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quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Sobre a complexidade das memórias e como o envelhecimento lhes coloca em xeque

(Os processos mentais estão entre os grandes mistérios da humanidade. E a memória é uma espécie de musa dentre eles)

“Memórias são retratos na parede

Que não se cansam de mudar de lugar”

Picumã - Eu

Olá!

Começo a digitar essas mal traçadas linhas no dia seguinte ao Natal do ano da graça de 2025, e vou concluí-lo no último. No dia de hoje, a patroa recebeu a notícia de que uma tia dela morreu. Era informação que podia demorar dias antigamente, com o favor de um telefone local ligando para um número que recebia o recado como um favor, mas hoje os aplicativos de mensagem instantânea fazem uma transmissão praticamente ao vivo. Morava na pequena cidade de Ibiporã, no norte do Paraná, e não era exatamente uma visita constante, porque não gostavam do agito de São Paulo. Nós também não íamos muito para aquelas redondezas, um pouco por desleixo, um pouco por desinteresse. Mas a tia era cozinheira de mão cheia, e isso tornava sua casa uma atração turística. Como faltava a ela dois dedos abaixo para ser chamada de anã, recebeu o maledicente apelido de Botija, posto pelo próprio marido, esse sim um tio de sangue da consorte, ainda vivo.

Evitamos contar o passamento para minha sogra, para não transformar o ato em pantomima. Ela é daquelas que transformam um evento triste, porém corriqueiro, na encenação de uma tragédia grega, com coro e tudo. Isso inclui pressentimos, galos que cantam tristes e outras mandingas, além da necessidade peremptória de viajar correndo para acompanhar o enterro. Não se faz necessário esse movimento todo, especialmente no intervalo entre as festas. Afinal de contas, o falecimento de uma idosa de 86 anos não deveria causar estrépitos superiores à natural tristeza pela perda, mas até ameaças de desmaio já testemunhamos, então é melhor deixar passar. É mais fácil controlar a raiva posterior da senhora pela intempestividade do comunicado do que seus impulsos teatrais.

Morreu de Alzheimer, dizem os parentes mais diretos. Bem, não se morre de Alzheimer, mas que ele atrapalha muito, atrapalha. As perdas progressivas de importantes funções cognitivas vão levando a quadros de disfagia e imobilidade, que, por sua vez, favorecem a aquisição de infecções e de desnutrição, o que é pedra de campa para quem já tem os problemas típicos da idade. É uma doença misteriosa, cujo principal ataque se dá à memória.

Quem já teve algum avô com Alzheimer sabe o quanto a condição é triste. São pessoas que você ama e quem não tem mais condições de reconhecê-lo, nem aos outros, nem a si próprios. É uma morte que ocorre antes da morte, porque a pessoa só está lá fisicamente, sem sua história e aquelas lembranças que tanto gostamos de ouvir dos mais velhos, como vieram parar aqui, porque tomaram as decisões que tomaram, como conheceram fulano e sicrano, e essas coisas que dão um sabor extra ao jantar de Natal. Mas, para além do sentimentalismo da situação, existe um processo orgânico que deixa de funcionar a contento, e provoca o tão indesejado efeito.

Na minha família, não costumamos precisar de lidar com este mal, por um motivo de pouco alento: a turma morre cedo, antes de se ver acometido por doenças neurológicas. São cânceres e enfartes que puxam a galera para a barca antes que haja tempos de esquecimentos. Então não sei se é um infortúnio ou um privilégio. O único caso que sei foi da exceção: a Tia Antônia, irmã do meu avô, por um curtíssimo período viveu seus dias de demência, exatamente pela morte algo prematura dele, que, sendo temporão, era bem mais jovem e inverteu a lógica dos falecimentos. Nos oito meses entre a morte dos dois, la vieja saiu de uma perfeita lucidez para tudo aquilo que está no paradigma do Alzheimer – perda da memória recente, falta de reconhecimento de parentes, lembrança de gente dos tempos em que ela ainda vivia na Espanha. Foram formas diferentes de agonia, com os tumores expostos do meu avô sendo sucedidos pelo desvanecimento psíquico de sua irmã, minha tia. Tudo triste, mas, segundo os médicos, explicável.

