(É possível alguém das beiradas ir parar no centro? Difícil)
“Em questões de dinheiro, todos temos a mesma religião”
Atribuído a Voltaire
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Jabaquara é um bairro daqui de São Paulo. Ele ficou
especialmente célebre a partir da década de 70, quando virou a última estação
da banda sul do metrô e seu pátio de manobras, aquele misterioso local onde os
dorminhocos vão passear ao fim das viagens, para acordar perdidos. Essa
notabilidade foi acentuada quando foi criado o terminal rodoviário, que
substituiu com vantagem a velha rodoviária do Glicério, despejando o mar de
ônibus que vai para a Baixada Santista diretamente na Rodovia dos Imigrantes. Isso
tudo colocou no mapa um bairro outrora distante, daqueles que demoravam horas e
horas de ônibus para chegar. Fiquei mais íntimo de lá quando trabalhei na
região, na Água Funda, e volta e meia precisava ir a algum banco ou repartição.
Jabaquara, palavra de origem tupi, significa algo como
“esconderijo de negros fugitivos”, e isso explica a função inicial do
bairro. Com o decorrer do tempo, acabou se tornando uma espécie de pouso para
as pessoas que trafegavam entre a porção central de São Paulo e o extinto
município de Santo Amaro de um lado, e a região da Borda do Campo (atual ABC)
do outro. Só deixou de ser uma região rural a partir de meados do século XX.
Se você perguntar a um paulistano inespecífico, a primeira
resposta à pergunta “o que é Jabaquara” será semelhante a essa, com algumas
informações a mais ou a menos. Se a pergunta for a alguém muito letrado, poderá
ser acrescido o segundo parágrafo. Mas Jabaquara não é só isso.
Jabaquara é um dos times fundadores da Federação Paulista de
Futebol, o primeiro desta série de textos que ainda está na ativa. Vem
passeando há décadas pelas divisões inferiores do Estadual, tendo, inclusive,
alguns períodos de licenciamento, sempre por apuros financeiros. Seu nome
original era Hespanha, pelo óbvio fato de ter sido fundado por imigrantes
espanhóis da cidade de Santos, colônia bastante significativa por lá. Sim, o
Jabaquara do futebol não tem nada a ver com o bairro paulistano, o que foi um
grande engano deste escriba em seus primeiros anos de compreensão
futebolística. Foi obrigado a mudar de nome em 1940, por força da legislação
que proibiu a utilização de nomes referentes às forças beligerantes na Europa
por ocasião da Segunda Guerra Mundial, mesmo ato que obrigou os Palestras
Itálias mineiro e paulista a se transformarem em Cruzeiro e Palmeiras,
respectivamente, ou o Germânia a virar Pinheiros. Por esta razão, já consta da
famosa entrada da federação com seu nome novo, mas as mesmas velhas cores
aurirrubras da bandeira espanhola.
O Jabaquara nunca foi campeão paulista, e ostenta apenas os
títulos obtidos na região da Baixada Santista. É lembrada mais por ter
sido o berço de um dos principais goleiros da história, Gylmar dos Santos
Neves, que depois flanou seu talento por Corinthians, Santos e Seleção
Brasileira. É o terceiro time da cidade de Santos, uma espécie de xodozinho que
todo mundo gosta, mas ninguém leva a sério. Quer dizer… todo mundo que conhece,
o que já é mais raro. Claro que os moradores de Santos sabem da existência
daquele pequeno estádio na Caneleira, bairro de morros e mangues que não
lembram uma cidade praiana, para onde o clube se mudou ao vender a sede do
Macuco, esta de fato próxima ao mar, mas todo mundo se pergunta até quando ele
dura. Sua estrutura é o mínimo que se espera para não ser um time de várzea, e
é quase inacreditável que ainda exista profissionalmente.
O Jabaquara está como está por causa do capitalismo, sem
nenhuma crítica direta ao sistema. Vou explicar meu ponto.
O capitalismo é um sistema econômico cuja principal
característica está na liberdade de mercado, ou seja, as relações comerciais
são regidas por movimentações de dinheiro circulante, que se dão sob uma
espécie de algoritmo que faz com que a economia se equilibre e reequilibre
espontaneamente, sem a necessidade de intervenções exteriores, notadamente de
governos. Isso é proporcionado por alguns pilares básicos: livre iniciativa,
livre concorrência, admissibilidade e incentivo ao lucro e acúmulos de capital.
