(Por que a maioria esmagadora da população professa uma fé, ainda que a cada dia que passa ela fique mais difícil de justificar?)
“Mais cedo ou mais tarde a criança adquire consciência de sua inaptidão para lutar. Sem a ajuda de outrem, com as dificuldades da existência. Este sentimento de inferioridade é a força geradora, o ponto de partida dos impulsos combativos das crianças. Será ele que determinará o modo por que a criança adquirirá paz e segurança na vida, será ele que determinará a própria meta de sua existência e preparará o caminho pelo qual essa meta será atingida”.
Adler
Olá!
Como tenho dito para vocês, minha vida tem sido um eterno
trafegar entre São Paulo e Taubaté, pelo miolo daquele bico que se aproxima do
Rio de Janeiro conhecido como Vale do Paraíba. Por óbvio, esse nome diz
respeito ao acidente geográfico formado pelo Rio Paraíba do Sul, nascido pela
junção os rios Paraitinga e Paraibuna, que fazem um insólito percurso que vai
rumo à Capital, para fazer uma curva na altura de Guararema e pegar a rota do
Rio, onde vai desaguar no mar. Coloquei um mapinha no fim do texto para
facilitar a compreensão.
Toda essa região é muito antiga, logo dos tempos da fundação
deste inusual país, e, como tal, tem uma carga muito grande de história, embora
respeito ao patrimônio histórico não seja exatamente nosso forte. É daqui, por
exemplo, que o movimento dos tropeiros nasceu e se consolidou, especialmente
após a descoberta de minérios valiosos na região do que hoje é Minas Gerais. E
também aqui várias povoações foram nascendo e crescendo, com a preponderância
da cultura portuguesa, o que trouxe muitas igrejas para cá, algumas delas ainda
hoje de pé.
Para mencionar apenas algumas das mais importantes, temos o
santuário da Rosa Mística em Jambeiro,
o convento de Frei Galvão em Guaratinguetá, o convento de Santa Clara em
Taubaté, a igreja da Santa Cabeça em Silveiras,
o mosteiro da Sagrada Face em Roseira, além de muitas e muitas outras, assim
como novos espaços da religiosidade, como a Canção Nova em Cachoeira Paulista e
o Memorial do Padre Leo em Lorena,
além, obviamente, da basílica de Nossa Senhora Aparecida, em um conjunto
composto pela bela igreja original e pela gigantesca igreja principal,
assustadora em suas dimensões. Isso se deu por conta da velha e bastante
conhecida história da padroeira: um grupo de pescadores lança suas redes no Rio
Paraíba do Sul e traz o corpo de uma santa, mais especificamente de Nossa
Senhora da Conceição, porém sem sua cabeça. Na sequência, lança a rede
novamente e, desta vez, vem a cabeça, em perfeito encaixe. Ato contínuo, a
pesca escassa de até então passou a ser abundante. Reputado como milagre, o
fenômeno fez com que a imagem fosse acomodada em um nicho humilde e, a partir
daí, pegando fama crescente, até chegar no atual status: padroeira do Brasil.
Então é muito comum para estes lados vermos as romarias,
peregrinações de muitos quilômetros que tem seu nome baseado nas visitas que as
pessoas de fé faziam a Roma, sede da Igreja Católica, onde, diz-se, São Pedro
teria sido levado a martírio lá pelos idos do primeiro século da era comum.
Essas caminhadas, dizem os romeiros, servem para reflexão, oração e penitência,
o que dá alimento para a fé. Há caminhos feitos por trilhas partindo de várias
partes do país, mas é na Dutra que mais se vê romarias, especialmente por
ocasião da data magna da santa, 12 de outubro. Há romarias a pé, de cavalo, de
charretes, de bicicletas e, claro, nos ônibus de excursão, fretados pelas
igrejas para esta festividade.
Estamos, evidentemente, falando no âmbito católico, a
religião que mais participou da formação cultural do brasileiro, embora não se
devam desprezar as influências indígenas e africanas, e nem se esquecer da
virada evangélica que vem se processando desde a década de 80 do século
passado, época em que eu era um jovem guapo e trigueiro. É, portanto, algo que
já está bem sedimentado nos nossos conceitos e não causam estranheza, mesmo
quando já não se vivencia a fé. Um caminhoneiro percorrendo a Dutra não tem nenhum
estranhamento ao ver aquele monte de gente com cajados e terços nas mãos,
vestindo camisetas de cor berrante e imagens de suas respectivas paróquias.
