Marcadores

segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Sobre o complexo de inferioridade e os momentos em que ele deixa de ser normal

(Baixinho invocado é um dos maiores estereótipos que conhecemos. Mas o complexo de inferioridade existe)

“As pessoas normais são aquelas que você não conhece bem” 

Adler

Olá!

Vocês acham que os baixinhos são mais bravos? Eu tenho lugar de fala (explicações sobre esse mal utilizado termo aqui e aqui), porque a patroa é, e não é muito difícil de fazê-la explodir. Se você parar para pensar, vai logo lembrar de cinco ou seis tampinhas que são bastante empombadinhos, e a quinta série de plantão acaba por lhes imputar apelidos tão mais ofensivos, quanto mais contundente for sua reação: pintor de rodapé, mecânico de Autorama, salva-vidas de aquário, caixa do Banco Imobiliário, pedreiro de Lego, esquiador de freezer, zagueiro de pebolim, lenhador de bonsai, Tarzan de samambaia e outros menos votados. Lembro logo dos líderes de desenvolvimento com os quais eu trabalho e há, de fato, um bastante irritadiço e confrontativo, logo o mais baixinho deles: “não faço, não estava no projeto”, “estamos errados até quando estamos certos”, “o prazo já foi dado e não tem como encurtar” e assim por diante. É duro na queda quase que por costume, porque sabemos como são difíceis prazos e orçamentos. Basta lembrar que a panaceia universal para justificar atrasos saiu do trânsito e veio para os sistemas, esses malvados. Demorou o metrô? Sistema. Tem fila no caixa? Sistema. O pão desandou? Sistema. Sendo assim, já subimos a cidadela quase que naturalmente, sem a necessidade de se medir alturas.

Claro que a questão da dotação é rematada bobagem, derivada de uma pretensa Síndrome de Napoleão, que, em tese, levaria as pessoas de baixa estatura física a compensar sua humilde biometria com prepotência e agressividade desproporcional, como uma forma de autodefesa gerada por um complexo de inferioridade. O nome se deve ao famosíssimo general francês, Napoleão Bonaparte, conhecido pela genialidade nas estratégias militares e habilidade política. Há uma série de erros na sua vinculação a uma suposta ideia de supercompensação pela sua pouca altura. A primeira é que ele não era, de fato, baixinho, ao menos para a época em que viveu, mas um homem de estatura mediana. Provavelmente essa ideia se deve mais à sua compleição achatada, de tórax e abdômen alargados, do que propriamente à altura. A segunda é que ele não era nem mais, nem menos cruel do que seus colegas militares, mas a quantidade de conquistas amplia tanto seus números quanto o temor psicológico que seu nome causava. E a terceira é que o complexo de inferioridade, embora possa de fato trazer um impulso a compensações com outros atributos pessoais, não está bem caracterizado nesse caso. Mas é um nome que pegou, não vamos lutar contra isso e vamos continuar amigos. Um dos pares do referido líder de desenvolvimento é, se muito, meio centímetro mais alto, e é dócil como um gato em dias de bajulação. Portanto, a síndrome de Napoleão é, até prova em contrário, pertencente ao senso comum, ou, mais claramente, uma amostra de hipótese pseudocientífica.

Mas eu falei sobre o complexo de inferioridade no meu texto anterior, e eu parei no meio do caminho para não me estender demais, sob a promessa de retomar o tema em seus princípios. Então vamos tratar um pouco mais sobre esse interessante tema, que se baseia em uma transição de idades em que passamos a reconhecer nossas potencialidades e deixamos de nos considerar inferiores. O problema é quando isso não acontece.

A psicanálise freudiana, posta de lado suas polêmicas, trouxe novidades nos termos das pesquisas psíquicas. A mente passou a ser estudada em seus recônditos inaparentes, e justificativas para os acometimentos que se reputavam com estereótipos, tipo a histeria das mulheres mal-amadas, começaram a ganhar novas abordagens, com o surgimento de conceitos que surgem nas derivações da psicanálise, mais especificamente, em nosso caso, pelas mãos de Alfred Adler, que desenvolve uma corrente que viria a ser conhecida como psicologia do desenvolvimento individual, ou mais simplesmente Psicologia Individual. Seu principal fundamento está nas modificações que cada indivíduo tem no transcorrer de sua vida, e sua pedra de toque é o conceito de complexo de inferioridade.

