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quarta-feira, 12 de março de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o pequeno Jabaquara e a lógica que amarra as pernas dos pequenos

(É possível alguém das beiradas ir parar no centro? Difícil)

“Em questões de dinheiro, todos temos a mesma religião”

Atribuído a Voltaire

Olá!

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Jabaquara é um bairro daqui de São Paulo. Ele ficou especialmente célebre a partir da década de 70, quando virou a última estação da banda sul do metrô e seu pátio de manobras, aquele misterioso local onde os dorminhocos vão passear ao fim das viagens, para acordar perdidos. Essa notabilidade foi acentuada quando foi criado o terminal rodoviário, que substituiu com vantagem a velha rodoviária do Glicério, despejando o mar de ônibus que vai para a Baixada Santista diretamente na Rodovia dos Imigrantes. Isso tudo colocou no mapa um bairro outrora distante, daqueles que demoravam horas e horas de ônibus para chegar. Fiquei mais íntimo de lá quando trabalhei na região, na Água Funda, e volta e meia precisava ir a algum banco ou repartição.

Jabaquara, palavra de origem tupi, significa algo como “esconderijo de negros fugitivos”, e isso explica a função inicial do bairro. Com o decorrer do tempo, acabou se tornando uma espécie de pouso para as pessoas que trafegavam entre a porção central de São Paulo e o extinto município de Santo Amaro de um lado, e a região da Borda do Campo (atual ABC) do outro. Só deixou de ser uma região rural a partir de meados do século XX.

Se você perguntar a um paulistano inespecífico, a primeira resposta à pergunta “o que é Jabaquara” será semelhante a essa, com algumas informações a mais ou a menos. Se a pergunta for a alguém muito letrado, poderá ser acrescido o segundo parágrafo. Mas Jabaquara não é só isso.

Jabaquara é um dos times fundadores da Federação Paulista de Futebol, o primeiro desta série de textos que ainda está na ativa. Vem passeando há décadas pelas divisões inferiores do Estadual, tendo, inclusive, alguns períodos de licenciamento, sempre por apuros financeiros. Seu nome original era Hespanha, pelo óbvio fato de ter sido fundado por imigrantes espanhóis da cidade de Santos, colônia bastante significativa por lá. Sim, o Jabaquara do futebol não tem nada a ver com o bairro paulistano, o que foi um grande engano deste escriba em seus primeiros anos de compreensão futebolística. Foi obrigado a mudar de nome em 1940, por força da legislação que proibiu a utilização de nomes referentes às forças beligerantes na Europa por ocasião da Segunda Guerra Mundial, mesmo ato que obrigou os Palestras Itálias mineiro e paulista a se transformarem em Cruzeiro e Palmeiras, respectivamente, ou o Germânia a virar Pinheiros. Por esta razão, já consta da famosa entrada da federação com seu nome novo, mas as mesmas velhas cores aurirrubras da bandeira espanhola.

O Jabaquara nunca foi campeão paulista, e ostenta apenas os títulos obtidos na região da Baixada Santista. É lembrada mais por ter sido o berço de um dos principais goleiros da história, Gylmar dos Santos Neves, que depois flanou seu talento por Corinthians, Santos e Seleção Brasileira. É o terceiro time da cidade de Santos, uma espécie de xodozinho que todo mundo gosta, mas ninguém leva a sério. Quer dizer… todo mundo que conhece, o que já é mais raro. Claro que os moradores de Santos sabem da existência daquele pequeno estádio na Caneleira, bairro de morros e mangues que não lembram uma cidade praiana, para onde o clube se mudou ao vender a sede do Macuco, esta de fato próxima ao mar, mas todo mundo se pergunta até quando ele dura. Sua estrutura é o mínimo que se espera para não ser um time de várzea, e é quase inacreditável que ainda exista profissionalmente.

O Jabaquara está como está por causa do capitalismo, sem nenhuma crítica direta ao sistema. Vou explicar meu ponto.

O capitalismo é um sistema econômico cuja principal característica está na liberdade de mercado, ou seja, as relações comerciais são regidas por movimentações de dinheiro circulante, que se dão sob uma espécie de algoritmo que faz com que a economia se equilibre e reequilibre espontaneamente, sem a necessidade de intervenções exteriores, notadamente de governos. Isso é proporcionado por alguns pilares básicos: livre iniciativa, livre concorrência, admissibilidade e incentivo ao lucro e acúmulos de capital.

