(Certos conceitos são tão distorcidos que seu sentido original acaba indo para o lado oposto)
“Não se trata aqui de diminuir a militância feita no mundo virtual, ao contrário, mas de ilustrar o quanto muitas vezes há um esvaziamento de conceitos importantes por conta dessa urgência que as redes geram”
Djamila Ribeiro
Olá!
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Insistir ou largar mão? A vida tem me ensinado que a segunda
opção é a melhor. O insistente é chato, porque repisa reminiscências que, na
maioria das vezes, deveriam ser só suas. E as cabeças não são fáceis de mudar,
porque há uma tendência natural em achar as opiniões próprias mais certas até
mesmo que a de notórios especialistas, fato este elevado à enésima potência
nesses tempos de internet fácil. Além disso, uma boa maneira de tornar as
coisas invisíveis é justamente pendurá-las em todos os cantos. Eu penso nos
luminosos que ficam nas portas dos túneis, com recomendações que todos os
motoristas já sabem (ou deveriam saber): não buzine, evite ultrapassagens, use
farol baixo e blá-blá-blá. No dia em que um aviso sério precisa ser dado, porque
há um acidente, ou solapamento de asfalto ou outra desgraça, ninguém dá bola,
porque está acostumado com aquela falação pouco proveitosa. E lá se vai dar de
frente com destroços, buracos ou escuridão. E aí sim as coisas ficam mais
perigosas.
Mas o fato é que meu sangue latino canta nas veias e minha
língua fica frequentemente dançando dentro da boca, e esse fenômeno deu origem
a esta série, que nasceu como um simples post sobre confusões com o comunismo
e que hoje entra em seu 13º texto. Quando vejo comentários imbecis sobre
qualquer assunto, tendo a querer respondê-los, mas com isso já sei lidar: não
desperdiço minha saliva virtual e me limito a lamentar. Meu problema é quando
vejo pessoas de um nível melhor comprando ideias errôneas, e aí eu sinto que
preciso agir, mesmo quando já havia agido antes. É exatamente o caso que narro
agora.
Quem me segue sabe que curto ler, e, com isso, nada mais
esperado que eu siga alguns canais de literatura, que mencionarei logo abaixo.
São poucos e bons, e, sem nenhum motivo especial, todos tocados por mulheres.
Simples coincidência? Parece a mim que sim. O fato concreto é que uma delas
comentava sobre um livro qualquer e veio trazer suas experiências pessoais para
confrontar com a narrativa. Até aí, maravilha, porque eu canso de fazer
isso neste espaço. O problema foi quando ela disse que tal tema lhe tocava em
especial porque ela tinha ganhado “lugar de fala” sobre ele por motivos X e Y.
Não, por favor, não.
Já vou dizer que não cabe cancelamento e que tal termo está
tão queimado quanto mato no verão. Mas quem o disse tem boa cultura e deveria
saber que lugar de fala está muito distante do que seu uso vem consagrando,
então vou considerar mera derrapada, mas esquecerei que já tratei
do tema exatamente sob este prisma link e o farei de novo, desta vez na
forma de perguntas e respostas, na esperança que encontre pessoas com legítima
dúvida sobre seu uso, ou, melhor ainda, pessoas que o utilizem erradamente e
revejam sua utilização a partir do que eu vou escrever. Se conseguisse isso,
daria por cumprida a missão deste blog, desde 2011. Vamos começar.
O que é lugar de fala?
É um conceito da sociologia que indica como uma determinada
manifestação é formatada pelos contextos sociais, políticos, econômicos e
culturais de grupos que possuem características comuns com foco a um
determinado fenômeno social.
Que?
É assim. Há diferentes grupos em todas as sociedades, que
podem ser construídos pelos mais diferentes distintivos. Quando juntamos esses
grupos, existe um todo social, que é dirigido pela preponderância de alguns
grupos sobre os outros. De uma forma ou de outra, todos se manifestam pelo
ponto de vista de suas características no universo do espaço público. Alguns
falam de muito longe, com uma voz que é pouco ouvida, enquanto outros estão
muito mais de acordo com aquele todo social. Encaixam-se melhor, por assim
dizer. Essas interações são observáveis em um espaço onde todos os estratos
possuem alguma capacidade de usufrutos comuns, e este é o espaço público, onde
as regras sociais são plenamente aplicáveis. O espaço público por excelência é
a rua, mas ele não subsiste apenas fisicamente: todo lugar onde é possível se
manifestar faz parte do espaço público. Quando alguém faz um comentário na
internet, está se servindo do espaço público. Quando liga um rádio audível pela
vizinhança, também. E é assim com os discursos em praça pública, na
publicidade, nas paredes, e em tudo mais onde se externa uma mensagem.
