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quarta-feira, 26 de março de 2025

Apateísmo: o que ele é e o que ele não é

(Apateísmo é um termo tão novo que nem o Word ou o Google Docs o reconhecem. Mas é uma ideia boa de ser confundida)

“É muito importante não confundir cicuta com salsinha, mas acreditar ou não em Deus não tem a menor importância”

Dennis Diderot 

Olá!

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Já falei muitas vezes da patroinha aqui neste espaço. Não é à toa. Somos casados há trinta e cinco anos, e, com isso, não é de se estranhar que nos conheçamos como Pelé e Coutinho, Simon e Garfunkel, Chico Bento e Zé Lelé, Marx e Engels (uepa!). Na maioria das vezes, ela toca de primeira e me deixa na cara do gol, eu cruzo sem olhar e lá está ela com a bicicleta armada. Mas nem sempre. O mundo não é perfeito e casais perfeitos não existem. Para o bem da dimensão trágica da existência, que ótimo!

Simetrias são bonitas nas artes, na engenharia e no equilibrismo circense. Na vida real, há momentos em que Cascatinha puxa o Ré menor e Inhana vai no Mi maior, causando dissonâncias dolorosas, mas concretíssimas. É assim a vida como Nietzsche sempre disse que deveria ser, e assim ela é.

É por isso que há momentos em que é impossível deduzir o que pensamos mutuamente, eu e a patroa. E talvez os piores sejam aqueles momentos de silêncio. Não é frequente, mas eventualmente acontece de eu me cair mais quieto. São inúmeros os motivos: problemas no trabalho sempre estão à frente, mas há momentos puramente reflexivos, alguma irritação recolhida, algum alheamento ocasional ou até mesmo uma pontinha de febre de uma gripe que vem chegando. E a pergunta vem a cavalo, às vezes secundada pela filha mais nova (o filho mais velho não costuma se imiscuir nessas questões): por que você está tão apático? Nem sempre a resposta é fácil, o que piora a pergunta: você não estava assim, você não fala nada, você fica só murcho…

Bom, estar apático é, de fato, um estado de espírito, mas o termo em si é muito mais carregado de significados do que um mero porre pela vida. Ele é tão extenso que até mesmo vem nomeando uma nova tendência de encarar as divindades, ou melhor, de nem querer saber sobre elas. Como tem florescido com bastante força nos últimos tempos, é comum que ela se torne confusa e as pessoas a tratem com certo desconhecimento, razão pela qual vou dar aqui meus apontamentos para dar uma substância nas discussões sobre sua pertinência ou não. Trata-se do apateísmo, que talvez você já tenha ouvido falar por aí.

O que é apateísmo?

De maneira bastante sintética, é o desinteresse pela existência ou não de divindades.

No que ele é diferente do ateísmo?

O ateísmo, embora seja estranho dizer, é uma crença: a crença de que não existem divindades. Ou seja, é uma crença com sinal negativo. É uma atitude ousada, porque é passível de erro, já que basta que uma das milhares de divindades propaladas em inúmeras religiões exista, ou mesmo alguma marota escondida por aí, da qual nunca nós ouvimos falar. Já o apateísmo não diz respeito a crer, mas a não atribuir interesse na divindade. Não se trata de crer na não existência, mas da impossibilidade de conhecer.

Então podemos dizer que é um agnosticismo? 

Mais ou menos. Talvez um agnosticismo com uma dose de deboche. O agnóstico, ao contrário do ateu, não tem uma crença, mas uma confissão de ignorância. Ele não sabe se existem deuses ou não, mesmo que tenha alguma opinião a respeito. Mas isso é uma questão para ele, que pode até mesmo ser incômoda. E é exatamente isso que o apateísta quer evitar: a confissão de desconhecimento é a mesma, com a diferença de que a indefinição não pode e não deve causar transtornos na sua cognição.

E esse nome esquisito?