Pode até ridicularizar a atitude, mas não se admira com ela. Entretanto, esse
esquema de sacrifícios por uma divindade que não se vê, que se faz discutível
no atendimento dos apelos que se fazem a ela e que por vezes tem a mão pesada
contra predisposições naturais de seus fiéis torna admirável tanta fidelidade,
e é preciso tentar compreender essas atitudes que, muitas vezes, parecem
contraintuitivas.
Um dos pontos a ser observado é: por que acreditamos em uma
transcendência? Tem a ver com a falta de clareza com a qual absorvemos o
universo, o que ocorre desde que nos entendemos por gente. E isso está no nosso
subconsciente ainda nos dias de hoje.
Sabe quando você fica em silêncio no quarto de dormir? À
noite, estamos privados da visão, nosso mais apurado sentido, e colocamos na
audição a tarefa de decifrar o mundo, o que já torna a coleta de dados mais
imprecisa. Há uma série de ruídos que são fáceis de decifrar, como os murmúrios
do vento, o ruído da chuva, um gato no telhado. Mas nem sempre é possível
traduzir com exatidão o que se passa lá fora. Não é preciso que haja nada de
especial, mas é a ciência de que há um universo girando para além da nossa
cognição.
Os processos que nos fazem entender que há um “lá fora” com
relação ao universo sensível são semelhantes ao quarto noturno. Aguçamos nossos
sentidos para compreender de onde vem os fenômenos observáveis e a sensação de
que tudo se move regido por uma forma de inteligência fica tão patente que se
torna difícil aceitar mecanismos outros.
Isso se desenvolve por milênios. E serve como uma luva não
somente para deduzir fenômenos naturais, mas para também para responder a
perguntas cabais no psicológico humano: o que há no post mortem? Como se
desenvolve a vida para além desta realidade vivida? Teremos uma vida “lá fora”?
No que ela seria diferente da vida real?
Percebem como esse pensamento de fundo pauta toda e qualquer
religião? A denúncia é feita pela própria origem da palavra: religar a
humanidade colocada no mundo sensível às origens dadas por suas supostas
divindades, como um filho que volta à casa de seu pai depois de ter passado
anos distante. Sendo um destino comum a todos, o mundo fica irmanado, tanto na
sua consciência de fim, quanto na sua perspectiva de realidade exterior. O que
muda são as formas, mas a lógica é sempre a mesma. Ou seja, não é algo de
indivíduos, mas da espécie como um todo. Ou seja de novo, a consciência humana
é moldada para crer em deuses.
Tudo isso chega a ser bonito. É um resumo da busca humana
por explicar a si mesma e de reconhecer sua pequenez. Isso não teria nada
demais se não representasse, na imensa maioria das vezes, um argumento para dar
balizas morais a priori, e, mais profundamente, a fazer o exercício do
poder.
Como é incerta a presença de algo “lá fora”, mas os sinais
são muito bons nesse sentido, é de se supor que haja ali uma vontade, já que
faz pouco sentido achar que o universo gire a troco de nada. Essa vontade não é
expressa em palavras, a não ser para meia dúzia de iniciados, que, em tese,
portam esse interesse da divindade sem que seja necessário provar nada. É
suficiente que eles existam, suas palavras têm uma espécie de fé pública para a
grande comunidade privada de contato direto. Os próprios ministros tendem,
conscientemente ou não, a imputar seus próprios valores à divindade, que
ficaria satisfeita com todos aqueles que cumprissem à risca seus supostos
ditames. E nós nos entregamos às interpretações dos iniciados porque eles
parecem trazer respostas para nossas questões, que são sempre muitas.
O substrato de fundo se apoia em dois quesitos: a
curiosidade e o instinto de preservação. Só que, parando para pensar,
percebemos que ambas se imiscuem. A curiosidade não é só uma distração de
desocupados que buscam saber das novidades acerca da filha dos outros, mas uma
ferramenta que permite agregar informações sobre fenômenos que podem ser
perigosos. Desta forma, sobrevive mais quem é curioso, ao contrário do que
preconiza o ditado do gato.
