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segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Sobre as estruturas que justificam a estrutura religiosa do pensamento e o Pequeno guia das grandes falácias – 77º tomo: o retorsio argumenti

(Por que a maioria esmagadora da população professa uma fé, ainda que a cada dia que passa ela fique mais difícil de justificar?)

“Mais cedo ou mais tarde a criança adquire consciência de sua inaptidão para lutar. Sem a ajuda de outrem, com as dificuldades da existência. Este sentimento de inferioridade é a força geradora, o ponto de partida dos impulsos combativos das crianças. Será ele que determinará o modo por que a criança adquirirá paz e segurança na vida, será ele que determinará a própria meta de sua existência e preparará o caminho pelo qual essa meta será atingida”.

Adler

Olá!

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Como tenho dito para vocês, minha vida tem sido um eterno trafegar entre São Paulo e Taubaté, pelo miolo daquele bico que se aproxima do Rio de Janeiro conhecido como Vale do Paraíba. Por óbvio, esse nome diz respeito ao acidente geográfico formado pelo Rio Paraíba do Sul, nascido pela junção os rios Paraitinga e Paraibuna, que fazem um insólito percurso que vai rumo à Capital, para fazer uma curva na altura de Guararema e pegar a rota do Rio, onde vai desaguar no mar. Coloquei um mapinha no fim do texto para facilitar a compreensão.

Toda essa região é muito antiga, logo dos tempos da fundação deste inusual país, e, como tal, tem uma carga muito grande de história, embora respeito ao patrimônio histórico não seja exatamente nosso forte. É daqui, por exemplo, que o movimento dos tropeiros nasceu e se consolidou, especialmente após a descoberta de minérios valiosos na região do que hoje é Minas Gerais. E também aqui várias povoações foram nascendo e crescendo, com a preponderância da cultura portuguesa, o que trouxe muitas igrejas para cá, algumas delas ainda hoje de pé.

Para mencionar apenas algumas das mais importantes, temos o santuário da Rosa Mística em Jambeiro, o convento de Frei Galvão em Guaratinguetá, o convento de Santa Clara em Taubaté, a igreja da Santa Cabeça em Silveiras, o mosteiro da Sagrada Face em Roseira, além de muitas e muitas outras, assim como novos espaços da religiosidade, como a Canção Nova em Cachoeira Paulista e o Memorial do Padre Leo em Lorena, além, obviamente, da basílica de Nossa Senhora Aparecida, em um conjunto composto pela bela igreja original e pela gigantesca igreja principal, assustadora em suas dimensões. Isso se deu por conta da velha e bastante conhecida história da padroeira: um grupo de pescadores lança suas redes no Rio Paraíba do Sul e traz o corpo de uma santa, mais especificamente de Nossa Senhora da Conceição, porém sem sua cabeça. Na sequência, lança a rede novamente e, desta vez, vem a cabeça, em perfeito encaixe. Ato contínuo, a pesca escassa de até então passou a ser abundante. Reputado como milagre, o fenômeno fez com que a imagem fosse acomodada em um nicho humilde e, a partir daí, pegando fama crescente, até chegar no atual status: padroeira do Brasil.

Então é muito comum para estes lados vermos as romarias, peregrinações de muitos quilômetros que tem seu nome baseado nas visitas que as pessoas de fé faziam a Roma, sede da Igreja Católica, onde, diz-se, São Pedro teria sido levado a martírio lá pelos idos do primeiro século da era comum. Essas caminhadas, dizem os romeiros, servem para reflexão, oração e penitência, o que dá alimento para a fé. Há caminhos feitos por trilhas partindo de várias partes do país, mas é na Dutra que mais se vê romarias, especialmente por ocasião da data magna da santa, 12 de outubro. Há romarias a pé, de cavalo, de charretes, de bicicletas e, claro, nos ônibus de excursão, fretados pelas igrejas para esta festividade.

