(Não é qualquer estultícia que pode ser nivelado a evidências consistentes. Melhor tratar besteira como besteira)
“A ignorância gera mais confiança do que o conhecimento: são os que sabem pouco, e não os que sabem muito, que afirmam positivamente que esse ou aquele problema nunca pode ser resolvido pela ciência”
Charles Darwin
Olá!
Temos uma tendência em sermos conservadores com coisas que
gostamos muito. É como se quiséssemos colocá-las em uma redoma de vidro para
evitar intempéries e estragos. O resultado é que, se por um lado temos o objeto
preservado, por outro não extraímos tudo o que ele pode dar a nós.
Claro que me refiro a café. Estamos acostumados com aquele
líquido quentinho, que nos anima a levantar e encarar o dia, que se mantém por
longos minutos em nosso paladar enquanto nos preparamos para a comédia do
dia-a-dia. Isso tudo é afetivo, e queremos o mesmo efeito sempre, esquecendo
que haverá os dias de pressa, os dias de frustração, os dias de luta e luto.
Por isso, entregar nosso afeto unicamente a um café é injusto com a própria
bebida, que pode passar a se vincular com desafetos que não são dela.
Por essa razão, experimentar é uma ótima opção. Um café não
precisa ser só daquele jeito ao qual já estamos acostumados, embora isso não
signifique que não deva ser consumido como sempre. Uma das opções que
experimentei (e gostei) foi o cold brew, o café extraído a frio, que
pode ser usado tanto puro, quanto misturado a outras bebidas, principalmente
drinques. Puristas como um todo podem achar que é uma heresia, uma
excrescência, um despautério, uma insensatez, um dislate, mas eu achei tão
legal a brincadeira que fui me inteirar do processo, usando um método que é
apropriado para tanto, o Mizudashi.
É um utensílio fabricado pela consagrada Hario, que consiste em um jarro com um filtro de nylon extrafino, onde o café já moído ficará em contato com a água por bastante tempo, já que este é o fator de extração.
O pó deverá ser moído mais grosso do que o convencional,
semelhantemente ao que fazemos com uma prensa
francesa, para evitar que se extraia muito amargor.
O pó é colocado no interior do filtro e coloca-se a água
fria, e depois é colocada a tampa para proteger a mistura de resíduos.
A quantidade de água deve ser suficiente para permitir que o
conjunto pó-filtro fique imerso durante todo o tempo da maceração, que deve ser
entre 12 e 24 horas, dependendo da torra do pó e da espécie do café. Os mais
delicados dependem de mais tempo de extração.
Este tempo deverá ser cumprido dentro da geladeira, o que
explica a lentidão do processo: extrações a frio tiram solutos de forma bem
menos acelerada, e age quimicamente em outros componentes do café, o que lhe
traz características únicas. Um cold brew não é parecido com um café extraído a
quente, mesmo que se aqueça o líquido a posteriori.
Nome do utensílio: Jarro
de extração a frio
Tipo de técnica:
Infusão
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: grossa
Dinâmica: Deposita-se
o pó no filtro de nylon, encaixa-se o mesmo no jarro e despeja-se água fria ou
gelada no conjunto, fechando-o em seguida. O jarro já preenchido deve ser
levado Pa geladeira por um mínimo de 12 horas e um máximo de 24 horas, quando
então deverá ser removido o filtro contendo o café. O líquido resultante pode
ser tomado puro ou em mistura com outras bebidas.
Resíduos: Baixo
Temperatura de saída: Baixíssima
Nível de ritual: médio
E essa é a magia da coisa. A realidade não é uma coisa unívoca, que só tem uma solução para tudo. Há sempre mais propostas do que o limitado número habitual, que guiamos mais por nossas preferências que por nossas racionalizações.
Mas é preciso cuidado. Nem toda solução é boa, e de cara dá
para deduzir algumas coisas que não dão certo.
Dou um exemplo ligado ao café. Certa vez, fiz uma
experiência bizarra. Partindo da premissa que adicionar umas pitadas de canela
dá uma salvada em cafés ruins, resolvi fazer um chá de canela para escoar no
café. O resultado foi horroroso, e era óbvio que seria. Chá de canela tem um
sabor muito forte, e dificilmente é palatável na sua forma pura. Junte-se isso
a um café meia boca e teremos um líquido intragável. Isso não precisava ser
realizado para ser constatado, a não ser por pura teimosia. Já a extração de um
café a frio pode ser deduzida como razoável, e aí o esforço vale, especialmente
pela expectativa de boas surpresas.