Seu nome deriva do latim caput. Literalmente, esse
termo significa “cabeça”, mas é utilizado em seu sentido figurado de
“primeiro”, ou de “líder”. Capitalista é, nesse sentido, aquele que detém os
meios econômicos para liderar os processos industriais e comerciais, de fazer a
roda da economia girar. A interveniência de governos passa a ser considerada
prejudicial à economia, por dirigir políticas, retirar fundos da economia e
desequilibrar o mercado, de modo a produzir teratologias financeiras, por seu
imenso tamanho. O mercado deve se pautar pela lei de oferta e procura, que
funciona mais ou menos como alguns princípios da seleção natural. Quando há
excessos de um determinado produto, ele tende a ficar mais barato, e isso faz
com que seu consumo aumente, até o ponto em que há uma inflexão e, de tanto ser
consumido, ele passe a ficar escasso, o que movimentará seu preço para cima, o
que fará com que menos pessoas consigam adquiri-los, e, com isso, haja um
excesso de produção e os preços novamente baixem, em um movimento pendular
infinito. Portanto, enquanto nos seres vivos o impulsionamento da seleção se dá
pela necessidade de sobrevivência, no capitalismo a movimentação se dá pelo
dinheiro. E, surpresa, em ambos os casos são os melhores adaptados que
sobrevivem.
O capitalismo, como o próprio nome diz, favorece aqueles que
detêm capital, mormente na forma de acúmulo. E os demais? Como se inserem neste
sistema? Com o seu trabalho. Ou trabalha para um capitalista que tem terra,
fábrica ou comércio, ou tem algum pequeno negócio onde todas as tarefas são
desempenhadas por ele mesmo. Suas ações isoladas não são capazes de modificar a
realidade da economia e, por isso, em tese, precisariam atuar em conjunto, algo
difícil sem uma guia (como sindicatos e governos). O livre mercado defendido
pelos capitalistas, nesse sentido, possui uma certa quantidade de pessoas
naturalmente excluídas. São aqueles que estão nas franjas do sistema, que não
se adaptam bem a esse modelo de realidade. Eles se encontram até mesmo nos
países mais avançados do mundo. Não é preciso ser alguém que não tenha dinheiro
ou não goste de trabalhar.
Acho que um dos melhores exemplos que eu posso dar é o
pintor que morava no prédio em que habito, o José Camargo. Ele fazia pinturas
de um preciosismo ímpar, como sói acontecer com os espíritos mais cuidadosos.
Cada tracinho era visto e revisto e apagado e repintado até chegar àquilo que
ele julgava ser a sua perfeição. Fazia um estilo majoritariamente
impressionista, ao agrado dos transeuntes da Praça da República*, que admiram
muito, especulam mais ainda e compram pouco. Para quem anda a esmo, um quadro a
trezentos dinheiros é caro, artigo de luxo que se compra uma vez na vida e
outra na morte. Para o pintor, é uma pechincha, pois quanto mais esmero se dá
na sua produção, menor o tempo restante para fazer mais obras. O Camargo fazia
os pequenos quadros de flores e casinhas com raiva, porque era isso o que saía,
e ele precisava comprar o seu feijão, mas estava longe de ser a maneira que ele
gostava de se expressar. Há uma alma artística e um corpo pragmático, que chora
por comida. Ele amava as encomendas em que o comprador apenas dava uma
temática, dando-lhe liberdade para criar em cima da ideia geral. Mas essas eram
raridade, principalmente quando era dado o orçamento.
Em um exemplo, o Zé cobrava mil reais em um quadro que iria
lhe tomar o mês inteiro. À parte do custo dos materiais, imagine-se tendo um
salário desses. Dá para viver? Para quem iria comprar, é um objeto caro, cujo
único propósito é estético, e que pode ser empurrado ad infinitum. Para
quem faz, é praticamente uma miséria, um ganha-pão ingrato que demanda esforço
físico e intelectual, mas que não dá sustento. Esqueçam dos renomados: eles são
uma ínfima parcela daqueles que têm o talento recompensado. E renome não é
sinônimo de talento: Romero Brito, podre de rico, é tão criticado quanto um
Paulo Coelho na literatura. Mas seus gatos estilizados vendem como água.
Existe um ponto tal em que o que vende é o nome que assina,
não a obra em si. Fui a uma exposição de esculturas que tinha peças do
estadunidense Jeff Koons, célebre por flertar com o brega o tempo todo, e esse
foi o construtor de seu elevado conceito. Ele mesmo lançou a si um desafio:
“tudo o que eu faço é reverenciado pela crítica e pelo público. Vamos ver o que
acontece se eu pegar anões de jardim e fadas, daqueles que as pessoas compram
em lojas baratas, e reproduzi-las igual-que-nem, como se eu as tivesse criado”.
O resultado: “Koons revoluciona mais uma vez”, “o kitsch purista de Koons
renovando a academia” e outras bravatas semelhantes. Chega um ponto em que o
nome se empurra sozinho. São fenômenos do capitalismo.
