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segunda-feira, 24 de março de 2025

O café filosófico do quotidiano – a Navalha de Hitchens como síntese do que se admite como prova

(Não é qualquer estultícia que pode ser nivelado a evidências consistentes. Melhor tratar besteira como besteira)

“A ignorância gera mais confiança do que o conhecimento: são os que sabem pouco, e não os que sabem muito, que afirmam positivamente que esse ou aquele problema nunca pode ser resolvido pela ciência”

Charles Darwin

Olá!

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Temos uma tendência em sermos conservadores com coisas que gostamos muito. É como se quiséssemos colocá-las em uma redoma de vidro para evitar intempéries e estragos. O resultado é que, se por um lado temos o objeto preservado, por outro não extraímos tudo o que ele pode dar a nós.

Claro que me refiro a café. Estamos acostumados com aquele líquido quentinho, que nos anima a levantar e encarar o dia, que se mantém por longos minutos em nosso paladar enquanto nos preparamos para a comédia do dia-a-dia. Isso tudo é afetivo, e queremos o mesmo efeito sempre, esquecendo que haverá os dias de pressa, os dias de frustração, os dias de luta e luto. Por isso, entregar nosso afeto unicamente a um café é injusto com a própria bebida, que pode passar a se vincular com desafetos que não são dela.

Por essa razão, experimentar é uma ótima opção. Um café não precisa ser só daquele jeito ao qual já estamos acostumados, embora isso não signifique que não deva ser consumido como sempre. Uma das opções que experimentei (e gostei) foi o cold brew, o café extraído a frio, que pode ser usado tanto puro, quanto misturado a outras bebidas, principalmente drinques. Puristas como um todo podem achar que é uma heresia, uma excrescência, um despautério, uma insensatez, um dislate, mas eu achei tão legal a brincadeira que fui me inteirar do processo, usando um método que é apropriado para tanto, o Mizudashi.


É um utensílio fabricado pela consagrada Hario, que consiste em um jarro com um filtro de nylon extrafino, onde o café já moído ficará em contato com a água por bastante tempo, já que este é o fator de extração.

O pó deverá ser moído mais grosso do que o convencional, semelhantemente ao que fazemos com uma prensa francesa, para evitar que se extraia muito amargor.

O pó é colocado no interior do filtro e coloca-se a água fria, e depois é colocada a tampa para proteger a mistura de resíduos.

A quantidade de água deve ser suficiente para permitir que o conjunto pó-filtro fique imerso durante todo o tempo da maceração, que deve ser entre 12 e 24 horas, dependendo da torra do pó e da espécie do café. Os mais delicados dependem de mais tempo de extração.

Este tempo deverá ser cumprido dentro da geladeira, o que explica a lentidão do processo: extrações a frio tiram solutos de forma bem menos acelerada, e age quimicamente em outros componentes do café, o que lhe traz características únicas. Um cold brew não é parecido com um café extraído a quente, mesmo que se aqueça o líquido a posteriori.


Nome do utensílio: Jarro de extração a frio

Tipo de técnica:  Infusão

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: Deposita-se o pó no filtro de nylon, encaixa-se o mesmo no jarro e despeja-se água fria ou gelada no conjunto, fechando-o em seguida. O jarro já preenchido deve ser levado Pa geladeira por um mínimo de 12 horas e um máximo de 24 horas, quando então deverá ser removido o filtro contendo o café. O líquido resultante pode ser tomado puro ou em mistura com outras bebidas.

Resíduos: Baixo 

Temperatura de saída: Baixíssima

Nível de ritual: médio

E essa é a magia da coisa. A realidade não é uma coisa unívoca, que só tem uma solução para tudo. Há sempre mais propostas do que o limitado número habitual, que guiamos mais por nossas preferências que por nossas racionalizações.

Mas é preciso cuidado. Nem toda solução é boa, e de cara dá para deduzir algumas coisas que não dão certo.

