em que ela ainda vivia na Espanha. Foram formas
diferentes de agonia, com os tumores expostos do meu avô sendo sucedidos pelo
desvanecimento psíquico de sua irmã, minha tia. Tudo triste, mas, segundo os médicos,
explicável.
A memória é colocada no cérebro pela ativação de neurônios
especializados na retenção de informações. Eles ficam armazenados de acordo com
uma série de circunstâncias: a atenção que damos ao fato, sua repetição, as
impressões que nos deixam, sua utilidade e assim sucessivamente. Sua relação
com o conhecimento é tão íntima que são praticamente sinônimos, porque não
basta que as lembranças façam o papel de tijolinhos do saber, mas os próprios
nexos causais são frutos da memória. Ou seja, nós não nos lembramos apenas de
nomes, fatos ou objetos, mas das maneiras com as quais eles se ligam uns aos
outros. O que significa isso? Que o aprendizado se dá pelas cadeias de causa e
consequência que extraímos do mundo.
Um exemplo simples para compreender. Quando somos crianças
pequenas e ganhamos a famosa primeira bola de nossos pais, procuramos
desmioladamente chutá-las com a maior força possível para nossas perninhas,
achando que isso aumentará as chances de superar nosso avô-goleiro. Isso se dá
pela observação simplista dos jogos que assistimos na tevê ou no campo, sem
passar pelo crivo de nossa própria experiência. Entretanto, a percepção de que
a banda não toca nesse tom faz com que experimentemos um melhor controle se
usarmos chutes mais brandos. Notaremos que às vezes é a boa colocação que leva
ao sucesso, e não uma mera pancada. Essa estrutura maior-força-menor-controle
estará causalmente colocada para outros esportes, como o vôlei e o basquete e,
mais ainda, para inúmeras ações do quotidiano, como o prosaico ato de enfiar um
prego na parede com um martelo. Notem que as conexões causais independem dos
objetos utilizados e, se estes últimos são os tijolos, a causalidade é a
argamassa que liga tudo. Quando algo de diferente acontecer, temos o
aprendizado (ou uma dissonância
cognitiva).
Acontece que nosso cérebro funciona de maneira parecida
(forçando um pouco a barra) de um dos modernos HDs de nossos computadores. A
informação é armazenada em um disco através de minúsculos pontos magnetizáveis,
que recebem singelos dados: ativo/inativo, ligado/desligado,
sensível/insensível, zero ou um. Isoladamente, não significam nada, tendo que
estar em um conjunto para ganhar sentido. Também não estão em uma sequência
física, podendo existir parte da informação em um canto, e o restante em um
setor remoto, no lado oposto, ou completamente fragmentada pelo disco todo.
Tudo depende do mapeamento que se faz das localizações da informação
pulverizada. A grande questão é que, uma vez perdido um desses pontos, a
informação inteira fica ameaçada. Existem mecanismos de recuperação que podem
resgatar a informação, com riscos de distorções, no entanto. Só que, uma vez
que determinadas quantidades de pontos sejam perdidas, a recuperação se torna
inviável. E isso não acontece apenas nos registros dos dados, mas no próprio
mapeamento.
Transporte tudo isso para o cérebro. O ponto sensibilizável
é o neurônio, menor unidade da guarda de informação. Tanto os dados que
coletamos da realidade, quanto os encadeamentos causais estão armazenados
neles. Ocorre que eles vão morrendo durante toda a existência de uma pessoa,
com a infeliz característica de não serem células que se repõe. Isso é a causa
das lentidões mentais típicas dos idosos, mesmo dos mais saudáveis. Se ela
tiver um processo degenerativo mais acelerado, como ocorre no Alzheimer, não há
como realocar as informações em outros lugares, e o resultado é esse que
conhecemos: a perda progressiva das memórias.
Não se enganem com a simplicidade do exemplo, que é
meramente didático. O cérebro tem processos extremamente mais complexos que o
mapeamento das posições de dados de um HD. É capaz de suprimir faltas de
memória através de encadeamentos lógicos, de modo a reconstruir um objeto
perdido, ainda que de forma imperfeita, a ponto de formar memórias
falsas tão perfeitas que são indiscerníveis da verdade para quem as têm.