Seria algo como “prática da apatia”, o que nos leva a pensar em alguém que curte se sentir deprimido. Mas a realidade vai em um sentido totalmente diferente. O nome vem da junção das palavras gregas de negação a (não) e o designador de emoção pathos. Vou falar um pouco mais sobre ele. Quando falamos deste termo hoje em dia, quase na totalidade das vezes pensamos em doenças, em patologias. Mas é olhando-o como um termo do jargão filosófico que poderemos entender melhor seu uso. O pathos grego é um estado de espírito em que o emocional prepondera sobre o racional. O pathos, sendo assim, lança referências sobre o eu que se solta em relação à vida, tolerando o que ela lhe trouxer, suportando o que vier de bom e de ruim, e sofrendo (daí sua relação com a doença). A apatia, mais do que ficar molejando entristecido em um sofá, é a atitude daquele que não entende ser necessário sofrer por conta de qualquer coisa, tipo um desconhecimento sobre a existência de deuses.

E por que os apateístas chegam a essa conclusão?

Imagine o seguinte: a estrutura religiosa é fundante no pensamento humano. Praticamente desde que foi possível realizar registros, com as pinturas rupestres e outros elementos pré-históricos, é possível deduzir que a humanidade reverenciou divindades, o que tem mais de 50.000 anos. A escrita foi criada há mais de 5500 anos, e a filosofia grega é considerada viva há 2500 anos. Todo esse tempo se passou e a humanidade não conseguiu concluir sobre quais divindades operam na sua existência, ou, no limite, se elas existem. Sendo assim, não é hoje, em um pequeno cérebro pouco mais consistente que um pudim, que a dúvida deixará de persistir e que alguém chegará à verdade definitiva. Sendo assim, queimar irreversivelmente importantíssimos neurônios na questão é pura perda de tempo, segundo diz a corrente.

Então o objetivo é só evitar sofrimento?

Não exatamente. Pense em quanto você sofre por um motivo menos relevante. Eu, por exemplo, fico sempre aflito quando uma final de campeonato se aproxima. Isso é irrelevante para quem não gosta de futebol, e tanto faz se time A ou B vai levar o título. O problema é que tal abstenção não é puramente voluntária, porque é difícil escolher no que crer, no que se interessar. É mais válido pensar na obtenção de uma paz mental evitando cair na discussão de conflitos religiosos, porque sabemos o quanto isso influencia no nosso plano psicológico. Talvez, no máximo, podemos pensar em apateísmo como uma prática que mistura ceticismo e estoicismo.

Como funciona essa fusão de ceticismo e estoicismo?

Falo de correntes filosóficas, e não meramente no que o senso comum entende por essas palavras. Do ceticismo, os apateístas trazem a impossibilidade do conhecimento e a suspensão do juízo. Dos estoicos, trazem a apatia filosófica, ou seja, a indiferença perante o sofrimento inevitável.

É mais uma modinha?

Em parte, sim. É comum que certas correntes de pensamento ganhem maior ou menor relevo em períodos específicos, especialmente porque são trazidas a claro em grande quantidade produções intelectuais que se refiram ao tema, como acontece com as tais correntes. Só que dizer-se apateísta durará pelo exato tempo em que houver um convencimento interior. Passado isso, o movimento arrefece e só permanece nele quem efetivamente se fundeou. Mas é possível que certas pessoas acabem por adotar e absorver em definitivo essa posição.

Isso não aconteceu com as outras linhas de pensamento? E elas não acabaram caindo em desuso?

É que a coisa funciona assim: eu ouço uma música e gosto. Então eu me inteirarei mais da carreira da banda que a produziu e me tornarei um aficionado. Isso é um movimento natural porque existe uma correlação direta entre gosto e consciência do gosto. Quando eu me afeiçoo por uma ideia, já é preciso um mínimo de aprofundamento. Não basta achar que é uma corrente com nome bonitinho, ou dar ar de independência e modernidade. A adesão aqui precisa ser conectada com formação de princípios fundamentais, senão ela não resiste à próxima tendência dos corredores das academias. O niilismo já foi desse jeito, e hoje continua existindo, mas em um percentual muito menor que no ápice, e ainda expressiva para aqueles para os quais a ideia permaneceu coerente.

Não seria somente uma forma de “arrego” aos custos de se declarar ateu?

Vai do nível de sinceridade consigo mesmo e com a sociedade de quem adere a esta corrente. Pode ser que a palavra “ateu” soe mais pesada em um país predominantemente religioso, mas eu acho que o efeito pode ser contrário, na medida em que o desinteresse pelo assunto pode ser ainda mais condenável do que uma oposição ativa, em um sentido semelhante daquele que temos quando afirmamos que a indiferença é pior que o ódio, porque é isso que mata uma relação.

