(Sabe quando você acha que seu mundo é o mundo de todo mundo?)
“É impossível para um homem ser enganado por outra pessoa que não seja ele próprio”
Ralph Waldo Emerson
Olá!
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Eu já falei sobre ferrovias neste meu blog em algumas
ocasiões, muito por força de meus passeios por Minas
Gerais ou de cidades paulistas que preservam suas relíquias ferroviárias (aqui
e aqui),
mas bem poucas vezes de minha relação pessoal com elas. Eu nunca fui um usuário
muito frequente das linhas férreas*, exceção feita a dois momentos bem
marcados. O primeiro deles foi lá pelo meio da década de 80. Eu trabalhava no
centro de São Caetano do Sul e estudava na Vila Prudente. Olhando no mapa, são
regiões bastante próximas, mas o ônibus que ligava ambas dava uma volta
daquelas que parecem a avó contando uma história. A linha reta da Estrada de
Ferro Santos-Jundiaí tornava o trem muito mais elegível, inclusive mais barato.
Por que a questão, então? Bom… quem chora loas ao passado
simplesmente não sabe o que está fazendo. Os trens da EFSJ eram pocilgas sujas,
cheias de buracos nos vidros e que recendiam àquele divertido cheiro de pano
queimado, tão típico dos cigarrinhos “envenenados”. Eram dias em que ainda era
encrenca ser pego com um desses, e minha tática era simples: tão logo o trem
andasse, acendia eu mesmo o meu caretíssimo Marlboro. Se os hômi baixassem o
baculejo na galera, eu já tinha a desculpa entre os dedos: não tenho nada com
isso. O pior que aconteceria seria ter que jogar o cigarro fora, ou, no limite,
ter que descer da composição. Mas, como era muito mais rápido e descomplicado
do que ter de explicar, eu-rapazola, que não tinha nada a ver com a marola
alheia, achava que valia o risco.
O segundo era anterior, nos finais de semana em que
visitávamos meus primos que moravam na Barra Funda, filhos da tia Júlia. Eles
tinham um ferro-velho na Rua da Várzea, bem perto da linha, e quando íamos lá
meu avô já tinha seus planos: pegar o trem e andar uma estação** até a estação
Água Branca, onde ficava o campo do Nacional, o time dos ferroviários.
Eu continuei dando meus pulos no velho campo da Rua
Comendador Souza até os dias de hoje, para acompanhar as desventuras do
tradicional time. É uma daquelas empreitadas absolutamente tranquilas, em que
você pode se sentar na arquibancada coberta e comer seus amendoins e até
apreciar um bom futebol de vez em quando.
O Nacional, a despeito de seus atuais passeios pelas
divisões inferiores do futebol paulista, é de uma tradição inigualável. Embora
não possa ser considerado o clube de futebol mais antigo do país, tem uma
conexão direta com o primeiro jogo de futebol praticado com registro em Terra
de Santa Cruz. Afinal, foram os ferroviários da São Paulo Railway que
enfrentaram os funcionários da Gaz Company naquele longínquo 1895, em um campo
perdido na Várzea do Carmo, aqui perto de casa. Charles Miller, o inaugurador do
esporte bretão em São Paulo, trouxe as bolas e as regras do esporte para
começar nossa longa saga dentro das quatro linhas. O time dos ferroviários
manteve-se jogando partidas isoladas e participando de pequenos torneios
incipientes, até que resolveu se organizar em um clube em 1919, a verdadeira
data de fundação. O nome original foi mantido até o término da concessão da
ferrovia em 1946, quando foi nacionalizada, o que inspirou a adoção do nome
atual. Sendo assim, o escudo da porta da federação é diferente daquele do
momento da fundação. O mascote do time, um baixinho com um apito e cap
típico dos controladores de rotas, ainda relembra os tempos em que os trens
eram empreitadas que contratavam muita gente.
O Nacional nunca esteve na crista da onda do futebol
brasileiro, embora tenha revelado muitos craques que se destacaram em clubes
maiores, como Dodô, Deco, Cafu, Magrão, Sérgio Manoel e outros. Seu campo faz
parte do Triângulo do Futebol, junto dos CTs do Palmeiras e do São Paulo,
naquela região da Barra Funda onde antes vicejava as várzeas do Tietê e as
fábricas da família Matarazzo. Recentemente, a arquibancada do estádio foi
tombada pelo patrimônio público, em vista do avanço da especulação imobiliária
sobre a região. O clube ganhou algum interesse para os praticantes de futebol
society, no espaço onde antes havia outras práticas, mas o time em si continua
na semi-obscuridade.
Há um sentimento estranho. O espírito das partidas, a
agitação da pequena Almanac**, os contornos dramáticos da sua existência fazem
com que os confrontos ali ensejados tenham uma dimensão muito maior do que tem
na verdade, como se fossem acontecimentos no mínimo municipais, quando, de
fato, pouco saem do espectro da própria Barra Funda. Mas a sensação não é essa.