Essa historinha serve como alegoria para a avaliação do que
vale a pena ser estudado quando queremos trazer uma resposta a uma questão que
nos aflige. Diante da dúvida de como melhorar um café chinfrim, é mais razoável
supor que uma pequena intervenção trará melhores resultados que uma virada de
ponta-cabeça nas proporções da fórmula, porque aí há várias coisas em jogo:
desnaturação de ambos os componentes, deslocamento da função de um deles,
utilização de um elemento inabitual na relação e etc. É melhor compor com a
solução mais simples primeiro: uma pitadinha de canela resolve muito bem para
pequenas correções. A não ser que não se goste de canela.
Não é novidade o que trago aqui. Chama-se navalha de Ockham
e já tratei dela aqui.
Mas não é só essa navalha epistemológica que existe, já que há outras maneiras
de se delimitar áreas de conhecimento, e as navalhas nada mais são do que
artifícios para dizer o que uma coisa não é: corto as arestas que ficam
tentando se aderir ao objeto, e deixo ele limpinho.
Dá para notar, sendo assim, que as navalhas são subsidiárias
das metodologias de pesquisa. Não são métodos em si, mas ferramentas que buscam
dar limites às hipóteses às quais devemos correr atrás, porque a boa filosofia
manda utilizar o princípio da simplicidade, e isso tem uma razão até mesmo
econômica: o caminho mais simples é mais rápido, mais barato e mais coerente na
imensa maioria das vezes. Somente após esgotada sua possibilidade, partimos
para algo mais complexo. É até natural.
Outras navalhas foram sendo definidas ao longo do tempo, e o
caso da experimentação da Mizudashi me inspirou a falar sobre a navalha de
Hitchens, que tem toda uma história interessante por trás dela. Vamos começar.
Durante toda a história da Filosofia, diferentes olhares
sobre a questão das divindades foram levantados. Seja como pano de fundo da
realidade dos filósofos da physis, seja como principal objeto na
filosofia medieval, seja transformada no deísmo dos modernos, o fato é que, até
o século XIX, filósofos ateus eram exceções. Os motivos são vários, e o
principal era a falta de subsídios para justificar um universo puramente
material, em que não houvesse um motor a regê-lo. Havia poucos abnegados que
cravavam a inexistência de deuses, mesmo aqueles mais difusos e etéreos,
impessoais.
Ocorre que o mundo girou incessantemente e o sucesso da
Revolução Científica em explicar uma realidade independente de deidades, aliado
ao fracasso da Revolução Francesa em aperfeiçoar as relações de forças
políticas fizeram com que a filosofia começasse a considerar com mais seriedade
um mundo sem deus, a ponto de se notar, desta vez, uma tendência mais clara
nesse sentido. Marx chamava a religião de ópio
do povo; Nietzsche proclamava a morte
de Deus, enquanto Freud o considerava fruto de uma neurose
infantil. Já Darwin lança a Teoria
da Evolução, tirando das mãos divinas as espécies criadas prontas, o que
gera rebuliço até hoje. Ficaram conhecidos como Quatro Cavaleiros do Ateísmo,
embora Darwin, na verdade, fosse agnóstico, parafraseando a passagem bíblica
que fala dos quatro cavaleiros do apocalipse que prenunciam o fim dos tempos:
“Depois, vi o Cordeiro abrir o primeiro selo e ouvi um dos quatro Animais clamar com voz de trovão: ‘Vem!’. Vi aparecer então um cavalo branco. O seu cavaleiro tinha um arco; foi-lhe dada uma coroa e ele partiu como vencedor para tornar a vencer. Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo Animal clamar: ‘Vem!’. Partiu então outro cavalo, vermelho. A quem o montava foi dado tirar a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros; e foi-lhe dada uma grande espada. Quando abriu o terceiro selo, ouvi o terceiro Animal clamar: ‘Vem!’. E vi aparecer um cavalo preto. Seu cavaleiro tinha uma balança na mão. Ouvi então como que uma voz clamar no meio dos quatro Animais: ‘Uma medida de trigo por um denário, e três medidas de cevada por um denário; mas não danifiques o azeite e o vinho!’. Quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto Animal, que clamava: ‘Vem!’. E vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e a região dos mortos o seguia. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras”. - Ap 6, 1-8 (disponível em https.www.bibliacatolica.com.br).