Dou um exemplo ligado ao café. Certa vez, fiz uma experiência bizarra. Partindo da premissa que adicionar umas pitadas de canela dá uma salvada em cafés ruins, resolvi fazer um chá de canela para escoar no café. O resultado foi horroroso, e era óbvio que seria. Chá de canela tem um sabor muito forte, e dificilmente é palatável na sua forma pura. Junte-se isso a um café meia boca e teremos um líquido intragável. Isso não precisava ser realizado para ser constatado, a não ser por pura teimosia. Já a extração de um café a frio pode ser deduzida como razoável, e aí o esforço vale, especialmente pela expectativa de boas surpresas.

Essa historinha serve como alegoria para a avaliação do que vale a pena ser estudado quando queremos trazer uma resposta a uma questão que nos aflige. Diante da dúvida de como melhorar um café chinfrim, é mais razoável supor que uma pequena intervenção trará melhores resultados que uma virada de ponta-cabeça nas proporções da fórmula, porque aí há várias coisas em jogo: desnaturação de ambos os componentes, deslocamento da função de um deles, utilização de um elemento inabitual na relação e etc. É melhor compor com a solução mais simples primeiro: uma pitadinha de canela resolve muito bem para pequenas correções. A não ser que não se goste de canela.

Não é novidade o que trago aqui. Chama-se navalha de Ockham e já tratei dela aqui. Mas não é só essa navalha epistemológica que existe, já que há outras maneiras de se delimitar áreas de conhecimento, e as navalhas nada mais são do que artifícios para dizer o que uma coisa não é: corto as arestas que ficam tentando se aderir ao objeto, e deixo ele limpinho.

Dá para notar, sendo assim, que as navalhas são subsidiárias das metodologias de pesquisa. Não são métodos em si, mas ferramentas que buscam dar limites às hipóteses às quais devemos correr atrás, porque a boa filosofia manda utilizar o princípio da simplicidade, e isso tem uma razão até mesmo econômica: o caminho mais simples é mais rápido, mais barato e mais coerente na imensa maioria das vezes. Somente após esgotada sua possibilidade, partimos para algo mais complexo. É até natural.

Outras navalhas foram sendo definidas ao longo do tempo, e o caso da experimentação da Mizudashi me inspirou a falar sobre a navalha de Hitchens, que tem toda uma história interessante por trás dela. Vamos começar.

Durante toda a história da Filosofia, diferentes olhares sobre a questão das divindades foram levantados. Seja como pano de fundo da realidade dos filósofos da physis, seja como principal objeto na filosofia medieval, seja transformada no deísmo dos modernos, o fato é que, até o século XIX, filósofos ateus eram exceções. Os motivos são vários, e o principal era a falta de subsídios para justificar um universo puramente material, em que não houvesse um motor a regê-lo. Havia poucos abnegados que cravavam a inexistência de deuses, mesmo aqueles mais difusos e etéreos, impessoais.

Ocorre que o mundo girou incessantemente e o sucesso da Revolução Científica em explicar uma realidade independente de deidades, aliado ao fracasso da Revolução Francesa em aperfeiçoar as relações de forças políticas fizeram com que a filosofia começasse a considerar com mais seriedade um mundo sem deus, a ponto de se notar, desta vez, uma tendência mais clara nesse sentido. Marx chamava a religião de ópio do povo; Nietzsche proclamava a morte de Deus, enquanto Freud o considerava fruto de uma neurose infantil. Já Darwin lança a Teoria da Evolução, tirando das mãos divinas as espécies criadas prontas, o que gera rebuliço até hoje. Ficaram conhecidos como Quatro Cavaleiros do Ateísmo, embora Darwin, na verdade, fosse agnóstico, parafraseando a passagem bíblica que fala dos quatro cavaleiros do apocalipse que prenunciam o fim dos tempos:

“Depois, vi o Cordeiro abrir o primeiro selo e ouvi um dos quatro Animais clamar com voz de trovão: ‘Vem!’. Vi aparecer então um cavalo branco. O seu cavaleiro tinha um arco; foi-lhe dada uma coroa e ele partiu como vencedor para tornar a vencer. Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo Animal clamar: ‘Vem!’. Partiu então outro cavalo, vermelho. A quem o montava foi dado tirar a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros; e foi-lhe dada uma grande espada. Quando abriu o terceiro selo, ouvi o terceiro Animal clamar: ‘Vem!’. E vi aparecer um cavalo preto. Seu cavaleiro tinha uma balan­ça na mão. Ouvi então como que uma voz clamar no meio dos quatro Animais: ‘Uma medida de trigo por um denário, e três medidas de cevada por um denário; mas não danifiques o azeite e o vinho!’. Quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto Animal, que clamava: ‘Vem!’. E vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e a região dos mortos o seguia. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras”. - Ap 6, 1-8 (disponível em https.www.bibliacatolica.com.br).