Vocês já não tiveram a impressão de que um fato ou acontecimento marcante em
suas vidas era de conhecimento ou compartilhamento muito mais geral com o mundo
aos seus redores?
Na vida de todas as pessoas há coisas que nos igualam como
seres humanos, e há coisas que nos diferenciam. Como o comportamento de espécie
é atavicamente muito forte, nós temos uma tendência a buscar um certo nível de
conformidade. Quem está distante do paradigma tem aquela incômoda fama de
diferentão. Por esta razão, quando saltamos do nosso âmbito privado, vamos
procurar no universo ao nosso redor confirmações para nossas crenças e costumes
mais privados, mais individuais, ou, no máximo, dos grupos menores, mais
fechados.
A questão é que certos comportamentos individuais se tornam
arraigados, e procuramos nos aprofundar nessas pequenas coisas que nos são
caras. E, no caso do apreciador do time menor, redunda na busca de informações
que não dão em árvores. Coisas sobre Corinthians, Palmeiras e os outros
grandões dão em árvores, e não demandam nenhum tipo de esforço. Já para saber
mais sobre o Nacional, é preciso ir às fontes mais diretas, conversar com os
poucos torcedores, com os velhos frequentadores, com os funcionários clássicos.
E isso carrega nossa consciência para muito perto do objeto a ser conhecido.
A coisa ser tão envolvente acaba por trazer transformações
em nós mesmos. Todas as vezes em que saio do Nicolau Alayon com a camisa
listrada tenho a sensação de que todo mundo sabe muito bem qual é aquele time,
sua escalação completa com reservas e comissão, seus títulos e posições nos
torneios que disputa. A verdade é que não é nada disso, nem perto. Talvez os
mais jovens até pensem que é a camisa do Porto, e é de estranheza quase geral
minha disposição em acompanhar um time da A4, que não joga uma divisão nacional
há muito tempo.
Isso não acontece somente no âmbito do indivíduo, mas dos
grupos pequenos, que compartilham interesses que fogem do terreno mais comum.
Eu, por exemplo, recitava as formações de minhas bandas favoritas álbum a
álbum, dando lista completa das músicas e detalhes mais técnicos, como
engenheiros de som e produtores, ou até mesmo estúdio de gravação e ateliê de
design das capas. As pessoas às vezes me perguntavam de onde eu tinha tirado
tanta informação e porque eu tinha tanto interesse. A coisa é tão mais difícil
de entender quanto mais jovem for a pessoa, pelo óbvio motivo da diferença de
mídias. Meu aprendizado se deu com os amigos mais velhos dos meus primos:
Heber, Tuco, Daily, Serginho e outros que nem lembro mais, todos na faixa de
5-7 anos mais velhos que eu-fedelho, que ficava flanando pelas salas enquanto
meus companheiros mais velhos ouviam e discutiam sobre música, o que é
didático. O ritual era sempre semelhante. Um dos rapazes comprava um disco novo
e todo o proletariado se juntava para escutar a peça, na maioria das vezes já
com fitas cassete para levar sua cópia para casa. O mais frequente era o
precitado Daily***, que morava no porão de uma quitanda e gastava todos os seus
cobres com discos e derivados. O ambiente subterrâneo já dava um ar
literalmente underground em sua saleta forrada de pôsteres, que retumbava com
os potentes alto-falantes comprados a peso de ouro e consequente miséria
indumentária pelo indigitado, o que lhe fazia parecer um misto de hippie e
mendigo. Não falavam só dos grandalhões, como Led Zeppelin e Deep Purple, mas
de coisas verdadeiramente difíceis de se ouvir, como o bizarro krautrock
tedesco do Can, dos discos mais progressivos da Electric Light Orchestra ou dos
então recém-surgidos grupos da New Wave of British Heavy Metal, até então
desconhecidos.
Esse pequeno universo, para aquele grupo e para mim, parecia
tão definidor do que era a música, a própria sociedade e o universo, que dava a
sensação de que eu sairia do porão do Daily e veria todo mundo cabeludo e
descabelado, roupas velhas e tênis sujos, rabiscando na parede nomes com AC/DC,
Rock Goddess ou Judas Priest. Mas não. A realidade era Olivia Newton-John,
ABBA, Bee Gees, além dos mega-ídolos nacionais, como Roberto Carlos e Amado
Batista.
Não se trata de pensar em humanos estruturalmente diferentes
dos demais, mas de interesses comuns substituídos. Fossem vocês àquela época
para me perguntar sobre novelas e eu nem ao menos saberia a emissora que as
estivesse transmitindo. Mas um imenso público conhecia atores, diretores,
trama, capítulos, personagens e demais que-tais com a mesma vivacidade que eu
sabia de minhas bandas. Por isso, somos iguais, diferentes em nossas
particularidades.
