(Baixinho invocado é um dos maiores estereótipos que conhecemos. Mas o complexo de inferioridade existe)
“As pessoas normais são aquelas que você não conhece bem”
Adler
Olá!
Vocês acham que os baixinhos são mais bravos? Eu tenho lugar
de fala (explicações sobre esse mal utilizado termo aqui
e aqui),
porque a patroa é, e não é muito difícil de fazê-la explodir. Se você parar
para pensar, vai logo lembrar de cinco ou seis tampinhas que são bastante
empombadinhos, e a quinta série de plantão acaba por lhes imputar apelidos tão
mais ofensivos, quanto mais contundente for sua reação: pintor de rodapé,
mecânico de Autorama, salva-vidas de aquário, caixa do Banco Imobiliário,
pedreiro de Lego, esquiador de freezer, zagueiro de pebolim, lenhador de
bonsai, Tarzan de samambaia e outros menos votados. Lembro logo dos líderes de
desenvolvimento com os quais eu trabalho e há, de fato, um bastante irritadiço
e confrontativo, logo o mais baixinho deles: “não faço, não estava no projeto”,
“estamos errados até quando estamos certos”, “o prazo já foi dado e não tem
como encurtar” e assim por diante. É duro na queda quase que por costume,
porque sabemos como são difíceis prazos e orçamentos. Basta lembrar que a
panaceia universal para justificar atrasos saiu do trânsito e veio para os
sistemas, esses malvados. Demorou o metrô? Sistema. Tem fila no caixa? Sistema.
O pão desandou? Sistema. Sendo assim, já subimos a cidadela quase que
naturalmente, sem a necessidade de se medir alturas.
Claro que a questão da dotação é rematada bobagem, derivada de uma pretensa Síndrome de Napoleão, que, em tese, levaria as pessoas de baixa estatura física a compensar sua humilde biometria com prepotência e agressividade desproporcional, como uma forma de autodefesa gerada por um complexo de inferioridade. O nome se deve ao famosíssimo general francês, Napoleão Bonaparte, conhecido pela genialidade nas estratégias militares e habilidade política. Há uma série de erros na sua vinculação a uma suposta ideia de supercompensação pela sua pouca altura. A primeira é que ele não era, de fato, baixinho, ao menos para a época em que viveu, mas um homem de estatura mediana. Provavelmente essa ideia se deve mais à sua compleição achatada, de tórax e abdômen alargados, do que propriamente à altura. A segunda é que ele não era nem mais, nem menos cruel do que seus colegas militares, mas a quantidade de conquistas amplia tanto seus números quanto o temor psicológico que seu nome causava. E a terceira é que o complexo de inferioridade, embora possa de fato trazer um impulso a compensações com outros atributos pessoais, não está bem caracterizado nesse caso. Mas é um nome que pegou, não vamos lutar contra isso e vamos continuar amigos. Um dos pares do referido líder de desenvolvimento é, se muito, meio centímetro mais alto, e é dócil como um gato em dias de bajulação. Portanto, a síndrome de Napoleão é, até prova em contrário, pertencente ao senso comum, ou, mais claramente, uma amostra de hipótese pseudocientífica.
Mas eu falei sobre o complexo de inferioridade no meu texto
anterior, e eu parei no meio do caminho para não me estender demais, sob a
promessa de retomar o tema em seus princípios. Então vamos tratar um pouco mais
sobre esse interessante tema, que se baseia em uma transição de idades em que
passamos a reconhecer nossas potencialidades e deixamos de nos considerar
inferiores. O problema é quando isso não acontece.
A psicanálise freudiana, posta de lado suas polêmicas,
trouxe novidades nos termos das pesquisas psíquicas. A mente passou a ser
estudada em seus recônditos inaparentes, e justificativas para os acometimentos
que se reputavam com estereótipos, tipo a histeria das mulheres mal-amadas,
começaram a ganhar novas abordagens, com o surgimento de conceitos que surgem
nas derivações da psicanálise, mais especificamente, em nosso caso, pelas mãos
de Alfred Adler, que desenvolve uma corrente que viria a ser conhecida como
psicologia do desenvolvimento individual, ou mais simplesmente Psicologia
Individual. Seu principal fundamento está nas modificações que cada indivíduo
tem no transcorrer de sua vida, e sua pedra de toque é o conceito de complexo
de inferioridade.