Seu nome deriva do latim caput. Literalmente, esse termo significa “cabeça”, mas é utilizado em seu sentido figurado de “primeiro”, ou de “líder”. Capitalista é, nesse sentido, aquele que detém os meios econômicos para liderar os processos industriais e comerciais, de fazer a roda da economia girar. A interveniência de governos passa a ser considerada prejudicial à economia, por dirigir políticas, retirar fundos da economia e desequilibrar o mercado, de modo a produzir teratologias financeiras, por seu imenso tamanho. O mercado deve se pautar pela lei de oferta e procura, que funciona mais ou menos como alguns princípios da seleção natural. Quando há excessos de um determinado produto, ele tende a ficar mais barato, e isso faz com que seu consumo aumente, até o ponto em que há uma inflexão e, de tanto ser consumido, ele passe a ficar escasso, o que movimentará seu preço para cima, o que fará com que menos pessoas consigam adquiri-los, e, com isso, haja um excesso de produção e os preços novamente baixem, em um movimento pendular infinito. Portanto, enquanto nos seres vivos o impulsionamento da seleção se dá pela necessidade de sobrevivência, no capitalismo a movimentação se dá pelo dinheiro. E, surpresa, em ambos os casos são os melhores adaptados que sobrevivem.

O capitalismo, como o próprio nome diz, favorece aqueles que detêm capital, mormente na forma de acúmulo. E os demais? Como se inserem neste sistema? Com o seu trabalho. Ou trabalha para um capitalista que tem terra, fábrica ou comércio, ou tem algum pequeno negócio onde todas as tarefas são desempenhadas por ele mesmo. Suas ações isoladas não são capazes de modificar a realidade da economia e, por isso, em tese, precisariam atuar em conjunto, algo difícil sem uma guia (como sindicatos e governos). O livre mercado defendido pelos capitalistas, nesse sentido, possui uma certa quantidade de pessoas naturalmente excluídas. São aqueles que estão nas franjas do sistema, que não se adaptam bem a esse modelo de realidade. Eles se encontram até mesmo nos países mais avançados do mundo. Não é preciso ser alguém que não tenha dinheiro ou não goste de trabalhar.

Acho que um dos melhores exemplos que eu posso dar é o pintor que morava no prédio em que habito, o José Camargo. Ele fazia pinturas de um preciosismo ímpar, como sói acontecer com os espíritos mais cuidadosos. Cada tracinho era visto e revisto e apagado e repintado até chegar àquilo que ele julgava ser a sua perfeição. Fazia um estilo majoritariamente impressionista, ao agrado dos transeuntes da Praça da República*, que admiram muito, especulam mais ainda e compram pouco. Para quem anda a esmo, um quadro a trezentos dinheiros é caro, artigo de luxo que se compra uma vez na vida e outra na morte. Para o pintor, é uma pechincha, pois quanto mais esmero se dá na sua produção, menor o tempo restante para fazer mais obras. O Camargo fazia os pequenos quadros de flores e casinhas com raiva, porque era isso o que saía, e ele precisava comprar o seu feijão, mas estava longe de ser a maneira que ele gostava de se expressar. Há uma alma artística e um corpo pragmático, que chora por comida. Ele amava as encomendas em que o comprador apenas dava uma temática, dando-lhe liberdade para criar em cima da ideia geral. Mas essas eram raridade, principalmente quando era dado o orçamento.

Em um exemplo, o Zé cobrava mil reais em um quadro que iria lhe tomar o mês inteiro. À parte do custo dos materiais, imagine-se tendo um salário desses. Dá para viver? Para quem iria comprar, é um objeto caro, cujo único propósito é estético, e que pode ser empurrado ad infinitum. Para quem faz, é praticamente uma miséria, um ganha-pão ingrato que demanda esforço físico e intelectual, mas que não dá sustento. Esqueçam dos renomados: eles são uma ínfima parcela daqueles que têm o talento recompensado. E renome não é sinônimo de talento: Romero Brito, podre de rico, é tão criticado quanto um Paulo Coelho na literatura. Mas seus gatos estilizados vendem como água.

Existe um ponto tal em que o que vende é o nome que assina, não a obra em si. Fui a uma exposição de esculturas que tinha peças do estadunidense Jeff Koons, célebre por flertar com o brega o tempo todo, e esse foi o construtor de seu elevado conceito. Ele mesmo lançou a si um desafio: “tudo o que eu faço é reverenciado pela crítica e pelo público. Vamos ver o que acontece se eu pegar anões de jardim e fadas, daqueles que as pessoas compram em lojas baratas, e reproduzi-las igual-que-nem, como se eu as tivesse criado”. O resultado: “Koons revoluciona mais uma vez”, “o kitsch purista de Koons renovando a academia” e outras bravatas semelhantes. Chega um ponto em que o nome se empurra sozinho. São fenômenos do capitalismo.