Por isso comecei este texto com a epígrafe da letra de uma música de minha
autoria, que fala mais ou menos sobre isso mesmo: como nossas memórias nos
enganam, como nos atormentam e como vão parar em um canto perdido, semelhante àquelas
teias de aranha recobertas de poeira, o tal picumã. Se pensarmos nessas trocas
imperfeitas, temos uma boa explicação para lapsos que vão se tornando cada vez
mais frequentes, até o ponto em que haja completa perda de sentido nos
conteúdos mentais.
De certa forma, é por isso que dizemos que os velhos voltam
a se tornar crianças. Enquanto estas últimas ainda não tem a cognição completa,
nos primeiros ela está perdida, com a evidente desvantagem de não ter mais
recuperação. As crianças ainda não têm o equipamento cognitivo todo, e por isso
montam suas engraçadas falas desconexas, enquanto os idosos fazem o mesmo pela
perda dos mesmos elementos que faltam às crianças. Só que o processo não é
exatamente dessa forma. O cérebro do idoso procura desesperadamente solucionar
os desencontros por aproximação, e substitui o que seria a informação correta
por outra semelhante, e aí acontecem aquelas famosas trocas, onde o velhinho te
chama pelo nome de um parente mais antigo, por encontrar algum ponto em comum
entre as duas pessoas, e que ainda remanesce em sua memória.
O primado da memória é tão importante que tendemos a valorizá-la
em um ponto máximo, admirando quem tem conteúdos de cor, chamando essas pessoas
de prodigiosas e outras coisas. O esquecimento é sempre tido como um defeito: é
o mal dos distraídos, dos ingratos, daqueles que não ligam para momentos de
suma importância para outras pessoas. Mas, conforme já especifiquei neste
texto, o esquecimento é tão importante quanto a retenção para nosso correto
funcionamento mental. Já imaginou se você conseguisse repetir passo a passo,
minuto a minuto, instante a instante tudo o que você fez no dia de ontem? Se
não, Jorge Luís Borges já o fez, em seu conto “Funes, o Memorioso”. Ele conta a
história de Irineu Funes, um rapaz que passou a recordar mínimos detalhes de
tudo o que lia e vivia após sofrer um acidente com um cavalo. O grau de minudência
de suas lembranças contrastava com sua incapacidade de abstrair, de
generalizar, de correlacionar fatos e lógicas, o que demonstra a inutilidade de
um conhecimento meramente enciclopédico. Recordar um dia na íntegra significa
revivê-lo na íntegra. O que é melhor? Reviver o ontem como se fosse hoje ou
viver o hoje como mais um dia na vida? Extrair (puxar para fora na
origem da palavra) um entendimento significa esquecer o que ele tem de
particular e reter o que ele tem de universal, e isso é o autêntico
conhecimento, não se perdendo em minúcias que só são relevantes para a formação
de um contexto eventual.
Não maltratemos o esquecimento como um peso a carregar,
porque ele tem suas necessidades. O mal ocorre quando mesmo o conhecimento
extraído de nosso contato com o mundo se perde, como acontece com a doença de
Alzheimer. Aí, sim, podemos lamentar o destino.
E é exatamente na memória de todos que a conheceram que a
pobre tia vai continuar a existir. As pessoas podem acreditar em vida após a
morte, em um lugar de benesses e no repouso de um lugar mais tranquilo que essa
maluquice chamada de mundo, mas é na memória dos que ficam e nos legados que se
deixam que as pessoas materialmente continuam a viver. Deuses são hipóteses, a
memória é uma realidade. Os parentes contarão aos seus filhos e seus netos os
feitos daquela baixinha que fazia uma carne de sol como ninguém, que era um
verdadeiro laudamus no coro de sua igreja e que era referência na cidade
inteira, até mesmo no campo do Estrela, o principal time da pequena cidade, que
ficava do lado de sua casa. Que tenhamos um 2026 melhor. Bons ventos a
todos!
Recomendação de leitura:
Jorge Luís Borges é um dos grandes escritores
latino-americanos, daqueles que não falam de coisas fáceis. O livro que
recomendo abaixo contém o conto mencionado e vários outros.
BORGES, Jorge Luís. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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