Os quatro cavaleiros seriam representações da sequência que
conduziria ao fim do mundo: a sede de poder que conduz à guerra, que conduz à
fome, que conduz à morte. É óbvio que a alegoria se torna um tanto exagerada
para ser aplicada aos pensadores em questão, mas é bem representativa do medo
que seu descolamento causava à estrutura religiosa, símbolos do paulatino
afastamento dos homens de suas deidades, de modo que todos foram praguejados
como se fossem juízes em jogos da Portuguesa.
Em um pêndulo onde ora havia mais desvinculação com a
religião, ora menos, o pensamento médio foi flutuando em uma média, até que os
acontecimentos do famoso 11 de setembro de 2001 desencadearam uma nova reação
contra a religião, tendo em vista a dimensão do evento e seu móbile religioso.
Surgiram vários pensadores que iniciaram um quase combate à influência social
dos religiosos que, em nome de Deus, podem se permitir qualquer barbárie.
Nesse contexto, em meados da primeira década do século XXI,
surgem os Quatro Cavaleiros do Novo Ateísmo (ou variantes assemelhadas).
Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens e Sam Harris são
pensadores que não somente se declararam ateus, mas que passaram a combater a
religião como um mal para a sociedade. Não disparavam suas armas unicamente
contra o Islã, mas a provar que a ideia de um deus era uma irracionalidade que
conduzia a legitimação de barbáries, como se pode comprovar ao longo da
história.
Dentre os quatro, Dawkins é um cientista, Harris e Dennett
são filósofos e Hitchens era jornalista, ou seja, mais do que os outros, a
palavra era a matéria-prima de seu trabalho. Talvez por isso, fosse o mais
incisivo dos quatro, principalmente por conta de suas construções pingentes,
difíceis de contestar mesmo pelos mais bem preparados opositores. Ficou célebre
por seus livros e capacidade de debate, e, evidentemente, por sua fraseologia.
É provável que a mais memorável de todas seja aquela que ficou conhecida como
Navalha de Hitchens. Ele dizia que “o que pode ser afirmado sem provas, pode
ser refutado sem provas”. A ideia original é antiga, provavelmente sintetizada
por Pierre-Simon de Laplace ainda no século XIX, ao afirmar que “o peso da
evidência para uma alegação extraordinária deve ser proporcional à sua
estranheza”. A navalha de Hitchens seria, então, um corolário de uma
delimitação que, no fundo, é metodológica.
E o que significa essa navalha? Quando fazemos afirmações de
fundo filosófico, é admissível que a sua base de sustentação seja calcada na
lógica. Isso porque a filosofia se serve unicamente do raciocínio para
construir suas teorias. Ela é o fundamento dos princípios gerais do pensamento,
e ainda prescindem de confronto direto com a realidade em si mesma. Já o papel
da ciência é de explicar a realidade, e isso não pode evitar verificação e
experiência. O empirismo que é facultativo na filosofia, é obrigatório na
ciência, porque esta é feita de provas. Na maior admissibilidade de uma
abertura, essas provas podem não ser obtidas no momento em que são
hipotetizadas, mas em algum momento deverão ser. Percebam que, neste último
caso, uma declaração científica permanecerá hipotética durante todo o tempo em
que não houver tecnologia disponível para a obtenção de evidências. Mas o
fundamento da ciência pode ser resumido na palavra “prova”.
É simples compreender isso. Vamos falar do tema evolução, já
que resvalamos nele. À questão sobre quem criou as espécies, temos algumas
respostas possíveis. Quando se afirma ter sido um princípio de seleção natural
que parte de pressões ambientais impostas aos seres vivos, para que permaneçam
as espécies mais bem adaptadas, temos dificuldades, já que não vemos à nossa
frente uma espécie se transformando em outra*. Mas há provas indiretas
abundantes: o registro fóssil comprova que existiram espécies que não estão
mais aqui; a anatomia comparada permite verificar que as espécies se assemelham
umas às outras, de forma a apontar para um ancestral comum; os órgãos
vestigiais indicam que a espécie sofreu modificações que inutilizaram certas
estruturas orgânicas; a estrutura celular permite verificar as semelhanças e
diferenças entre as espécies, afastando-se ou aproximando-se conforme sua
classificação biológica; ainda é possível perceber como a distribuição
geográfica das espécies faz com que determinados parentescos sejam mais
próximos que outros, e como espécies de alto nível de endogenia sejam
preponderantes em ambientes mais isolados, como a Oceania, Madagascar e Ilha de
Páscoa. Provas indiretas, mas provas. O conjunto de comprovações é robusto, e,
mesmo que contestáveis, mantêm-se sólidos por seus próprios fundamentos. Se for
considerada a necessidade de comprovações extraordinárias, elas estão aí.