Os quatro cavaleiros seriam representações da sequência que conduziria ao fim do mundo: a sede de poder que conduz à guerra, que conduz à fome, que conduz à morte. É óbvio que a alegoria se torna um tanto exagerada para ser aplicada aos pensadores em questão, mas é bem representativa do medo que seu descolamento causava à estrutura religiosa, símbolos do paulatino afastamento dos homens de suas deidades, de modo que todos foram praguejados como se fossem juízes em jogos da Portuguesa.

Em um pêndulo onde ora havia mais desvinculação com a religião, ora menos, o pensamento médio foi flutuando em uma média, até que os acontecimentos do famoso 11 de setembro de 2001 desencadearam uma nova reação contra a religião, tendo em vista a dimensão do evento e seu móbile religioso. Surgiram vários pensadores que iniciaram um quase combate à influência social dos religiosos que, em nome de Deus, podem se permitir qualquer barbárie.

Nesse contexto, em meados da primeira década do século XXI, surgem os Quatro Cavaleiros do Novo Ateísmo (ou variantes assemelhadas). Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens e Sam Harris são pensadores que não somente se declararam ateus, mas que passaram a combater a religião como um mal para a sociedade. Não disparavam suas armas unicamente contra o Islã, mas a provar que a ideia de um deus era uma irracionalidade que conduzia a legitimação de barbáries, como se pode comprovar ao longo da história.

Dentre os quatro, Dawkins é um cientista, Harris e Dennett são filósofos e Hitchens era jornalista, ou seja, mais do que os outros, a palavra era a matéria-prima de seu trabalho. Talvez por isso, fosse o mais incisivo dos quatro, principalmente por conta de suas construções pingentes, difíceis de contestar mesmo pelos mais bem preparados opositores. Ficou célebre por seus livros e capacidade de debate, e, evidentemente, por sua fraseologia. É provável que a mais memorável de todas seja aquela que ficou conhecida como Navalha de Hitchens. Ele dizia que “o que pode ser afirmado sem provas, pode ser refutado sem provas”. A ideia original é antiga, provavelmente sintetizada por Pierre-Simon de Laplace ainda no século XIX, ao afirmar que “o peso da evidência para uma alegação extraordinária deve ser proporcional à sua estranheza”. A navalha de Hitchens seria, então, um corolário de uma delimitação que, no fundo, é metodológica.

E o que significa essa navalha? Quando fazemos afirmações de fundo filosófico, é admissível que a sua base de sustentação seja calcada na lógica. Isso porque a filosofia se serve unicamente do raciocínio para construir suas teorias. Ela é o fundamento dos princípios gerais do pensamento, e ainda prescindem de confronto direto com a realidade em si mesma. Já o papel da ciência é de explicar a realidade, e isso não pode evitar verificação e experiência. O empirismo que é facultativo na filosofia, é obrigatório na ciência, porque esta é feita de provas. Na maior admissibilidade de uma abertura, essas provas podem não ser obtidas no momento em que são hipotetizadas, mas em algum momento deverão ser. Percebam que, neste último caso, uma declaração científica permanecerá hipotética durante todo o tempo em que não houver tecnologia disponível para a obtenção de evidências. Mas o fundamento da ciência pode ser resumido na palavra “prova”.