Então, sim, poderíamos pensar em uma vantagem evolutiva em
se crer em uma divindade, como, de resto, é vantajosa qualquer associação entre
indivíduos que, no final das contas, são muito mais fracos desunidos. Ao
contrário de um tubarão, que não tem grandes benefícios de agir em consórcio,
um pobre humaninho sozinho é presa fácil das feras e das circunstâncias. E a
religião é, sabemos, um dos principais ferramentais dos sentimentos de pertença
e de gregarismo.
Só que o fenômeno é bastante complexo, especialmente quando
observado pelo campo do psíquico, e podemos tentar algumas conclusões pela
observação das estruturas comuns dos pensamentos.
Sabemos que as religiões, algumas mais declaradamente,
outras de modo mais tácito, funcionam com uma lógica de submissão. Embora não
seja algo assumido, o fato é que deuses não são parceiros, mas superiores
hierárquicos. São chamados de pai, senhor, rei e outros termos que denotam uma
linha de subordinação, sempre com eles acima, como é de se supor. Essa é a
regra (das exceções, não vou tratar agora).
Mas onde nasce essa ideia de estar abaixo, de ser inferior?
De acordo com o psicanalista Alfred Adler, austríaco que travou uma vertente da
psicanálise de Freud, muito do nosso atitudinal vem da maneira como é
constituída nossa infância.
Comecemos com uma experiência pessoal. Quando eu era criança
pequena, tinha uma tia-avó que era caseira em uma chácara na região de Campo Limpo
Paulista. Era daquelas propriedades de lazer, e não de trabalho, exceção feita
à hortinha da própria tia Nica. Era uma terrinha toda bem equipada, com todas
essas coisas do estilo recanto do guerreiro: churrasqueira, campinho de futebol
e, claro, uma piscina. Não era, naturalmente, para o nosso bico, e sim dos
donos, então a atração era o pão caseiro da tia. Mas restava a observação, e,
na minha cabeça pueril, a piscina era enorme, tipo aquelas olímpicas, que
comportaria facilmente alguma competição local.
Anos depois, já com a tia Nica e o tio Antônio devidamente
encaminhados ao seu destino final, fui levar meu convite de casamento ao primo
Gilberto, que lá ficou remanescente. Como era comum que este último viesse nos
visitar, deixamos de ir à chácara, e, nisso, estou falando de mais de vinte
anos. No caminho, fui falando das recordações com a futura patroa, e de como
tinha lá uma piscina enorme. O fato é que, embora fosse de fato uma boa
piscina, dos tempos em que eram feitas de alvenaria, não tinha nada mais que
uma dessas modernas, feitas de fibra. Cheguei ao ponto de perguntar se os donos
tinham mudado o equipamento, ao que o primo garantiu que não. Era uma imagem
reservada tão distorcidamente na memória que era capaz de me fazer criar
realidades alternativas.
Isso não significa que eu sou louco, mas que era criança e,
portanto, via tudo maior do que vejo hoje, até mesmo por uma questão de
tamanho. Se hoje eu entrasse naquela piscina, ficaria com a cabeça para fora
estando de pé. Com meus cinco anos, morreria afogado inapelavelmente, o que nos
leva a concluir pelo óbvio - tamanho faz diferença.
Nas nossas raízes mais profundas, observamos que nascemos
biologicamente prematuros. Enquanto uma girafa pare filhos que já nascem
andando, ou um pintinho já sai do ovo pronto para uma alimentação muito próxima
à que terá por toda a vida, nós chegamos à luz em um grau de dependência
absoluta, sendo absolutamente impensável nossa sobrevivência sem os cuidados de
terceiros. As coisas são assim por motivos evolutivos que não cabem discutir
neste momento, mas o fato é que nós nascemos sob um signo de dependência e
desabrigo, caracterizados pela fragilidade extrema: incapacidade de articulação
física, fraqueza e pequenez.
Mesmo após o crescimento e ganho de autonomia, o percurso
que um ser humano traça para chegar ao seu formato final é longo. Um cão já é
adulto ao completar um ano de vida, enquanto nós levamos pelo menos quinze para
atingir o mesmo que isso. E, vamos e venhamos, e mesmo reconhecendo que os
processos mentais de um cachorro são altamente complexos, são muito diferentes
do que ocorre com humanos. Grosso modo, um cachorro está suficientemente
desenvolvido quando aprende o básico da sobrevivência, e mais alguns truques
para obter benesses, como as habituais caras de fofura. Já nós somos
praticamente escravos da nossa psiquê, enfrentando conteúdos abstratos por toda
a vida. A questão é que passamos muito tempo da nossa vida reconhecendo-nos
menores que nossos pais, nossos irmãos mais velhos, nossos parentes, nossos
vizinhos. Ainda que já muito capazes, continuamos sendo crianças. Menores e, de
certa forma, inferiores.