O que acontece se afirmarmos que há alguma forma de
inteligência por trás do surgimento de espécies? A primeira coisa é estabelecer
que inteligência é essa, de onde surgiu e porque resolveu construir espécies.
Se as criou prontas, o que significam todas as evidências evolutivas que não
fariam sentido em um ambiente guiado, especialmente os resíduos fósseis.
Voltando à inteligência, deve-se explicar por que essa, e não outra, e assim
por diante. E, principalmente, que provas temos de tudo isso?
A navalha de Hitchens estabelece, portanto, que imiscuir
questões que não obedecem a princípios científicos de evidência e verificação
no âmbito científico é um ato que pode ser derrubado com as mesmas ferramentas.
Eu não posso contestar a lei da gravidade simplesmente afirmando que as mãos de
Deus sustentam o universo. É preciso provar isso. Do contrário, basta a mim
afirmar que Deus não conseguiria passar desodorante enquanto segura as estrelas
e planetas. É jocoso, mas serve como exemplo.
É a velha questão do ônus da prova. A quem cabe o peso de
demonstrar válida uma afirmação? A quem a faz, não? Não posso falar por aí que
vi seu par te mandando bola nas costas sem uma mísera foto, nestes tempos de
celular na mão. Se eu afirmo, cabe a mim provar que estou certo, e não a você
provar que estou errado. E quanto mais difícil for a minha afirmação, melhores
as provas que deverão ser apresentadas. Na talaricada acima, se não há foto,
gravação, mensagem de zap ou qualquer coisa, posso simplesmente dizer que o
motivador da fofoca é intriga, inveja ou qualquer outra coisa que eu também não
posso provar, entenderam? É, portanto, uma navalha da economia: não é preciso
perder tempo construindo refutações sofisticadas para argumentos tão sólidos
quanto uma faca na manteiga.
A navalha de Hitchens seria contrária à própria filosofia? A
resposta é não. Ela não se opõe a afirmações que um dia possam ser comprovadas
como verdadeiras, mas à assunção de hipóteses como reflexo da realidade. Outra
coisa: afirmações filosóficas que se pautam em consequências da realidade são
aceitáveis em seu próprio âmbito. Se querem se imiscuir no processo científico,
precisam ser convertidas. Mas com que? Trazendo provas, para virar ciência. É
isso. Simples assim.
O fato é que muitas vezes afirmações de cunho esotérico ou
religioso se travestem de filosóficas apenas para ganhar status de
racionalmente lógicas, e, com isso, estarem no rumo da cientificidade, o que é
uma esparrela, na maioria das vezes. Hitchens detecta a malícia de quem quer
dar estatuto científico a teses que claramente não são e as coloca no âmbito
daquelas que devem ser postas de lado sem grandes esforços. Ele estabelece essa
regra sem querer torná-la um estatuto oficial, daqueles que ficam escritos nas
pedras acadêmicas, mas às vezes ser zombeteiro funciona melhor do que criar
manuais a serem seguidos criteriosamente e não ser compreendido pelo amplo
público.
Então é isso. Bom é que tenhamos em mente que não é muito
provável que nosso café aceite qualquer bobagem. Tomá-lo gelado não é uma
dessas. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Eu já falei de Dawkins no blog, aqui
e aqui.
Falo agora sobre Hitchens e certamente falarei sobre os outros dois cavaleiros,
no tempo certo. A obra-prima do personagem principal deste texto é o excelente
livro abaixo:
HITCHENS, Christopher. Deus não é Grande: Como a
Religião Envenena Tudo. Rio de Janeiro: Globo, 2016.
*Embora isso seja perceptível a nível microscópico.
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