Quando o Camargo chegou à conclusão de que seu trabalho
estava desvinculado do cumprimento de qualquer sonho, foi pragmaticamente
ganhar a vida como faxineiro de um prédio. É uma lástima que as coisas cheguem
a esse ponto, mas lá também sua verve artística e seu apuro nos detalhes veio
trazer problemas. Ele via seu ofício como uma obra de arte, e limpava escadas e
corredores com o mesmo critério que utilizava em suas pinturas: qualquer
cantinho ficava impecável sob sua alçada, com madeiras polidas, cromos brilhantes,
chão e paredes indefectíveis. Isso é uma qualidade, não? No aspecto prático,
não. O síndico apreciava o edifício reluzente, mas a velocidade da faxina era
inversamente proporcional ao capricho, e isso colidia com a necessidade de uma
limpeza mínima em todos os andares. O Camargo era cobrado, mas não conseguia se
desvencilhar de seu preciosismo, e o resultado foi sua substituição por alguém
mais medíocre, mas que resolvia o problema da limpeza com mais objetividade**.
O Camargo é isso que falamos ser um desencaixe do modelo
capitalista. Não é um vagabundo que não quer trabalhar, e sim alguém que não
produz em escala comercial, mas, mesmo que fosse, teríamos apenas outra forma
de exclusão que se baseia na comercialização de produtos, sendo que um deles é
o labor.
Percebam que eu estou evitando juízos de valores. O Zé
Camargo existiu, como existem mendigos, e vivia nesse sistema. Não estou
dizendo que o capitalismo é bom, nem ruim, apenas fazendo constatações
empíricas. Haverá quem diga que tudo no universo tem esse substrato de Lei da
Selva, e que o capitalismo nada mais é do que isso transposto à economia, e que
faz aperfeiçoar produtos e serviços. Mas, se é uma lei de seleção, ela tem seu
percentual de crueldade inerente.
A condição do Jabuca demonstra, plasmando a situação dos
marginalizados, como funciona esse sistema também no mundo futebolístico. No
estado de São Paulo temos quatro “grandões”, sendo que um deles fica na cidade
de Santos, Terra da Liberdade e da Solidariedade. Os meninos que querem começar
a carreira procuram primeiro a Vila Belmiro, e não a Caneleira. Vão para lá
aqueles que não passaram nas peneiras do Santos, nem da Portuguesa Santista (de
quem chegará a vez aqui na série). Resta para o Leão aqueles que ainda não
explodiram, ou que nunca vão explodir, e vão procurar ofícios em outras
atividades, a grande maioria. Isso acontece porque o Santos atrai mais, pela
fama, pela estrutura e, principalmente, pela grana. O Santos, mesmo em
percalços financeiros, tem muito mais visibilidade, agentes internacionais,
infraestrutura, nome na praça, e uma possibilidade de crescer que o Jabaquara
só terá se algum mecenas quiser fazer caridade esportiva, algo muito raro. Quem
tem dinheiro, quer uma vitrine mais ampla, e times com a corda no pescoço
existem aos borbotões, inclusive já encaminhados em alguma divisão nacional. O
Jabaquara está na quarta divisão do Paulista. Não me parece que vá ter atenção
de algum endinheirado.
A realidade é que nosso querido Leão da Caneleira só existe
ainda porque estamos no Brasil, justamente com seu capitalismo imperfeito.
Associações não estarem sujeitas à lei das falências é uma jabuticaba jurídica
daquelas exemplares, e, por conta disso, ainda podemos ver a tradição amarela e
vermelha em campo. Mas isso não muda o fato de que o Jabaquara está naquela
borda mais externa, aquela parte do bolo em que pouco resta além das migalhas
que caíram no chão. A realidade é triste, porque se trata de um daqueles onze
fundadores, um dos que não sucumbiram por pura teimosia, um dos times que eu
mais gosto no futebol, mas a realidade é esta, no futebol e no mundo, e no
futebol como espelho do mundo. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Escrito por um apaixonado, bancado pelo próprio bolso, é um
livro de histórias esparsas e emocionantes, e, apesar de já ser meio
antiguinho, faz jus a um time que tem como principal patrimônio a sua história.
SILVEIRA, Sérgio dos Santos. Jabuca dos nossos corações.
Santos: Edição do autor, 2002.
* Para quem não é de São Paulo, a tradicionalíssima Praça da
República é onde se realiza a feira de artes todos os finais de semana.
** Para não deixar a história sem uma conclusão: o Camargo
terminou seus dias ao lado de seu companheiro Luiz, que lhe deu liberdade para
compor suas obras. A última delas, inacabada, veio parar em minhas mãos e está
hoje na sala de casa. Ele morreu de repente e, romanticamente, seu companheiro
se foi um mês depois. Contornos tristes do que, no final das contas, foi um
final feliz.
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