Isso não é um problema em si. É um processo natural de
transição, que vai paulatinamente diminuindo à medida que crescemos e ganhamos
novas capacidades e habilidades. Embora seja inconsciente, também a nova
realidade vai moldando a psiquê, de modo a nós percebermos já mais pareados com
o mundo adulto.
Mas, como eu disse, o processo é inconsciente, e, como tal,
arraigado. Uma parte desse complexo de inferioridade permanecerá até nas mentes
mais saudáveis, e quando eu me torno um adulto como os outros, minhas
estruturas mentais buscam por quem está acima agora. Permanece um rabicho na
minha personalidade traçada ainda criança, e a busca pela substituição dos pais
e adultos como um todo se dá na projeção futura: na prateleira vazia do degrau
de cima do complexo de inferioridade, surge um deus. Juntamos a insistência
psíquica da inferioridade com a sensação da existência do “lá fora” e
chancelamos que é inevitável que há um regente de nossos destinos.
Não se trata aqui do complexo de inferioridade descrito por
Adler como uma neurose, e falarei sobre ele com mais cuidado bem brevemente,
para não perder o fio do tema, mas de reconhecer como é difícil modificar algo
que estruturalmente é pouco maleável. Notem como temos dificuldades de
modificar opiniões, de superar (ou
mesmo reconhecer) vieses, de sepultar superstições, mesmo utilizando as
melhores ferramentas da lógica. Nossa cabeça é construída para trabalhar de
forma hierárquica, e isso facilita estruturas de dominação, como nas empresas,
nos governos, nas igrejas.
Alguns religiosos dirão que tudo isso é sandice, enquanto
outros dirão que isso é até mesmo prova inequívoca da existência de deus.
Afirmam que, se há uma estrutura voltada para a busca por uma divindade, é
porque se trata de uma necessidade humana, e, sendo necessário, não poderia ser
diferente do que é. Sendo assim, a estrutura religiosa do pensamento existe
para que os homens tenham capacidade de reconhecer deus.
Ora, na minha miserável opinião, o argumento é falacioso,
mais especificamente um retorsio argumenti, a falácia que busca
transformar um argumento contrário em um favorável. A ideia básica é reconhecer
a validade de um argumento, mas modificar seu sentido, para que seja mais
oneroso à tese original fazer um desmentido.
O que temos no caso? Que a substituição das instâncias
superiores na relação de inferioridade está correta, porque ela deve persistir
pelo reconhecimento da majestade do deus. Nossa inferioridade existe, o que,
por não desmentir o argumento, também não o invalida. Mas há problemas.
A substituição precisa ser feita? A ideia de subordinação
típica das relações com o divino é facilmente plasmada para outras relações,
como eu já disse: nos patrões, nos militares, nos governantes, nos legisladores
e mesmo em coisas mais dolorosas, como nas raças, nos sexos e nas capacidades.
Nossa continuidade nos pontos de inferioridade não pode ser uma justificativa
para colocar alguém no lugar dos pais quando chegamos à maturidade. Essa é a
razão pela qual a assunção desta relação é problemática: nós podemos sair do
complexo. Ora (direis), socialmente é necessário que existam hierarquias. Faz
sentido quando pensamos que há juízes que precisam julgar, presidentes que
precisam governar e così via, mas percebam a sutileza de que estamos
falando de papéis institucionais, e não de pessoas. O que vai além disso, é
abuso de poder.
Não fiquem bravos comigo, amigos religiosos. É meu ponto de
vista, refutável, modificável e, principalmente, não proíbe nossa amizade e
respeito mútuo. Bons ventos para todos!
Recomendação de leitura:
Este é um livro mais geral, sempre no espírito de que não há
controvérsia na psicanálise como filosofia. Já discuti a questão neste
texto.
ADLER, Alfred. A Ciência da Natureza Humana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
Aqui, o mapa do trajeto do Rio Paraíba do Sul:

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