Quando o Camargo chegou à conclusão de que seu trabalho estava desvinculado do cumprimento de qualquer sonho, foi pragmaticamente ganhar a vida como faxineiro de um prédio. É uma lástima que as coisas cheguem a esse ponto, mas lá também sua verve artística e seu apuro nos detalhes veio trazer problemas. Ele via seu ofício como uma obra de arte, e limpava escadas e corredores com o mesmo critério que utilizava em suas pinturas: qualquer cantinho ficava impecável sob sua alçada, com madeiras polidas, cromos brilhantes, chão e paredes indefectíveis. Isso é uma qualidade, não? No aspecto prático, não. O síndico apreciava o edifício reluzente, mas a velocidade da faxina era inversamente proporcional ao capricho, e isso colidia com a necessidade de uma limpeza mínima em todos os andares. O Camargo era cobrado, mas não conseguia se desvencilhar de seu preciosismo, e o resultado foi sua substituição por alguém mais medíocre, mas que resolvia o problema da limpeza com mais objetividade**.

O Camargo é isso que falamos ser um desencaixe do modelo capitalista. Não é um vagabundo que não quer trabalhar, e sim alguém que não produz em escala comercial, mas, mesmo que fosse, teríamos apenas outra forma de exclusão que se baseia na comercialização de produtos, sendo que um deles é o labor.

Percebam que eu estou evitando juízos de valores. O Zé Camargo existiu, como existem mendigos, e vivia nesse sistema. Não estou dizendo que o capitalismo é bom, nem ruim, apenas fazendo constatações empíricas. Haverá quem diga que tudo no universo tem esse substrato de Lei da Selva, e que o capitalismo nada mais é do que isso transposto à economia, e que faz aperfeiçoar produtos e serviços. Mas, se é uma lei de seleção, ela tem seu percentual de crueldade inerente.

A condição do Jabuca demonstra, plasmando a situação dos marginalizados, como funciona esse sistema também no mundo futebolístico. No estado de São Paulo temos quatro “grandões”, sendo que um deles fica na cidade de Santos, Terra da Liberdade e da Solidariedade. Os meninos que querem começar a carreira procuram primeiro a Vila Belmiro, e não a Caneleira. Vão para lá aqueles que não passaram nas peneiras do Santos, nem da Portuguesa Santista (de quem chegará a vez aqui na série). Resta para o Leão aqueles que ainda não explodiram, ou que nunca vão explodir, e vão procurar ofícios em outras atividades, a grande maioria. Isso acontece porque o Santos atrai mais, pela fama, pela estrutura e, principalmente, pela grana. O Santos, mesmo em percalços financeiros, tem muito mais visibilidade, agentes internacionais, infraestrutura, nome na praça, e uma possibilidade de crescer que o Jabaquara só terá se algum mecenas quiser fazer caridade esportiva, algo muito raro. Quem tem dinheiro, quer uma vitrine mais ampla, e times com a corda no pescoço existem aos borbotões, inclusive já encaminhados em alguma divisão nacional. O Jabaquara está na quarta divisão do Paulista. Não me parece que vá ter atenção de algum endinheirado.

A realidade é que nosso querido Leão da Caneleira só existe ainda porque estamos no Brasil, justamente com seu capitalismo imperfeito. Associações não estarem sujeitas à lei das falências é uma jabuticaba jurídica daquelas exemplares, e, por conta disso, ainda podemos ver a tradição amarela e vermelha em campo. Mas isso não muda o fato de que o Jabaquara está naquela borda mais externa, aquela parte do bolo em que pouco resta além das migalhas que caíram no chão. A realidade é triste, porque se trata de um daqueles onze fundadores, um dos que não sucumbiram por pura teimosia, um dos times que eu mais gosto no futebol, mas a realidade é esta, no futebol e no mundo, e no futebol como espelho do mundo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Escrito por um apaixonado, bancado pelo próprio bolso, é um livro de histórias esparsas e emocionantes, e, apesar de já ser meio antiguinho, faz jus a um time que tem como principal patrimônio a sua história.

SILVEIRA, Sérgio dos Santos. Jabuca dos nossos corações. Santos: Edição do autor, 2002.

* Para quem não é de São Paulo, a tradicionalíssima Praça da República é onde se realiza a feira de artes todos os finais de semana.

** Para não deixar a história sem uma conclusão: o Camargo terminou seus dias ao lado de seu companheiro Luiz, que lhe deu liberdade para compor suas obras. A última delas, inacabada, veio parar em minhas mãos e está hoje na sala de casa. Ele morreu de repente e, romanticamente, seu companheiro se foi um mês depois. Contornos tristes do que, no final das contas, foi um final feliz.

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