Tá. Pode falar mais sobre espaço público?
Vivemos em sociedade, estamos assentes quanto a isso. Sendo
assim, para além de nossas individualidades, temos uma grande porção
compartilhada com as demais pessoas, senão não seria uma sociedade, ora essa. O
espaço público é composto por lugares onde as pessoas se encontram e se
relacionam, diferentemente do que acontece na casa de cada um de nós, onde,
respeitados os limites legais, podemos fazer o que bem entendermos. O espaço
público é, por excelência, onde melhor podemos perceber as preponderâncias
sociais e as fragilidades dos grupos mais desprotegidos. É lá que percebemos
melhor o conceito social de minoria, que não significa apenas uma questão
numérica. Imagine uma rua cheia de mulheres que trafegam por outdoors repletos
de referências sexualizadas. Fisicamente, há uma maioria de uma camada da
população que não moldou o espaço público da forma como ele é.
Se nós levarmos em consideração o uso correto do termo,
então que papel o lugar de fala tem nas ciências humanas?
O de um princípio metodológico. A ideia de lugar de fala
permite ao pesquisador compreender a divisão de um espaço público e interpretar
como os diferentes lugares enxergam seus meios de convívio, como proferem seus
discursos, como se comunicam e desenham o meio.
E o que mais se pode dizer sobre ele?
O lugar de fala está na ordem do discurso e, por
consequência, da linguagem. Sociólogos e antropólogos que ajudaram a moldá-lo
se deram conta das diferentes maneiras como os emitentes das interpretações e
opiniões tratam dos mesmos assuntos e como os lugares sociais em que vivem
fazem com que tenham o ponto de vista que tem.
Ok. Se lugar de fala não é o que dizem, o que isso que dizem ser o lugar de fala?
É a representatividade. As pessoas que possuem determinadas
características as tornam únicas, mas que também as colocam em determinados
grupos, e isso faz com que sintam, para o bem e para o mal, o peso da maneira
com a qual a sociedade encara cada um deles. O lugar de fala não se ganha,
porque você já o tem; a representativa sim, porque é possível que se transite
para dentro de um determinado grupo. Se eu perder uma perna, passo a ser
representativo do grupo de pessoas com deficiência; se eu mudo de afiliação
religiosa, entro no grupo de representantes da nova religião.
Mas a representatividade é sempre mutável?
Não. Existem características que são intrínsecas da pessoa,
e, neste caso, a representatividade é permanente. Cor, sexo biológico,
naturalidade são alguns desses exemplos. Já algumas características são
mutáveis: engordar, tornar-se ateu, converter-se para uma religião minoritária.
Estes são alguns exemplos daquilo que se diz “ganhar lugar de fala”. Não. Lugar
de fala não se ganha; no máximo, se muda.
Então é aqui que há impedimentos para se falar, como
muita gente pensa no lugar de fala?
Não, também aqui não há impedimentos, mas há necessidade de
se substituir a experiência direta, a tal da vivência, de alguma forma. Uma
delas é o estudo: mesmo um professor branco de classe média pode se inteirar
das questões do racismo e das minorias negras. Também o convívio e as relações
de empatia trazem informações suficientes para se sair da mera opinião e
aproximar as visões de representantes de pontos sociais distintos. Nada é tão
simples para se dividir o mundo em dois polos.
Se falamos em lugares de fala, então há de se supor que
haja alguém que “escute”. Existem lugares de escuta?
Claro! É uma relação em duas vias: um processo de fala é um output
que pressupõe a captação por algum interlocutor. A fala é distribuída pelo
espaço público e está à disposição dos outros lugares, agora de escuta, que processarão,
cada um ao seu modo, a mensagem que é colocada. É assim que se iniciam as
tentativas de dialogia.
E as vozes de todos os lugares de fala são ouvidas?