A palavra inferior tem sua raiz na palavra grega infra,
que significa aquilo que está por baixo. Inicialmente, não tem nenhum
significado pejorativo ou diminutivo, indicando unicamente uma situação
posicional. Por exemplo, as pernas estão abaixo dos braços, ou a derme está
abaixo da epiderme. O inferus, palavra que deriva deste radical, não é
inferior por ser ruim, mas por estar na parte de baixo, estar oculto, estar
mais aprofundado. Portanto, somente quando estabelecemos um relacionamento
qualitativo que o inferus vai ganhar um aspecto de pior, de menos capacitado.
Quando somos crianças, e em relação a adultos, temos desempenhos físicos
relativos inferiores. Claro: não temos nossa compleição física tutta intera,
ainda cresceremos e aprenderemos a utilizar melhor nossos equipamentos
orgânicos. Entretanto, é nesse mesmo momento, em que ainda somos pequenos
diante do mundo, que começa a se formar nossa personalidade. Não temos nenhum
tipo de consciência do que é o mundo e, pior ainda, do que são as relações
sociais tão logo nasçamos. Só sabemos que temos fome, que estamos sujos, que
está frio ou calor, que queremos um colo macio. Palavras como alteridade e
empatia não conhecemos nem de passagem, nem por
conhecimento (óbvio), nem por sentimento. Somos, portanto, os centros de nossos
universos, egoístas por excelência. Mas o transcurso do desenvolvimento faz com
que percebamos, lentamente, que nossa posição central é frágil e que não somos
objetos de permanente atenção. São estes os momentos em que começamos a
aprender outros sentimentos negativos, menos orgânicos, mas igualmente
permanentes. É quando surgem raiva, ciúmes, inveja. E, com eles, vem a
competição, inicialmente dentro da própria casa: entre os irmãos, entre o pai e
o filho que disputam a mãe. Isso tudo parece cruel, mas é a linha com a qual
nossos primeiros anos são tratados. Normal.
Vamos combinar que ninguém nasce grande e vai ficando
pequeno, nem nasce sabendo e vai ficando burro, portanto, essa linearidade é
inerente aos seres, não só humanos, mas principalmente eles. Todos passamos por
esse momento de inferioridade, que nada tem de negativo quando vividos nos
momentos certos. Eis que sabemos, quando pequenos, que nós temos inferioridade
com relação aos que são mais velhos que nós. Pedimos para eles pegarem coisas
nos altos, perguntamos sobre coisas que ainda não sabemos, queremos que peguem
coisas mais pesadas. Isso está na normalidade das coisas, e uma das que
aprendemos é que haverá um momento em que estaremos no mesmo patamar daqueles a
quem recorremos neste momento. O processo de desenvolvimento providenciará para
que chegue nossa vez. É aquele momento tonto em que achamos que deveríamos
chegar logo à maioridade e parar de depender dos outros. Santa ignorância,
Batman…
Um dos aspectos do amadurecimento está no reconhecimento de
que, mesmo completamente desenvolvidos, atingimos um determinado patamar que é
nosso limite. Eu, por exemplo, adoraria estar no nível dos grandes bateristas
deste universo conhecido, dos grandes escritores, dos excelentes professores,
mas um belo dia cheguei num ponto em que eu não ia mais além de onde estava. Eu
sou inferior tecnicamente a uma montanha de gente, e isso não é um problema, é
só uma questão de autoconhecimento. Quer dizer, não é um problema se eu não me
retrair ao mundo por conta disso, ou que eu não tente supercompensar além dos
limites aceitáveis para suprir essa carência.
O primeiro acontece quando um aspecto da minha inferioridade
me faz supor que isso seja generalizado, que eu seja ruim em tudo. Isso fará
com que eu me retraia a tal ponto que nada do que me for potencial aflorará.
São aquelas pessoas com excesso de timidez, que procuram passar despercebidas
em qualquer canto onde estejam. Isso está fora do escopo das boas relações
humanas, porque, ora essa, somos seres sociais e dependemos de um pacote de
relações mínimas para sobreviver. Se alguém perdeu o ponto de virada do
amadurecimento, viverá precariamente para sempre.
