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segunda-feira, 17 de março de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o veterano Nacional e a estranheza de quem não vê a importância de nosso universo refletida no mundo inteiro

(Sabe quando você acha que seu mundo é o mundo de todo mundo?)

“É impossível para um homem ser enganado por outra pessoa que não seja ele próprio”

Ralph Waldo Emerson

Olá!

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Eu já falei sobre ferrovias neste meu blog em algumas ocasiões, muito por força de meus passeios por Minas Gerais ou de cidades paulistas que preservam suas relíquias ferroviárias (aqui e aqui), mas bem poucas vezes de minha relação pessoal com elas. Eu nunca fui um usuário muito frequente das linhas férreas*, exceção feita a dois momentos bem marcados. O primeiro deles foi lá pelo meio da década de 80. Eu trabalhava no centro de São Caetano do Sul e estudava na Vila Prudente. Olhando no mapa, são regiões bastante próximas, mas o ônibus que ligava ambas dava uma volta daquelas que parecem a avó contando uma história. A linha reta da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí tornava o trem muito mais elegível, inclusive mais barato.

Por que a questão, então? Bom… quem chora loas ao passado simplesmente não sabe o que está fazendo. Os trens da EFSJ eram pocilgas sujas, cheias de buracos nos vidros e que recendiam àquele divertido cheiro de pano queimado, tão típico dos cigarrinhos “envenenados”. Eram dias em que ainda era encrenca ser pego com um desses, e minha tática era simples: tão logo o trem andasse, acendia eu mesmo o meu caretíssimo Marlboro. Se os hômi baixassem o baculejo na galera, eu já tinha a desculpa entre os dedos: não tenho nada com isso. O pior que aconteceria seria ter que jogar o cigarro fora, ou, no limite, ter que descer da composição. Mas, como era muito mais rápido e descomplicado do que ter de explicar, eu-rapazola, que não tinha nada a ver com a marola alheia, achava que valia o risco.

O segundo era anterior, nos finais de semana em que visitávamos meus primos que moravam na Barra Funda, filhos da tia Júlia. Eles tinham um ferro-velho na Rua da Várzea, bem perto da linha, e quando íamos lá meu avô já tinha seus planos: pegar o trem e andar uma estação** até a estação Água Branca, onde ficava o campo do Nacional, o time dos ferroviários.

Eu continuei dando meus pulos no velho campo da Rua Comendador Souza até os dias de hoje, para acompanhar as desventuras do tradicional time. É uma daquelas empreitadas absolutamente tranquilas, em que você pode se sentar na arquibancada coberta e comer seus amendoins e até apreciar um bom futebol de vez em quando.

O Nacional, a despeito de seus atuais passeios pelas divisões inferiores do futebol paulista, é de uma tradição inigualável. Embora não possa ser considerado o clube de futebol mais antigo do país, tem uma conexão direta com o primeiro jogo de futebol praticado com registro em Terra de Santa Cruz. Afinal, foram os ferroviários da São Paulo Railway que enfrentaram os funcionários da Gaz Company naquele longínquo 1895, em um campo perdido na Várzea do Carmo, aqui perto de casa. Charles Miller, o inaugurador do esporte bretão em São Paulo, trouxe as bolas e as regras do esporte para começar nossa longa saga dentro das quatro linhas. O time dos ferroviários manteve-se jogando partidas isoladas e participando de pequenos torneios incipientes, até que resolveu se organizar em um clube em 1919, a verdadeira data de fundação. O nome original foi mantido até o término da concessão da ferrovia em 1946, quando foi nacionalizada, o que inspirou a adoção do nome atual. Sendo assim, o escudo da porta da federação é diferente daquele do momento da fundação. O mascote do time, um baixinho com um apito e cap típico dos controladores de rotas, ainda relembra os tempos em que os trens eram empreitadas que contratavam muita gente.

O Nacional nunca esteve na crista da onda do futebol brasileiro, embora tenha revelado muitos craques que se destacaram em clubes maiores, como Dodô, Deco, Cafu, Magrão, Sérgio Manoel e outros. Seu campo faz parte do Triângulo do Futebol, junto dos CTs do Palmeiras e do São Paulo, naquela região da Barra Funda onde antes vicejava as várzeas do Tietê e as fábricas da família Matarazzo. Recentemente, a arquibancada do estádio foi tombada pelo patrimônio público, em vista do avanço da especulação imobiliária sobre a região. O clube ganhou algum interesse para os praticantes de futebol society, no espaço onde antes havia outras práticas, mas o time em si continua na semi-obscuridade. 