A memória é colocada no cérebro pela ativação de neurônios especializados na retenção de informações. Eles ficam armazenados de acordo com uma série de circunstâncias: a atenção que damos ao fato, sua repetição, as impressões que nos deixam, sua utilidade e assim sucessivamente. Sua relação com o conhecimento é tão íntima que são praticamente sinônimos, porque não basta que as lembranças façam o papel de tijolinhos do saber, mas os próprios nexos causais são frutos da memória. Ou seja, nós não nos lembramos apenas de nomes, fatos ou objetos, mas das maneiras com as quais eles se ligam uns aos outros. O que significa isso? Que o aprendizado se dá pelas cadeias de causa e consequência que extraímos do mundo.

Um exemplo simples para compreender. Quando somos crianças pequenas e ganhamos a famosa primeira bola de nossos pais, procuramos desmioladamente chutá-las com a maior força possível para nossas perninhas, achando que isso aumentará as chances de superar nosso avô-goleiro. Isso se dá pela observação simplista dos jogos que assistimos na tevê ou no campo, sem passar pelo crivo de nossa própria experiência. Entretanto, a percepção de que a banda não toca nesse tom faz com que experimentemos um melhor controle se usarmos chutes mais brandos. Notaremos que às vezes é a boa colocação que leva ao sucesso, e não uma mera pancada. Essa estrutura maior-força-menor-controle estará causalmente colocada para outros esportes, como o vôlei e o basquete e, mais ainda, para inúmeras ações do quotidiano, como o prosaico ato de enfiar um prego na parede com um martelo. Notem que as conexões causais independem dos objetos utilizados e, se estes últimos são os tijolos, a causalidade é a argamassa que liga tudo. Quando algo de diferente acontecer, temos o aprendizado (ou uma dissonância cognitiva).

Acontece que nosso cérebro funciona de maneira parecida (forçando um pouco a barra) de um dos modernos HDs de nossos computadores. A informação é armazenada em um disco através de minúsculos pontos magnetizáveis, que recebem singelos dados: ativo/inativo, ligado/desligado, sensível/insensível, zero ou um. Isoladamente, não significam nada, tendo que estar em um conjunto para ganhar sentido. Também não estão em uma sequência física, podendo existir parte da informação em um canto, e o restante em um setor remoto, no lado oposto, ou completamente fragmentada pelo disco todo. Tudo depende do mapeamento que se faz das localizações da informação pulverizada. A grande questão é que, uma vez perdido um desses pontos, a informação inteira fica ameaçada. Existem mecanismos de recuperação que podem resgatar a informação, com riscos de distorções, no entanto. Só que, uma vez que determinadas quantidades de pontos sejam perdidas, a recuperação se torna inviável. E isso não acontece apenas nos registros dos dados, mas no próprio mapeamento.

Transporte tudo isso para o cérebro. O ponto sensibilizável é o neurônio, menor unidade da guarda de informação. Tanto os dados que coletamos da realidade, quanto os encadeamentos causais estão armazenados neles. Ocorre que eles vão morrendo durante toda a existência de uma pessoa, com a infeliz característica de não serem células que se repõe. Isso é a causa das lentidões mentais típicas dos idosos, mesmo dos mais saudáveis. Se ela tiver um processo degenerativo mais acelerado, como ocorre no Alzheimer, não há como realocar as informações em outros lugares, e o resultado é esse que conhecemos: a perda progressiva das memórias.