Estamos, evidentemente, falando no âmbito católico, a religião que mais participou da formação cultural do brasileiro, embora não se devam desprezar as influências indígenas e africanas, e nem se esquecer da virada evangélica que vem se processando desde a década de 80 do século passado, época em que eu era um jovem guapo e trigueiro. É, portanto, algo que já está bem sedimentado nos nossos conceitos e não causam estranheza, mesmo quando já não se vivencia a fé. Um caminhoneiro percorrendo a Dutra não tem nenhum estranhamento ao ver aquele monte de gente com cajados e terços nas mãos, vestindo camisetas de cor berrante e imagens de suas respectivas paróquias. Pode até ridicularizar a atitude, mas não se admira com ela. Entretanto, esse esquema de sacrifícios por uma divindade que não se vê, que se faz discutível no atendimento dos apelos que se fazem a ela e que por vezes tem a mão pesada contra predisposições naturais de seus fiéis torna admirável tanta fidelidade, e é preciso tentar compreender essas atitudes que, muitas vezes, parecem contraintuitivas.

Um dos pontos a ser observado é: por que acreditamos em uma transcendência? Tem a ver com a falta de clareza com a qual absorvemos o universo, o que ocorre desde que nos entendemos por gente. E isso está no nosso subconsciente ainda nos dias de hoje.

Sabe quando você fica em silêncio no quarto de dormir? À noite, estamos privados da visão, nosso mais apurado sentido, e colocamos na audição a tarefa de decifrar o mundo, o que já torna a coleta de dados mais imprecisa. Há uma série de ruídos que são fáceis de decifrar, como os murmúrios do vento, o ruído da chuva, um gato no telhado. Mas nem sempre é possível traduzir com exatidão o que se passa lá fora. Não é preciso que haja nada de especial, mas é a ciência de que há um universo girando para além da nossa cognição.

Os processos que nos fazem entender que há um “lá fora” com relação ao universo sensível são semelhantes ao quarto noturno. Aguçamos nossos sentidos para compreender de onde vem os fenômenos observáveis e a sensação de que tudo se move regido por uma forma de inteligência fica tão patente que se torna difícil aceitar mecanismos outros.

Isso se desenvolve por milênios. E serve como uma luva não somente para deduzir fenômenos naturais, mas para também para responder a perguntas cabais no psicológico humano: o que há no post mortem? Como se desenvolve a vida para além desta realidade vivida? Teremos uma vida “lá fora”? No que ela seria diferente da vida real?

Percebem como esse pensamento de fundo pauta toda e qualquer religião? A denúncia é feita pela própria origem da palavra: religar a humanidade colocada no mundo sensível às origens dadas por suas supostas divindades, como um filho que volta à casa de seu pai depois de ter passado anos distante. Sendo um destino comum a todos, o mundo fica irmanado, tanto na sua consciência de fim, quanto na sua perspectiva de realidade exterior. O que muda são as formas, mas a lógica é sempre a mesma. Ou seja, não é algo de indivíduos, mas da espécie como um todo. Ou seja de novo, a consciência humana é moldada para crer em deuses.

Tudo isso chega a ser bonito. É um resumo da busca humana por explicar a si mesma e de reconhecer sua pequenez. Isso não teria nada demais se não representasse, na imensa maioria das vezes, um argumento para dar balizas morais a priori, e, mais profundamente, a fazer o exercício do poder.

Como é incerta a presença de algo “lá fora”, mas os sinais são muito bons nesse sentido, é de se supor que haja ali uma vontade, já que faz pouco sentido achar que o universo gire a troco de nada. Essa vontade não é expressa em palavras, a não ser para meia dúzia de iniciados, que, em tese, portam esse interesse da divindade sem que seja necessário provar nada. É suficiente que eles existam, suas palavras têm uma espécie de fé pública para a grande comunidade privada de contato direto. Os próprios ministros tendem, conscientemente ou não, a imputar seus próprios valores à divindade, que ficaria satisfeita com todos aqueles que cumprissem à risca seus supostos ditames. E nós nos entregamos às interpretações dos iniciados porque eles parecem trazer respostas para nossas questões, que são sempre muitas.

O substrato de fundo se apoia em dois quesitos: a curiosidade e o instinto de preservação. Só que, parando para pensar, percebemos que ambas se imiscuem. A curiosidade não é só uma distração de desocupados que buscam saber das novidades acerca da filha dos outros, mas uma ferramenta que permite agregar informações sobre fenômenos que podem ser perigosos. Desta forma, sobrevive mais quem é curioso, ao contrário do que preconiza o ditado do gato.