Há um sentimento estranho. O espírito das partidas, a agitação da pequena Almanac**, os contornos dramáticos da sua existência fazem com que os confrontos ali ensejados tenham uma dimensão muito maior do que tem na verdade, como se fossem acontecimentos no mínimo municipais, quando, de fato, pouco saem do espectro da própria Barra Funda. Mas a sensação não é essa. Vocês já não tiveram a impressão de que um fato ou acontecimento marcante em suas vidas era de conhecimento ou compartilhamento muito mais geral com o mundo aos seus redores?

Na vida de todas as pessoas há coisas que nos igualam como seres humanos, e há coisas que nos diferenciam. Como o comportamento de espécie é atavicamente muito forte, nós temos uma tendência a buscar um certo nível de conformidade. Quem está distante do paradigma tem aquela incômoda fama de diferentão. Por esta razão, quando saltamos do nosso âmbito privado, vamos procurar no universo ao nosso redor confirmações para nossas crenças e costumes mais privados, mais individuais, ou, no máximo, dos grupos menores, mais fechados.

A questão é que certos comportamentos individuais se tornam arraigados, e procuramos nos aprofundar nessas pequenas coisas que nos são caras. E, no caso do apreciador do time menor, redunda na busca de informações que não dão em árvores. Coisas sobre Corinthians, Palmeiras e os outros grandões dão em árvores, e não demandam nenhum tipo de esforço. Já para saber mais sobre o Nacional, é preciso ir às fontes mais diretas, conversar com os poucos torcedores, com os velhos frequentadores, com os funcionários clássicos. E isso carrega nossa consciência para muito perto do objeto a ser conhecido.

A coisa ser tão envolvente acaba por trazer transformações em nós mesmos. Todas as vezes em que saio do Nicolau Alayon com a camisa listrada tenho a sensação de que todo mundo sabe muito bem qual é aquele time, sua escalação completa com reservas e comissão, seus títulos e posições nos torneios que disputa. A verdade é que não é nada disso, nem perto. Talvez os mais jovens até pensem que é a camisa do Porto, e é de estranheza quase geral minha disposição em acompanhar um time da A4, que não joga uma divisão nacional há muito tempo.

Isso não acontece somente no âmbito do indivíduo, mas dos grupos pequenos, que compartilham interesses que fogem do terreno mais comum. Eu, por exemplo, recitava as formações de minhas bandas favoritas álbum a álbum, dando lista completa das músicas e detalhes mais técnicos, como engenheiros de som e produtores, ou até mesmo estúdio de gravação e ateliê de design das capas. As pessoas às vezes me perguntavam de onde eu tinha tirado tanta informação e porque eu tinha tanto interesse. A coisa é tão mais difícil de entender quanto mais jovem for a pessoa, pelo óbvio motivo da diferença de mídias. Meu aprendizado se deu com os amigos mais velhos dos meus primos: Heber, Tuco, Daily, Serginho e outros que nem lembro mais, todos na faixa de 5-7 anos mais velhos que eu-fedelho, que ficava flanando pelas salas enquanto meus companheiros mais velhos ouviam e discutiam sobre música, o que é didático. O ritual era sempre semelhante. Um dos rapazes comprava um disco novo e todo o proletariado se juntava para escutar a peça, na maioria das vezes já com fitas cassete para levar sua cópia para casa. O mais frequente era o precitado Daily***, que morava no porão de uma quitanda e gastava todos os seus cobres com discos e derivados. O ambiente subterrâneo já dava um ar literalmente underground em sua saleta forrada de pôsteres, que retumbava com os potentes alto-falantes comprados a peso de ouro e consequente miséria indumentária pelo indigitado, o que lhe fazia parecer um misto de hippie e mendigo. Não falavam só dos grandalhões, como Led Zeppelin e Deep Purple, mas de coisas verdadeiramente difíceis de se ouvir, como o bizarro krautrock tedesco do Can, dos discos mais progressivos da Electric Light Orchestra ou dos então recém-surgidos grupos da New Wave of British Heavy Metal, até então desconhecidos.

Esse pequeno universo, para aquele grupo e para mim, parecia tão definidor do que era a música, a própria sociedade e o universo, que dava a sensação de que eu sairia do porão do Daily e veria todo mundo cabeludo e descabelado, roupas velhas e tênis sujos, rabiscando na parede nomes com AC/DC, Rock Goddess ou Judas Priest. Mas não. A realidade era Olivia Newton-John, ABBA, Bee Gees, além dos mega-ídolos nacionais, como Roberto Carlos e Amado Batista.

Não se trata de pensar em humanos estruturalmente diferentes dos demais, mas de interesses comuns substituídos. Fossem vocês àquela época para me perguntar sobre novelas e eu nem ao menos saberia a emissora que as estivesse transmitindo. Mas um imenso público conhecia atores, diretores, trama, capítulos, personagens e demais que-tais com a mesma vivacidade que eu sabia de minhas bandas. Por isso, somos iguais, diferentes em nossas particularidades.