Há muitos lugares de fala que são silenciados. Isso não é
feito colocando literalmente uma mordaça nos grupos sociais, mas utilizando
outros mecanismos que façam suas manifestações se tornarem menos significantes.
Eu tenho um bom exemplo para colocar. No bairro do Canindé, nas proximidades do
Brás, existe uma feira muito famosa que é realizada todos os finais de semana
na Praça Kantuta, realizada por imigrantes andinos que trabalham na região. Lá,
fazem seus acepipes, cantam suas músicas, dançam suas danças, reverenciam suas
divindades originárias e contam suas histórias. Manifestam-se, portanto. Se
você analisar a visão geral que propiciam, especialmente no vale de chorume de
comentários das redes sociais, verá que é um lugar tido como sujo, com comidas
duvidosas, pouco recomendável para celulares e outros aparelhos. Isso é dito
por pessoas que provavelmente nunca foram lá, e se passa uma impressão geral de
temor. A fala dos andinos, uma minoria que representa o corpo de imigrantes de
países pobres, apesar de manifesta em lugares como a Kantuta, não é ouvida,
porque não é bem vista no meio social hegemônico.
Uma fala pode ser silenciada a ponto de desaparecer?
Sim, pode. Determinados lugares sociais simplesmente não são
vistos, tão misturados à paisagem urbana que se tornam sem uma solução. O caso
mais flagrante é o dos moradores de rua. Eles são colocados na conta de
qualquer outra coisa que não os definem. Em São Paulo, por exemplo, são
habitualmente igualados aos viciados em crack, o que eles não são. Também
recebem a equivalência a delinquentes, o que também não são. Os moradores de
rua são tão invisíveis que as promessas de políticas voltadas a eles são sempre
inespecíficas, e nunca estão em seu interesse. Soluções simplíssimas e
imediatas como banheiros químicos nunca são pautadas.
Existem críticas a esse conceito?
Existem, e é bom que existam. Embora pareça um conceito
típico de esquerda (vide),
os marxistas dizem que o lugar de fala é falho por considerar que todos os
atores de um determinado nicho social tem perfeita consciência do que oprimem e
de onde são oprimidos, e, por esse caminho, o conceito de alienação perderia
todo o seu sentido. Outra crítica que se faz é com relação a um desinteresse
que o conceito causaria nos lugares mais dominantes da sociedade. Com relação a
isso, entendo que faz parte da confusão que o termo causa, não no sentido de se
ganhar ou perder lugares de fala, mas de achar que o termo “saltou” do
substrato analítico para a própria realidade. Antes a realidade acontece, para
depois ser analisada. Ninguém diz que “eu tenho tal lugar de fala, portanto não
me importo com o restante da humanidade”, mas ele já não se importa pela sua
própria realidade. Outra questão é que, uma vez que para se enquadrar em um
lugar de fala é preciso lançar mão da consciência de si mesmo, nada mais temos
do que um reavivamento do bom e velho método
fenomenológico, que diz não ser possível dialogar epistemologicamente com o
mundo sem as cargas culturais que levamos conosco, e, sendo assim, o conceito
nada mais é que um rebatismo, e não uma novidade intelectual.
Para concluir, percebam que meu objetivo aqui não é nem
defender o conceito, nem pugnar pela sua adoção indiscriminada, mas apenas e
tão somente tentar ajudar na sua compreensão, porque fazia tempo que eu não via
algo ser utilizado com tanto engano, a ponto de estar ocorrendo com ele a magia
da transformação linguística de sentido. Isso é natural, mas não é desejado se
quisermos mantê-lo como um conceito válido, ou, mais simplesmente, que saibamos
o que ele significa de fato. Um bom vento a todos!
Recomendação de canais:
Há quem reclame de booktubers, mas, para mim, é inegável que
esse universo dá, ao menos, uma ideia do que vou encontrar em um livro. Já me
salvei de muita tranqueira e me interessei por muita coisa boa através desse
mecanismo. Recomendo duas:
Isabella Lubrano (Ler Antes de Morrer):
https://www.youtube.com/lerantesdemorrer
Mell Ferraz (Literature-se)
https://www.youtube.com/@MellFerraz
Já o canal abaixo é diferente, porque não se trata de dicas
de leitura, mas de técnicas de literatura, ou seja, toques para a escrita e a
publicação de obras.
Wlange Keindé (Ficçomos):
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