Então, sim, poderíamos pensar em uma vantagem evolutiva em se crer em uma divindade, como, de resto, é vantajosa qualquer associação entre indivíduos que, no final das contas, são muito mais fracos desunidos. Ao contrário de um tubarão, que não tem grandes benefícios de agir em consórcio, um pobre humaninho sozinho é presa fácil das feras e das circunstâncias. E a religião é, sabemos, um dos principais ferramentais dos sentimentos de pertença e de gregarismo.

Só que o fenômeno é bastante complexo, especialmente quando observado pelo campo do psíquico, e podemos tentar algumas conclusões pela observação das estruturas comuns dos pensamentos.

Sabemos que as religiões, algumas mais declaradamente, outras de modo mais tácito, funcionam com uma lógica de submissão. Embora não seja algo assumido, o fato é que deuses não são parceiros, mas superiores hierárquicos. São chamados de pai, senhor, rei e outros termos que denotam uma linha de subordinação, sempre com eles acima, como é de se supor. Essa é a regra (das exceções, não vou tratar agora).

Mas onde nasce essa ideia de estar abaixo, de ser inferior? De acordo com o psicanalista Alfred Adler, austríaco que travou uma vertente da psicanálise de Freud, muito do nosso atitudinal vem da maneira como é constituída nossa infância.

Comecemos com uma experiência pessoal. Quando eu era criança pequena, tinha uma tia-avó que era caseira em uma chácara na região de Campo Limpo Paulista. Era daquelas propriedades de lazer, e não de trabalho, exceção feita à hortinha da própria tia Nica. Era uma terrinha toda bem equipada, com todas essas coisas do estilo recanto do guerreiro: churrasqueira, campinho de futebol e, claro, uma piscina. Não era, naturalmente, para o nosso bico, e sim dos donos, então a atração era o pão caseiro da tia. Mas restava a observação, e, na minha cabeça pueril, a piscina era enorme, tipo aquelas olímpicas, que comportaria facilmente alguma competição local.

Anos depois, já com a tia Nica e o tio Antônio devidamente encaminhados ao seu destino final, fui levar meu convite de casamento ao primo Gilberto, que lá ficou remanescente. Como era comum que este último viesse nos visitar, deixamos de ir à chácara, e, nisso, estou falando de mais de vinte anos. No caminho, fui falando das recordações com a futura patroa, e de como tinha lá uma piscina enorme. O fato é que, embora fosse de fato uma boa piscina, dos tempos em que eram feitas de alvenaria, não tinha nada mais que uma dessas modernas, feitas de fibra. Cheguei ao ponto de perguntar se os donos tinham mudado o equipamento, ao que o primo garantiu que não. Era uma imagem reservada tão distorcidamente na memória que era capaz de me fazer criar realidades alternativas.

Isso não significa que eu sou louco, mas que era criança e, portanto, via tudo maior do que vejo hoje, até mesmo por uma questão de tamanho. Se hoje eu entrasse naquela piscina, ficaria com a cabeça para fora estando de pé. Com meus cinco anos, morreria afogado inapelavelmente, o que nos leva a concluir pelo óbvio - tamanho faz diferença.

Nas nossas raízes mais profundas, observamos que nascemos biologicamente prematuros. Enquanto uma girafa pare filhos que já nascem andando, ou um pintinho já sai do ovo pronto para uma alimentação muito próxima à que terá por toda a vida, nós chegamos à luz em um grau de dependência absoluta, sendo absolutamente impensável nossa sobrevivência sem os cuidados de terceiros. As coisas são assim por motivos evolutivos que não cabem discutir neste momento, mas o fato é que nós nascemos sob um signo de dependência e desabrigo, caracterizados pela fragilidade extrema: incapacidade de articulação física, fraqueza e pequenez.

Mesmo após o crescimento e ganho de autonomia, o percurso que um ser humano traça para chegar ao seu formato final é longo. Um cão já é adulto ao completar um ano de vida, enquanto nós levamos pelo menos quinze para atingir o mesmo que isso. E, vamos e venhamos, e mesmo reconhecendo que os processos mentais de um cachorro são altamente complexos, são muito diferentes do que ocorre com humanos. Grosso modo, um cachorro está suficientemente desenvolvido quando aprende o básico da sobrevivência, e mais alguns truques para obter benesses, como as habituais caras de fofura. Já nós somos praticamente escravos da nossa psiquê, enfrentando conteúdos abstratos por toda a vida. A questão é que passamos muito tempo da nossa vida reconhecendo-nos menores que nossos pais, nossos irmãos mais velhos, nossos parentes, nossos vizinhos. Ainda que já muito capazes, continuamos sendo crianças. Menores e, de certa forma, inferiores.