Mas o que explica a sensação de que o mundo deveria saber tudo o que sei? Bem, Freud explica e a nova psicologia aperfeiçoa a explicação, com minhas associações feitas por conta própria.

A projeção, no espectro psicanalítico, é um mecanismo de defesa psíquica que visa proteger a mente de uma pessoa ao atribuir a outrem as falhas que lhe podem causar incômodo ou desconforto. Isso acontece porque o conflito interno pela admissão do fracasso é maior que o subterfúgio do repasse pela responsabilidade. A admissão da falibilidade é especialmente danosa ao ego, que não processa a possibilidade de que ele é defectível, por isso esse processo é feito inconscientemente: ao encarar a frustração, a psique procura desesperadamente algo fora de si, e projeta sobre ele a sua causa. Quando chega a nível consciente, o fenômeno já aconteceu - sou tão responsável pelos meus sucessos, quanto inocente pelos meus fracassos. Devem ser inúmeras as vezes em que você ouviu alguém dizendo que sua vida está amarrada porque há quem lhe coloque olho gordo, e pouquíssimas onde alguém admite erros de conduta, como preguiça, teimosia e congêneres.

A projeção é deslavadamente visível no efeito ator/observador, de quem já falei neste texto, mas não só. Ainda que a projeção freudiana diga respeito a sentimentos pesarosos e negativos, dessa ideia podemos depreender que temos a característica de imputar aos outros coisas que são nossas. A questão aqui é que talvez não seja somente o caso de projetar por mecanismo de defesa, mas justamente pelo sentimento de conformidade, incluindo aí visões positivas ou neutras sobre a realidade.

Nós sabemos que vivemos em sociedade e que isso representa um todo distinguível dos próprios indivíduos, mas também sabemos que é a partir de nós como indivíduos que parte nossa visão sobre esta mesma sociedade. Desta forma, ainda que a sociedade como um todo possa ser considerada uma entidade autônoma, ela só existe pelo ponto de vista da percepção das pessoas que a compõem. Essa percepção é enviesada, porque nós não temos o universo inteiro dentro de nós - interpretamos o ambiente a partir de nossas crenças, de nossas opiniões, de nossos valores e de nossos costumes, o que faz com que esses fatores “contaminem” a nossa visão. Enquanto eles estão plenamente aderentes àqueles comumente assumidos no meio, nada a contestar. Mas, a partir do momento em que eu entenda que mesmo meus hábitos mais estranhos e preferências mais incomuns são subsumidos na mesma proporção pela sociedade, ou seja, que eu os projete para o ambiente onde eu convivo, eu sinto a estranheza de não encontrar reflexo real no mundo. Eu saio do campo do Nacional achando que vou encontrar inúmeros torcedores com a camisa listrada por aí, e não encontro, da mesma forma que eu saía da casa da rapaziada mais velha achando que ouviria Magma ou Faust a cada esquina, mas o que havia era disco music. É o efeito do falso consenso, um viés cognitivo de atribuição que nos faz entender que os nossos hábitos e valores são de boa aceitação e de farto uso pelo mundo inteiro. É o famoso “mundo que gira ao redor do umbigo”.

É mais uma prova do quanto somos naturalmente egocêntricos, e somente depois de muito convívio e confronto que nossos eus se adaptam melhor a uma vida em comum. Como tendemos a perceber nossos conjuntos de valores como preciosos, vamos procurar grupos que os confirmem, o que reforça ainda mais essa percepção, de modo a atribuir uma ideia de consenso que se estende para além dos limites desse grupo. Só que não.

Isso traz, por outro lado, a sensação de exclusividade. É como se a estranheza com que os outros lhe encaram fosse transformada em um sonoro “você não sabe o que está perdendo”. Acompanhar o Nacional é para poucos, e isso porque somente quem tem verdadeiro interesse pelas raízes do futebol e do futebol como esporte entendem o sentido de se sentar na arquibancada memorial. Os outros gostam de grife, não de futebol. Bons ventos a todos!

PS: você acha que esse viés não te atinge? Leia sobre isso no meu texto sobre o viés de ponto cego.

Recomendação de leitura:

Lançado como comemoração pelo centenário do clube, o livro abaixo traz histórias e fotos dos principais momentos do clube, escritos por um dos raros torcedores e prefaciado por ninguém menos que Mauro Beting.

ILHÉU, Leandro Massoni. Nacional: Nos Trilhos do Futebol Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

*Cumpre distinguir aquilo que chamamos de trem do que denominamos metrô, que é, no final das contas, um trem também, mas que tem toda uma cadeia própria de construção e utilização. Então é sobre o primeiro que estou falando.

** Almanac é a torcida organizada do Nacional

** Pronuncia-se Dailí

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