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quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O café filosófico do quotidiano – religião e ópio no torpor da manhã

(Religião e ópio já foram relacionados, e revoltou muita gente. Será que deveria ser assim?) 

“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”

Karl Marx 

Olá!

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Há certas coisas que são muito antigas, mas como não tem grande tradição local, parecem grandes novidades. É muito difícil você ver uma criança que não conheça papaya, lichia, açaí, cupuaçu… enquanto é igualmente difícil que elas conheçam pitanga, uvaia (chamávamos de orvalho), nêspera, jatobá. Essas frutas “novas” eu não conhecia nenhuma quando criança, o que causa estranheza nos pós-boomers. Isso não significa que algumas surgem ou desaparecem do nada. É só o mundo girando.

Isso se aplica também a vários objetos, que vão e voltam de moda, como as vitrolas que quase todo mundo colocou para correr. O advento do CD, com sua praticidade e quase interminável uso, colocou os antigos vinis no período jurássico, mas que estranhamente voltaram nos últimos tempos, para nossa alegria. Como eu comprava um LP por pagamento, tenho uma boa quantidade deles, e, com isso, passo a voltar a suprir meu catálogo, na medida em que escavo os sebos.

Também aqui teremos imiscuídos os métodos de extração de café. Aquele a quem eu quero me referir era muito presente nos tempos em que era luxuoso utilizar produtos franceses. Era chique ter abat-jours ou peignoirs, muito mais do que lampiões ou camisolas. Quando outras culturas passaram a compartilhar a elegância por excelência, esses produtos encararam uma decadência, ficando bastante restritos a nichos. Mas eis que também nesse universo velhas coisas se tornam modernas, e temos a nova popularização das prensas francesas.

É provavelmente o mais famoso dos métodos de infusão de café, seguido de perto do ibrik para fazer café turco, e se popularizou nos últimos tempos porque permite extrair mais óleos do pó, embora haja como custo uma bebida menos límpida.


Isso acontece porque a filtragem é feita pelo próprio êmbolo que também lhe tampa, de modo a ter um contato razoavelmente longo com a água. Além disso, a trama do filtro do êmbolo não pode ser tão fechada quanto os microporos de um filtro de papel, por inviabilidade técnica. Se assim não fosse, o momento chave da baixa do êmbolo seria impossível.

O que há de bom no resultado é a oleosidade mantida, que dá um corpo diferenciado à bebida, embora haja uma quantidade razoável de resíduos. Não é complicado minimizá-los, bastando uma moagem mais grossa e uma rápida decantação, além de um controle de “perda”, ou seja, não derramar o café já infundido até o fim.


Nome do utensílio: Prensa francesa

Tipo de técnica:  Infusão

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: Deposita-se o pó no copo da cafeteira e despeja-se a água fervente, tampando a mistura pelo tempo suficiente para uma extração adequada. Após, baixa-se cuidadosamente o êmbolo até a completa transposição da água, servindo com cuidado para evitar excessos de borra na xícara.

Resíduos: Altos. Convém não despejar a totalidade do líquido nas xícaras 

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: médio/alto

O gostoso da prensa francesa está no momento exatamente após o despejo da água. Como se trata de um método de infusão, é preciso que a água fique algum tempo extraindo as virtudes do grão. Como não é tão hermética quanto uma Eva Solo, há um grande escape de vapores aromáticos, já que a própria forma do método lembra aqueles foguetinhos de fazer inalações. 

E o vapor é inebriante. Enquanto ainda não estamos naquela lucidez da perfeita vigília, há esse estado intermediário em que parece estarmos propensos a algum tipo de contato com as divindades, sei lá. Ora, que bobagem, é só uma sensação estética ativada pelo prazer do aroma agradável como primeiro ingrediente do dia, que fica entre o estímulo e o alívio.

O fato é que há uma mudança de estado, ainda que meramente psicológica. Em outras circunstâncias, e com outras substâncias, esses estados da alteração mental são muito mais realistas, e foram usados para criar obras de artes, fazer previsões do futuro, sempre baseados na mudança de percepção que faz uma espécie de contato com um além-mundo uma transcendência. Em melhores palavras, há um entorpecimento em que vemos as coisas de uma maneira diferente do que são.