A palavra inferior tem sua raiz na palavra grega infra, que significa aquilo que está por baixo. Inicialmente, não tem nenhum significado pejorativo ou diminutivo, indicando unicamente uma situação posicional. Por exemplo, as pernas estão abaixo dos braços, ou a derme está abaixo da epiderme. O inferus, palavra que deriva deste radical, não é inferior por ser ruim, mas por estar na parte de baixo, estar oculto, estar mais aprofundado. Portanto, somente quando estabelecemos um relacionamento qualitativo que o inferus vai ganhar um aspecto de pior, de menos capacitado. Quando somos crianças, e em relação a adultos, temos desempenhos físicos relativos inferiores. Claro: não temos nossa compleição física tutta intera, ainda cresceremos e aprenderemos a utilizar melhor nossos equipamentos orgânicos. Entretanto, é nesse mesmo momento, em que ainda somos pequenos diante do mundo, que começa a se formar nossa personalidade. Não temos nenhum tipo de consciência do que é o mundo e, pior ainda, do que são as relações sociais tão logo nasçamos. Só sabemos que temos fome, que estamos sujos, que está frio ou calor, que queremos um colo macio. Palavras como alteridade e empatia não conhecemos nem de passagem, nem por conhecimento (óbvio), nem por sentimento. Somos, portanto, os centros de nossos universos, egoístas por excelência. Mas o transcurso do desenvolvimento faz com que percebamos, lentamente, que nossa posição central é frágil e que não somos objetos de permanente atenção. São estes os momentos em que começamos a aprender outros sentimentos negativos, menos orgânicos, mas igualmente permanentes. É quando surgem raiva, ciúmes, inveja. E, com eles, vem a competição, inicialmente dentro da própria casa: entre os irmãos, entre o pai e o filho que disputam a mãe. Isso tudo parece cruel, mas é a linha com a qual nossos primeiros anos são tratados. Normal.

Vamos combinar que ninguém nasce grande e vai ficando pequeno, nem nasce sabendo e vai ficando burro, portanto, essa linearidade é inerente aos seres, não só humanos, mas principalmente eles. Todos passamos por esse momento de inferioridade, que nada tem de negativo quando vividos nos momentos certos. Eis que sabemos, quando pequenos, que nós temos inferioridade com relação aos que são mais velhos que nós. Pedimos para eles pegarem coisas nos altos, perguntamos sobre coisas que ainda não sabemos, queremos que peguem coisas mais pesadas. Isso está na normalidade das coisas, e uma das que aprendemos é que haverá um momento em que estaremos no mesmo patamar daqueles a quem recorremos neste momento. O processo de desenvolvimento providenciará para que chegue nossa vez. É aquele momento tonto em que achamos que deveríamos chegar logo à maioridade e parar de depender dos outros. Santa ignorância, Batman…

Um dos aspectos do amadurecimento está no reconhecimento de que, mesmo completamente desenvolvidos, atingimos um determinado patamar que é nosso limite. Eu, por exemplo, adoraria estar no nível dos grandes bateristas deste universo conhecido, dos grandes escritores, dos excelentes professores, mas um belo dia cheguei num ponto em que eu não ia mais além de onde estava. Eu sou inferior tecnicamente a uma montanha de gente, e isso não é um problema, é só uma questão de autoconhecimento. Quer dizer, não é um problema se eu não me retrair ao mundo por conta disso, ou que eu não tente supercompensar além dos limites aceitáveis para suprir essa carência.

O primeiro acontece quando um aspecto da minha inferioridade me faz supor que isso seja generalizado, que eu seja ruim em tudo. Isso fará com que eu me retraia a tal ponto que nada do que me for potencial aflorará. São aquelas pessoas com excesso de timidez, que procuram passar despercebidas em qualquer canto onde estejam. Isso está fora do escopo das boas relações humanas, porque, ora essa, somos seres sociais e dependemos de um pacote de relações mínimas para sobreviver. Se alguém perdeu o ponto de virada do amadurecimento, viverá precariamente para sempre.