Isso não é um problema em si. É um processo natural de transição, que vai paulatinamente diminuindo à medida que crescemos e ganhamos novas capacidades e habilidades. Embora seja inconsciente, também a nova realidade vai moldando a psiquê, de modo a nós percebermos já mais pareados com o mundo adulto.

Mas, como eu disse, o processo é inconsciente, e, como tal, arraigado. Uma parte desse complexo de inferioridade permanecerá até nas mentes mais saudáveis, e quando eu me torno um adulto como os outros, minhas estruturas mentais buscam por quem está acima agora. Permanece um rabicho na minha personalidade traçada ainda criança, e a busca pela substituição dos pais e adultos como um todo se dá na projeção futura: na prateleira vazia do degrau de cima do complexo de inferioridade, surge um deus. Juntamos a insistência psíquica da inferioridade com a sensação da existência do “lá fora” e chancelamos que é inevitável que há um regente de nossos destinos.

Não se trata aqui do complexo de inferioridade descrito por Adler como uma neurose, e falarei sobre ele com mais cuidado bem brevemente, para não perder o fio do tema, mas de reconhecer como é difícil modificar algo que estruturalmente é pouco maleável. Notem como temos dificuldades de modificar opiniões, de superar (ou mesmo reconhecer) vieses, de sepultar superstições, mesmo utilizando as melhores ferramentas da lógica. Nossa cabeça é construída para trabalhar de forma hierárquica, e isso facilita estruturas de dominação, como nas empresas, nos governos, nas igrejas.

Alguns religiosos dirão que tudo isso é sandice, enquanto outros dirão que isso é até mesmo prova inequívoca da existência de deus. Afirmam que, se há uma estrutura voltada para a busca por uma divindade, é porque se trata de uma necessidade humana, e, sendo necessário, não poderia ser diferente do que é. Sendo assim, a estrutura religiosa do pensamento existe para que os homens tenham capacidade de reconhecer deus.

Ora, na minha miserável opinião, o argumento é falacioso, mais especificamente um retorsio argumenti, a falácia que busca transformar um argumento contrário em um favorável. A ideia básica é reconhecer a validade de um argumento, mas modificar seu sentido, para que seja mais oneroso à tese original fazer um desmentido.

O que temos no caso? Que a substituição das instâncias superiores na relação de inferioridade está correta, porque ela deve persistir pelo reconhecimento da majestade do deus. Nossa inferioridade existe, o que, por não desmentir o argumento, também não o invalida. Mas há problemas.

A substituição precisa ser feita? A ideia de subordinação típica das relações com o divino é facilmente plasmada para outras relações, como eu já disse: nos patrões, nos militares, nos governantes, nos legisladores e mesmo em coisas mais dolorosas, como nas raças, nos sexos e nas capacidades. Nossa continuidade nos pontos de inferioridade não pode ser uma justificativa para colocar alguém no lugar dos pais quando chegamos à maturidade. Essa é a razão pela qual a assunção desta relação é problemática: nós podemos sair do complexo. Ora (direis), socialmente é necessário que existam hierarquias. Faz sentido quando pensamos que há juízes que precisam julgar, presidentes que precisam governar e così via, mas percebam a sutileza de que estamos falando de papéis institucionais, e não de pessoas. O que vai além disso, é abuso de poder.

Não fiquem bravos comigo, amigos religiosos. É meu ponto de vista, refutável, modificável e, principalmente, não proíbe nossa amizade e respeito mútuo. Bons ventos para todos!

Recomendação de leitura:

Este é um livro mais geral, sempre no espírito de que não há controvérsia na psicanálise como filosofia. Já discuti a questão neste texto.

ADLER, Alfred. A Ciência da Natureza Humana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

Aqui, o mapa do trajeto do Rio Paraíba do Sul:





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