Se os apateístas pregam a irrelevância, não basta considerá-los irrelevantes? 

É uma cilada, Bino, simplesmente desprezar o pensamento dos apateístas, ao menos pelo ponto de vista religioso. Vários dos motivos pelos quais os apateístas entendem não ser relevante a discussão religiosa estão no coração da crença em divindades, como a questão da doação de uma moralidade pronta e acabada. Por isso, é importante (a quem importa) olhar pela lupa ao fenômeno e entender por que seus aderentes pensam como pensam.

Há mais alguma corrente filosófica no substrato do apateísmo?

Se um modo de pensar leva a tornar sem importância aquilo que não pode ser visto, sentido ou como sem interferência na vida das pessoas, podemos perceber que a ênfase está naquilo que existe. Então temos uma influência do existencialismo no apateísmo que é bem forte, no final das contas, já que adere plenamente ao seu pano de fundo. Outras influências devem existir, mas não me aprofundei tanto, a ponto de trazê-las aqui.

No final das contas, os tais religiosos não praticantes não são, na verdade, apateístas?

Depende. De fato, se a religião é meramente protocolar, então podemos dizer que sim. Mas quantos desses que não tem o exercício religioso da vertente que declaram pertencer não produzem em suas vidas algum outro tipo de comportamento de fundo religioso? Lembrem-se de que basta consultar um horóscopo para tomar uma atitude religiosa, esotérica, espiritual ou coisa que o valha.

Com relação ao desencanto do mundo mencionado por Weber, podemos achar que o apateísmo é um reflexo?

Parece a mim que sim, mas é preciso esclarecer o conceito. Weber vê o desencantamento por duas vias: uma que tem base no crescimento científico da sociedade, e, nesse sentido, o apateísmo estaria em plena aderência; e a outra diz respeito ao desencantamento no interior das próprias religiões, que passariam a enfatizar mais o aspectos éticos dos seus ensinamentos do que a prática ritualística, fundamentada na “magia”. Por esse viés, o apateísmo não tem um sentido tão forte. 

Temos algum autor que já se deteve mais sobre o assunto?

Como se trata de um assunto que ainda é recente, carecemos de pensadores que tenham se aprofundado o bastante para criar uma tese sólida sobre o fenômeno. O que temos são pesquisadores da religião que abordam o tema em um posto de vista comparativo, como Trevor Hedberg, Jordan Huzarevich e Milenko Budimir, que, preponderantemente, emitiram artigos em revistas filosóficas, aos quais faço menção mais abaixo. 

Faz sentido pensar que o apateísmo pode ser aplicado a pessoas religiosas?

É estranho, mas faz. Uma vez formada uma convicção, é possível mantê-la ad infinitum de maneira inobservada. Dessa forma, eu estabeleço que creio nos princípios budistas (digamos) e não volto mais o interesse para isso. Mas alguém que se denomina apateísta dificilmente tomará uma atitude dessa natureza.

Pelo que dá para perceber, o apateísmo pode ser ativo ou passivo. É isso mesmo?

Sim. Tem gente que não liga para religião naturalmente, sem fazer nenhum tipo de propaganda sobre essa condição. E tem gente que faz disso uma bandeira. Novamente: acho que a primeira atitude é mais sincera e passível de mantença, mas não recrimino ninguém por adotar uma prática de deixar o assunto de lado intencionalmente.

Você é apateísta?

Não. A questão religiosa é importante para qualquer pessoa que queira tratar de filosofia e ciências humanas.

Então, jovens… Esta é uma visão ainda nova que tem se consolidado cada vez mais no debate religioso como alternativa à dicotomia teísmo-ateísmo, e, sob este ponto de vista, absolutamente saudável. Espero ter contribuído. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como eu disse, não há abundância de escritos sobre o tema, justamente por conta da ainda novidade. Estes são os artigos disponíveis na internet que trazem boas informações sobre o assunto.

BUDIMIR, Milenko. Historical Religious Indifference and its Links to Contemporary Apatheism. Disponível em: https://www.pdcnet.org/wcp23/content/wcp23_2018_0061_0031_0036. Acesso em 26.02.2025.

HEDBERG, Trevor; HUZAREVICH, Jordan. Appraising Objections to Practical Apatheism. Disponível em: https://philarchive.org/archive/HEDAOT

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