Já o segundo é uma reação exagerada e irrealista à condição
de inferioridade, fazendo com que todas as reações de confronto com pontos em
que a pessoa se considera hábil sejam exponencializadas, às vezes de forma
agressiva. É por isso que se diz que pessoas violentas no trato são complexadas
com seus defeitos, o que nem sempre é verdade.
Adler concluiu que esses fenômenos psíquicos ocorrem em
decorrência de desencontros na transição entre as idades infantil e adulta,
normalmente ocasionados por um quadro de restrições durante os primeiros anos
de vida. Crianças que não recebem adequada atenção dos pais, que têm seus erros
reforçados e seus acertos subestimados costumam ter em si mais arraigados os
complexos de inferioridade em suas duas formas.
A questão toda é que a mente humana plasma dentro de si todo
o painel competitivo que a própria vida tem e, crueldade das crueldades, é em
casa que temos o primeiro ambiente de embates. Imagine, por exemplo, que você é
o irmão do meio de um trio de encapetados. O seu irmão mais velho goza da força
típica daqueles que já condensaram no corpo mais células, além de contar com
uma certa experiência a mais (e um pouco de opressão aplicada). O mais novo
aproveita do beneplácito dos pais e lança mão justamente da sua fragilidade
para conseguir maior proteção. Você, o do meio, é inferior fisicamente ao mais
velho e politicamente ao mais novo, e fica naquela espécie de lugar maldito de
quem não tem vantagens. Se seus pais forem suficientemente habilidosos e
aprenderem com o tempo, isso será apenas uma lembrança quando as coisas se
igualarem. Só que se não forem, você poderá se sentir uma espécie de pária, que
nem é tão forte, nem merece tanta proteção.
Adler vem da escola freudiana, mas diverge do guia em pontos
decisivos. Os principais são a menor primazia dos recalques e pulsões de origem
sexual e uma maior participação da instância consciente na psiquê humana. No
primeiro caso, Freud entendia que muito do que molda a psiquê vem dos apetites
sexuais que se desenvolvem desde a mais tenra infância, a fonte de prazer por
excelência, colidindo com a moral reinante, que via as crianças como
reservatórios de pureza. É óbvio que não se tratava de dizer que as crianças
estavam dispostas e disponíveis para o ato, mas que já colocavam em
desenvolvimento aquilo que viria a ser sua sexualidade final, e as maneiras
como recebiam repressão tornava se uma fonte inesgotável de neuroses na idade
adulta. Adler, por seu lado, levava a sexualidade para um papel mais simbólico,
e compreendia que a personalidade era moldada por aspectos mais totalizantes e
integrados. Não é a sexualidade, mas as interações sociais que melhor moldam,
que se refletem em estilos de vida. Além disso, embora concorde com as
instâncias de inconsciência, Adler entende que o ego não é tão imobilizado pela
guerra entre id e superego. Freud enfatiza o passado na formação da
personalidade, enquanto Adler acredita que o indivíduo pode se mover por metas,
ou seja, ter o futuro como guia da personalidade. Enfim, tanto Freud quanto
Adler teorizam que o ambiente social tem influência sobre a formação da
personalidade, mas o primeiro vai pelas repressões do superego, enquanto o
segundo entende que a sociedade é o meio pelo qual o indivíduo ganha objetivos.
Portanto, nas teorias de Adler, aqueles indivíduos que
excedem os consensos sociais são movidos por um complexo de inferioridade que
não foi bem modulado no momento de transição adequado, mormente pelas
dificuldades interpostas pelo meio onde viveu em seus primeiros anos.
Comportamentos neuróticos são uma resposta orgânica à tentativa de superar o
sentimento de inferioridade. O grande problema, que o desvia da média geral da
população, é o descolamento da realidade: ele persiste se vendo como inferior em
lugares onde ele não é, ou se vê extra superior em aspectos onde ele não chega
a tanto. Enfim, é um transtorno da visão de realidade.
Sendo assim, baixinhos não são naturalmente mais agressivos
para uma suposta defesa antecipada, ou por se sentirem inferiores. Eles são tão
agressivos quanto seus estilos de vida os tornaram, e o quanto eles se propuseram
a sair desse estado. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Mais um livro de Adler para aprofundar o sentido de seus pensamentos. Leia-o por um prisma
filosófico, e você se sentirá mais confortável.

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