Mas o que explica a sensação de que o mundo deveria saber
tudo o que sei? Bem, Freud explica e a nova psicologia aperfeiçoa a explicação,
com minhas associações feitas por conta própria.
A projeção, no espectro psicanalítico, é um mecanismo de
defesa psíquica que visa proteger a mente de uma pessoa ao atribuir a outrem as
falhas que lhe podem causar incômodo ou desconforto. Isso acontece porque o
conflito interno pela admissão do fracasso é maior que o subterfúgio do repasse
pela responsabilidade. A admissão da falibilidade é especialmente danosa ao
ego, que não processa a possibilidade de que ele é defectível, por isso esse
processo é feito inconscientemente: ao encarar a frustração, a psique procura
desesperadamente algo fora de si, e projeta sobre ele a sua causa. Quando chega
a nível consciente, o fenômeno já aconteceu - sou tão responsável pelos meus
sucessos, quanto inocente pelos meus fracassos. Devem ser inúmeras as vezes em
que você ouviu alguém dizendo que sua vida está amarrada porque há quem lhe
coloque olho gordo, e pouquíssimas onde alguém admite erros de conduta, como
preguiça, teimosia e congêneres.
A projeção é deslavadamente visível no efeito
ator/observador, de quem já falei neste
texto, mas não só. Ainda que a projeção freudiana diga respeito a
sentimentos pesarosos e negativos, dessa ideia podemos depreender que temos a
característica de imputar aos outros coisas que são nossas. A questão aqui é
que talvez não seja somente o caso de projetar por mecanismo de defesa, mas
justamente pelo sentimento de conformidade, incluindo aí visões positivas ou
neutras sobre a realidade.
Nós sabemos que vivemos em sociedade e que isso representa
um todo distinguível dos próprios indivíduos, mas também sabemos que é a partir
de nós como indivíduos que parte nossa visão sobre esta mesma sociedade. Desta
forma, ainda que a sociedade como um todo possa ser considerada uma entidade
autônoma, ela só existe pelo ponto de vista da percepção das pessoas que a
compõem. Essa percepção é enviesada, porque nós não temos o universo inteiro
dentro de nós - interpretamos o ambiente a partir de nossas crenças, de nossas
opiniões, de nossos valores e de nossos costumes, o que faz com que esses
fatores “contaminem” a nossa visão. Enquanto eles estão plenamente aderentes
àqueles comumente assumidos no meio, nada a contestar. Mas, a partir do momento
em que eu entenda que mesmo meus hábitos mais estranhos e preferências mais
incomuns são subsumidos na mesma proporção pela sociedade, ou seja, que eu os
projete para o ambiente onde eu convivo, eu sinto a estranheza de não encontrar
reflexo real no mundo. Eu saio do campo do Nacional achando que vou encontrar
inúmeros torcedores com a camisa listrada por aí, e não encontro, da mesma
forma que eu saía da casa da rapaziada mais velha achando que ouviria Magma ou
Faust a cada esquina, mas o que havia era disco music. É o efeito do
falso consenso, um viés cognitivo de atribuição que nos faz entender que os
nossos hábitos e valores são de boa aceitação e de farto uso pelo mundo
inteiro. É o famoso “mundo que gira ao redor do umbigo”.
É mais uma prova do quanto somos naturalmente egocêntricos,
e somente depois de muito convívio e confronto que nossos eus se adaptam melhor
a uma vida em comum. Como tendemos a perceber nossos conjuntos de valores como
preciosos, vamos procurar grupos que os confirmem, o que reforça ainda mais
essa percepção, de modo a atribuir uma ideia de consenso que se estende para
além dos limites desse grupo. Só que não.
Isso traz, por outro lado, a sensação de exclusividade. É
como se a estranheza com que os outros lhe encaram fosse transformada em um
sonoro “você não sabe o que está perdendo”. Acompanhar o Nacional é para
poucos, e isso porque somente quem tem verdadeiro interesse pelas raízes do
futebol e do futebol como esporte entendem o sentido de se sentar na
arquibancada memorial. Os outros gostam de grife, não de futebol. Bons ventos a
todos!
PS: você acha que esse viés não te atinge? Leia sobre isso
no meu texto sobre o viés
de ponto cego.
Recomendação de leitura:
Lançado como comemoração pelo centenário do clube, o livro
abaixo traz histórias e fotos dos principais momentos do clube, escritos por um
dos raros torcedores e prefaciado por ninguém menos que Mauro Beting.
ILHÉU, Leandro Massoni. Nacional: Nos Trilhos do Futebol
Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
*Cumpre distinguir aquilo que chamamos de trem do que
denominamos metrô, que é, no final das contas, um trem também, mas que tem toda
uma cadeia própria de construção e utilização. Então é sobre o primeiro que
estou falando.
** Almanac é a torcida organizada do Nacional
** Pronuncia-se Dailí
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