Não se enganem com a simplicidade do exemplo, que é meramente didático. O cérebro tem processos extremamente mais complexos que o mapeamento das posições de dados de um HD. É capaz de suprimir faltas de memória através de encadeamentos lógicos, de modo a reconstruir um objeto perdido, ainda que de forma imperfeita, a ponto de formar memórias falsas tão perfeitas que são indiscerníveis da verdade para quem as têm. Por isso comecei este texto com a epígrafe da letra de uma música de minha autoria, que fala mais ou menos sobre isso mesmo: como nossas memórias nos enganam, como nos atormentam e como vão parar em um canto perdido, semelhante àquelas teias de aranha recobertas de poeira, o tal picumã. Se pensarmos nessas trocas imperfeitas, temos uma boa explicação para lapsos que vão se tornando cada vez mais frequentes, até o ponto em que haja completa perda de sentido nos conteúdos mentais.

De certa forma, é por isso que dizemos que os velhos voltam a se tornar crianças. Enquanto estas últimas ainda não tem a cognição completa, nos primeiros ela está perdida, com a evidente desvantagem de não ter mais recuperação. As crianças ainda não têm o equipamento cognitivo todo, e por isso montam suas engraçadas falas desconexas, enquanto os idosos fazem o mesmo pela perda dos mesmos elementos que faltam às crianças. Só que o processo não é exatamente dessa forma. O cérebro do idoso procura desesperadamente solucionar os desencontros por aproximação, e substitui o que seria a informação correta por outra semelhante, e aí acontecem aquelas famosas trocas, onde o velhinho te chama pelo nome de um parente mais antigo, por encontrar algum ponto em comum entre as duas pessoas, e que ainda remanesce em sua memória.

O primado da memória é tão importante que tendemos a valorizá-la em um ponto máximo, admirando quem tem conteúdos de cor, chamando essas pessoas de prodigiosas e outras coisas. O esquecimento é sempre tido como um defeito: é o mal dos distraídos, dos ingratos, daqueles que não ligam para momentos de suma importância para outras pessoas. Mas, conforme já especifiquei neste texto, o esquecimento é tão importante quanto a retenção para nosso correto funcionamento mental. Já imaginou se você conseguisse repetir passo a passo, minuto a minuto, instante a instante tudo o que você fez no dia de ontem? Se não, Jorge Luís Borges já o fez, em seu conto “Funes, o Memorioso”. Ele conta a história de Irineu Funes, um rapaz que passou a recordar mínimos detalhes de tudo o que lia e vivia após sofrer um acidente com um cavalo. O grau de minudência de suas lembranças contrastava com sua incapacidade de abstrair, de generalizar, de correlacionar fatos e lógicas, o que demonstra a inutilidade de um conhecimento meramente enciclopédico. Recordar um dia na íntegra significa revivê-lo na íntegra. O que é melhor? Reviver o ontem como se fosse hoje ou viver o hoje como mais um dia na vida? Extrair (puxar para fora na origem da palavra) um entendimento significa esquecer o que ele tem de particular e reter o que ele tem de universal, e isso é o autêntico conhecimento, não se perdendo em minúcias que só são relevantes para a formação de um contexto eventual.

Não maltratemos o esquecimento como um peso a carregar, porque ele tem suas necessidades. O mal ocorre quando mesmo o conhecimento extraído de nosso contato com o mundo se perde, como acontece com a doença de Alzheimer. Aí, sim, podemos lamentar o destino.

E é exatamente na memória de todos que a conheceram que a pobre tia vai continuar a existir. As pessoas podem acreditar em vida após a morte, em um lugar de benesses e no repouso de um lugar mais tranquilo que essa maluquice chamada de mundo, mas é na memória dos que ficam e nos legados que se deixam que as pessoas materialmente continuam a viver. Deuses são hipóteses, a memória é uma realidade. Os parentes contarão aos seus filhos e seus netos os feitos daquela baixinha que fazia uma carne de sol como ninguém, que era um verdadeiro laudamus no coro de sua igreja e que era referência na cidade inteira, até mesmo no campo do Estrela, o principal time da pequena cidade, que ficava do lado de sua casa. Que tenhamos um 2026 melhor. Bons ventos a todos! 

Recomendação de leitura:

Jorge Luís Borges é um dos grandes escritores latino-americanos, daqueles que não falam de coisas fáceis. O livro que recomendo abaixo contém o conto mencionado e vários outros.

BORGES, Jorge Luís. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 



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