Já o segundo é uma reação exagerada e irrealista à condição de inferioridade, fazendo com que todas as reações de confronto com pontos em que a pessoa se considera hábil sejam exponencializadas, às vezes de forma agressiva. É por isso que se diz que pessoas violentas no trato são complexadas com seus defeitos, o que nem sempre é verdade.

Adler concluiu que esses fenômenos psíquicos ocorrem em decorrência de desencontros na transição entre as idades infantil e adulta, normalmente ocasionados por um quadro de restrições durante os primeiros anos de vida. Crianças que não recebem adequada atenção dos pais, que têm seus erros reforçados e seus acertos subestimados costumam ter em si mais arraigados os complexos de inferioridade em suas duas formas.

A questão toda é que a mente humana plasma dentro de si todo o painel competitivo que a própria vida tem e, crueldade das crueldades, é em casa que temos o primeiro ambiente de embates. Imagine, por exemplo, que você é o irmão do meio de um trio de encapetados. O seu irmão mais velho goza da força típica daqueles que já condensaram no corpo mais células, além de contar com uma certa experiência a mais (e um pouco de opressão aplicada). O mais novo aproveita do beneplácito dos pais e lança mão justamente da sua fragilidade para conseguir maior proteção. Você, o do meio, é inferior fisicamente ao mais velho e politicamente ao mais novo, e fica naquela espécie de lugar maldito de quem não tem vantagens. Se seus pais forem suficientemente habilidosos e aprenderem com o tempo, isso será apenas uma lembrança quando as coisas se igualarem. Só que se não forem, você poderá se sentir uma espécie de pária, que nem é tão forte, nem merece tanta proteção.

Adler vem da escola freudiana, mas diverge do guia em pontos decisivos. Os principais são a menor primazia dos recalques e pulsões de origem sexual e uma maior participação da instância consciente na psiquê humana. No primeiro caso, Freud entendia que muito do que molda a psiquê vem dos apetites sexuais que se desenvolvem desde a mais tenra infância, a fonte de prazer por excelência, colidindo com a moral reinante, que via as crianças como reservatórios de pureza. É óbvio que não se tratava de dizer que as crianças estavam dispostas e disponíveis para o ato, mas que já colocavam em desenvolvimento aquilo que viria a ser sua sexualidade final, e as maneiras como recebiam repressão tornava se uma fonte inesgotável de neuroses na idade adulta. Adler, por seu lado, levava a sexualidade para um papel mais simbólico, e compreendia que a personalidade era moldada por aspectos mais totalizantes e integrados. Não é a sexualidade, mas as interações sociais que melhor moldam, que se refletem em estilos de vida. Além disso, embora concorde com as instâncias de inconsciência, Adler entende que o ego não é tão imobilizado pela guerra entre id e superego. Freud enfatiza o passado na formação da personalidade, enquanto Adler acredita que o indivíduo pode se mover por metas, ou seja, ter o futuro como guia da personalidade. Enfim, tanto Freud quanto Adler teorizam que o ambiente social tem influência sobre a formação da personalidade, mas o primeiro vai pelas repressões do superego, enquanto o segundo entende que a sociedade é o meio pelo qual o indivíduo ganha objetivos.

Portanto, nas teorias de Adler, aqueles indivíduos que excedem os consensos sociais são movidos por um complexo de inferioridade que não foi bem modulado no momento de transição adequado, mormente pelas dificuldades interpostas pelo meio onde viveu em seus primeiros anos. Comportamentos neuróticos são uma resposta orgânica à tentativa de superar o sentimento de inferioridade. O grande problema, que o desvia da média geral da população, é o descolamento da realidade: ele persiste se vendo como inferior em lugares onde ele não é, ou se vê extra superior em aspectos onde ele não chega a tanto. Enfim, é um transtorno da visão de realidade.

Sendo assim, baixinhos não são naturalmente mais agressivos para uma suposta defesa antecipada, ou por se sentirem inferiores. Eles são tão agressivos quanto seus estilos de vida os tornaram, e o quanto eles se propuseram a sair desse estado. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Mais um livro de Adler para aprofundar o sentido de seus pensamentos. Leia-o por um prisma filosófico, e você se sentirá mais confortável.

ADLER, Alfred. El Caracter Neurotico. Buenos Aires: Paidos, s. d.



Nenhum comentário:

Postar um comentário