A substância símbolo disso é o ópio, usado por literatos, pintores, profetas e tudo o quanto é atividade que se vale do onírico e do suprarreal para produzir suas imagens. Hoje em dia, seus derivados ainda estão francamente em uso, muitos deles legítimos, agora mais para aliviar a dor, mas até guerra o látex da papoula já causou, tal o encanto que provoca em alguns. Da minha parte, meu contato vem das cólicas de rins, que redundam em aplicações de codeína na veia. Acho que não tem nada a ver, mas a sensação de alívio da dor intensa parece causar algum tipo de barato que é concluído com uma bela dose de sono. Que é uma sensação reconfortante, isso é.

É nessa sensação de alívio provocada por um desvio dos sentidos que surgiu na história da filosofia uma de suas frases mais famosas e polêmicas: “a religião é o ópio do povo”, proferida por ele mesmo – Karl Marx. Como a interpretação dessa frase pode prejudicar seu sentido, é preciso tentar entendê-la melhor.

Religião e ópio foram irmanados em um livro cujo objetivo nem era falar sobre o papel da primeira nas sociedades, e sim no que vem depois de que esta passe a ser superada. Mas a afirmativa está na sua introdução e acabou ficando mais famosa que todo o restante do livro. Quem é religioso tem uma visão extremamente negativa da frase, mas eu posso avaliar que essa visão não é tão negativa quanto pode parecer.

Marx traz uma boa parte de sua visão religiosa das ideias de Ludwig Feuerbach, que entende ser a religião moldada pelas estruturas de uma determinada sociedade. Em sua famosa visão, estudar as divindades de um povo significa estudar esse próprio povo. O que significa isso? É que os deuses são os próprios homens magnificados, ou seja, todas as melhores virtudes do próprio homem estão sintetizadas em seus deuses. Se um povo considera a justiça um valor, então o máximo de justiça está no deus cultuado por esse povo. Idem para a misericórdia, para o amor, para a força, isoladas e conjuntas. Portanto, quando você olha para os deuses de uma determinada cultura, é para as qualidades que esse povo preza que você olha.

A novidade que Marx traz para esse aspecto está no seguinte: sendo a religião um produto do próprio homem, não é de se estranhar que ela represente toda sua cosmovisão e sentimentos que tem de si mesmo. Lembremos da materialidade que Marx dá às suas análises, então não haveremos de reconhecer um deus em si no que o homem entende por Deus, uma entidade puramente abstrata, mas o próprio homem colocado como sua autoimagem. Só que essas imagens de si mesmos não se fazem sozinhas, mas na coletividade que é expressa pela estrutura social. Quando uma religião é construída, não a é por um indivíduo, mas pelos consensos obtidos pela soma deles. Quando se fala em uma essência humana, não há que se pensar em disposições metafísicas, mas em um movimento de retorno de sua própria alienação. Deus espelha o homem porque este é a sua realização fantástica, ou seja, sua projeção materializada. Por isso, Marx diz que a religião é o mundo invertido, uma irrealidade pensada a partir de uma realidade alienada.

Tá… embora concordemos que os deuses nada mais são do que o próprio conjunto de virtudes de um povo, no que isso é um mal, já que estamos pensando em valores que são prezados pelas pessoas? A questão é que, na filosofia marxista, as coisas não surgem e somem pela força das marés, mas porque há placas tectônicas em movimentação por baixo de um aparente fluxo histórico. Todas as coisas são como são porque há conflitos de classes que as deixaram assim.

Segundo o pensamento marxista, nada se explica no mundo sem que se compreenda como a luta de classes influencia o rumo dos tempos. O arroz com feijão na sua mesa, o futebol dominical, os comentários das novelas, a música que sua vizinha ouve, o horário em que você faz sua barba, o comprimento da sua saia, tudo está relacionado, em maior ou menor grau, com a luta de classes. Isso inclui o culto que você profere. Este é o motor que faz girar o mundo, na concepção materialista tão própria do marxismo. O nível de consciência com o qual isso acontece é variável, porque dificilmente alguém estende um plano mirabolante em uma mesa e decreta que tais e tais ações serão realizadas para a manutenção do poder, mas sabe-se lançar mão dos recursos que estão ao nosso redor para que isso aconteça.