É simples compreender isso. Vamos falar do tema evolução, já que resvalamos nele. À questão sobre quem criou as espécies, temos algumas respostas possíveis. Quando se afirma ter sido um princípio de seleção natural que parte de pressões ambientais impostas aos seres vivos, para que permaneçam as espécies mais bem adaptadas, temos dificuldades, já que não vemos à nossa frente uma espécie se transformando em outra*. Mas há provas indiretas abundantes: o registro fóssil comprova que existiram espécies que não estão mais aqui; a anatomia comparada permite verificar que as espécies se assemelham umas às outras, de forma a apontar para um ancestral comum; os órgãos vestigiais indicam que a espécie sofreu modificações que inutilizaram certas estruturas orgânicas; a estrutura celular permite verificar as semelhanças e diferenças entre as espécies, afastando-se ou aproximando-se conforme sua classificação biológica; ainda é possível perceber como a distribuição geográfica das espécies faz com que determinados parentescos sejam mais próximos que outros, e como espécies de alto nível de endogenia sejam preponderantes em ambientes mais isolados, como a Oceania, Madagascar e Ilha de Páscoa. Provas indiretas, mas provas. O conjunto de comprovações é robusto, e, mesmo que contestáveis, mantêm-se sólidos por seus próprios fundamentos. Se for considerada a necessidade de comprovações extraordinárias, elas estão aí.

O que acontece se afirmarmos que há alguma forma de inteligência por trás do surgimento de espécies? A primeira coisa é estabelecer que inteligência é essa, de onde surgiu e porque resolveu construir espécies. Se as criou prontas, o que significam todas as evidências evolutivas que não fariam sentido em um ambiente guiado, especialmente os resíduos fósseis. Voltando à inteligência, deve-se explicar por que essa, e não outra, e assim por diante. E, principalmente, que provas temos de tudo isso?

A navalha de Hitchens estabelece, portanto, que imiscuir questões que não obedecem a princípios científicos de evidência e verificação no âmbito científico é um ato que pode ser derrubado com as mesmas ferramentas. Eu não posso contestar a lei da gravidade simplesmente afirmando que as mãos de Deus sustentam o universo. É preciso provar isso. Do contrário, basta a mim afirmar que Deus não conseguiria passar desodorante enquanto segura as estrelas e planetas. É jocoso, mas serve como exemplo.

É a velha questão do ônus da prova. A quem cabe o peso de demonstrar válida uma afirmação? A quem a faz, não? Não posso falar por aí que vi seu par te mandando bola nas costas sem uma mísera foto, nestes tempos de celular na mão. Se eu afirmo, cabe a mim provar que estou certo, e não a você provar que estou errado. E quanto mais difícil for a minha afirmação, melhores as provas que deverão ser apresentadas. Na talaricada acima, se não há foto, gravação, mensagem de zap ou qualquer coisa, posso simplesmente dizer que o motivador da fofoca é intriga, inveja ou qualquer outra coisa que eu também não posso provar, entenderam? É, portanto, uma navalha da economia: não é preciso perder tempo construindo refutações sofisticadas para argumentos tão sólidos quanto uma faca na manteiga.

A navalha de Hitchens seria contrária à própria filosofia? A resposta é não. Ela não se opõe a afirmações que um dia possam ser comprovadas como verdadeiras, mas à assunção de hipóteses como reflexo da realidade. Outra coisa: afirmações filosóficas que se pautam em consequências da realidade são aceitáveis em seu próprio âmbito. Se querem se imiscuir no processo científico, precisam ser convertidas. Mas com que? Trazendo provas, para virar ciência. É isso. Simples assim.

O fato é que muitas vezes afirmações de cunho esotérico ou religioso se travestem de filosóficas apenas para ganhar status de racionalmente lógicas, e, com isso, estarem no rumo da cientificidade, o que é uma esparrela, na maioria das vezes. Hitchens detecta a malícia de quem quer dar estatuto científico a teses que claramente não são e as coloca no âmbito daquelas que devem ser postas de lado sem grandes esforços. Ele estabelece essa regra sem querer torná-la um estatuto oficial, daqueles que ficam escritos nas pedras acadêmicas, mas às vezes ser zombeteiro funciona melhor do que criar manuais a serem seguidos criteriosamente e não ser compreendido pelo amplo público.

Então é isso. Bom é que tenhamos em mente que não é muito provável que nosso café aceite qualquer bobagem. Tomá-lo gelado não é uma dessas. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Eu já falei de Dawkins no blog, aqui e aqui. Falo agora sobre Hitchens e certamente falarei sobre os outros dois cavaleiros, no tempo certo. A obra-prima do personagem principal deste texto é o excelente livro abaixo:

HITCHENS, Christopher. Deus não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo. Rio de Janeiro: Globo, 2016.

*Embora isso seja perceptível a nível microscópico.

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