Quem tem o poder não é quem tem armas. Isso serve para momentos pontuais, porque mesmo que tenham efetivo poder físico, é com a força de persuasão que o poder se perpetua. É muito mais eficiente fazer as pessoas aceitarem seus destinos do que fazê-las viver embaixo de um tacão. Nos momentos em que a opressão se dá pela força, sempre é possível que alguém se mova, e, consciente do tamanho do grupo, produza ao menos dificuldades. Não seria melhor persuadir o povo de que as coisas estão nos seus devidos lugares, que são como são porque tem que ser assim?

Isso não se consegue unicamente com o diálogo, mas com a esperança de que haverá dias melhores para aqueles que se encaixarem em um determinado padrão. E isso não precisa ser reflexo da realidade, mas só no que se pensa ser a realidade.

Um bom exemplo está nas inúmeras palavras sobre a riqueza e a pobreza. Diz-se que aos pobres pertencem o céu, e, com isso, as pessoas nessa condição têm um subterfúgio para se confirmarem felizes no pós-morte. Mas pense um pouquinho, sem abdicar de sua fé, do que seria sua vida se nada do que preconizam as religiões existisse. Assuma isso como um mero exercício mental. Tudo o que o mundo te dá e te tira está na medida da justiça? Tudo o que as pessoas dão e recebem está em perfeito balanceamento? Há equilíbrio entre o que uns têm e outros não? Se você respondeu “não” a essas perguntas, precisamos de fato refletir e criticar nossa própria realidade.

Então temos dois caminhos na concepção de religião. A primeira é a do entorpecimento que retira o senso crítico do cidadão. Com o convencimento de que ele tem algo que vai além do mundo material, ele deixa de valorizar esse mesmo mundo material, e as suas condições reais passam a ser secundárias. Se ele sofre, se deve, se é miserável, tudo serve a um propósito maior, que é o mundo além da matéria prometido pelas religiões. Criticar a religião é criticar a própria realidade da qual ela é espelho.

Já a segunda é a do lenitivo, do entorpecimento que faz suportar a dor. Não é expresso por Marx com todas as letras, mas eu consigo enxergar esse aspecto. O cidadão busca na religião um alívio contra a vida de merda que leva, da mesma forma que procura um copo de cachaça ou… uma pipada no ópio, como era mais comum nos tempos da revolução Industrial. Nesse sentido, às vezes a religião é tudo o que a pessoa tem, a tábua de salvação à qual se agarra e uma razão para se continuar a viver, ainda que faça uma visão crítica de sua própria realidade.

Se observarmos esses dois ângulos, conseguiremos compreender como há religiões, inclusive vertentes cristãs, que não veem o marxismo como fumaça nos olhos, mas como uma leitura material da estrutura exploratória que acontece na realidade. É óbvio que elas sublimam toda a crítica por conta da fé no reconforto e esperança futuros, mas não retiram o valores quando aplicados a outras formas de alienação: o deus-mercado, o deus-dinheiro.

O que há de mais claro: Marx, seguindo sua filosofia da práxis, queria que a religião deixasse de ser estudada para que os problemas reais viessem à mesa. A questão fica mais fácil quando pensada em termos de futebol. O Botafogo acaba de ser campeão da Libertadores, o único dos times ditos grandes que ainda não tinha esse título. O Botafogo da década de 60 era um time de sonho, com Garrincha, Didi, Amarildo, Nilton Santos, Quarentinha, Zagallo. Não chegou a títulos maiores porque havia um Santos com um craque chamado Pelé à sua frente. Era um time de sonho e nos sonhos ficou, com vários campeonatos cariocas e uma Taça Brasil, e é tudo. O time atual não tem a mística daquele de 60 anos atrás, mas tem a Libertadores. Na prática, sempre ficará o aspecto religioso do time de craques, mas quem teve o troféu é este time, que provavelmente já estará muito alterado no ano que vem. Outro caso é a mítica seleção brasileira de 1982. Dizem que ela é lembrada como se fosse campeã, mas a quarta estrela na camisa não veio com eles, mas foi bordada pelo pragmático time de 1994. Isso tudo significa que o aspecto metafísico tem um valor meramente relativo: quando você quer resolver problemas práticos, é para a realidade que você olha, tangível, observável, manifesta, concreta, sólida, palpável, imanente. Portanto, a religião-ópio nada mais é do que a expressão de sua filosofia da práxis, expressa ao máximo em sua célebre tese onze: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.

Com relação ao que diz em si o livro contra Hegel, fica para outro momento. Já as teses sobre Feuerbach, idem. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

MARX, Karl. Crítica da Filosofia de Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.

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