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quinta-feira, 24 de junho de 2021

Será que as línguas são mais próximas entre si do que podemos perceber?

Olá!

Nestes dias de implantação em Taubaté, há naturais dificuldades para quem não é nativo. A localização das coisas, como caixas de banco, postos de gasolina e comércio em geral nem são tão problemáticas para quem vem de Sampa. Idem se aplica a serviços públicos: uma semana ou duas são suficientes para pegar balanço e se arranjar bem. A dificuldade maior, para este confidente que vos fala, é a comunicação. O pessoal do interior, especialmente a velha guarda, é de uma simpatia extrema, que conversa contigo com a naturalidade de quem te conhece há anos. Já conhecemos bem umas dez pessoas de ir até a casa, com menos de um mês de residência da secundogênita. Há um probleminha, porém. Essa naturalidade que citei é tão grande que chega a parecer que você, neófito, mora lá desde sempre, e muitas das referências são estranhas para mim. Além disso, há uma diferença de linguajar onde nem sempre o contexto é suficiente para a compreensão. Por exemplo, quando o pedreiro disse que ia pegar um peruzinho, resolvi fenomenologicamente suspender o meu juízo para não pensar nenhum tipo de bobagem. No fim, nada mais era do que buscar uma carriola para carregar a areia para dentro de casa.

A vida tem dessas coisas, que nada mais são que uma questão de habitualidade. Mas não posso deixar de notar uma certa semelhança nos linguajares, tanto na sensação inicial de estranhamento, quanto na percepção de que, estruturalmente, não há grandes diferenças no modo de falar na terra do raio vívido. Trocam-se as palavras, trocam-se os sotaques, mas sempre o pedreiro vai buscar alguma coisa, e conseguimos nos entender. Afinal de contas, carriola, carrinho de mão, tombador, peruzinho ou galinhota são maneiras regionais de se referir à mesma coisa, sem nenhuma outra diferença a não ser o nome em si mesmo. É uma questão de se conhecer sinonímias.

Pensando um pouquinho melhor, relembro de outras quatro línguas, cada uma presente em mim com seu tanto de história pessoal. Tem o espanhol da macróbia tia Antônia, que fazia melhor quando não tentava misturar com o português. Tem o italiano meio sujo do nonno, melhor corrigido quando precisei aprender a norma culta na marra, para aproveitar textos de Filosofia raros em português. Tem o pouquinho de francês que aprendi na escola primária, o que é uma prova ainda mais inequívoca de minha idade do que as rugas que carrego na cara. E também tem o inglês que a carreira paralela de informata me obriga. Guardadas para cá, puxadas para lá, todas carregam alguma semelhança, com diferenças significativas no vocabulário, mas sem tanta variedade em suas estruturas mais profundas. Afinal de contas, todas elas possuem uma série de fatores que, dentro de sua variabilidade, cumprem a mesma função dentro do contexto linguístico. Vejam como são parecidos os exemplos:

Eu sou brasileiro

Io sono brasiliano

Yo soy brasileño

Je suis brésilien

I am Brazilian

Ou seja, um sujeito e um predicado: alguma coisa e o que essa alguma coisa recebe de qualificativo, intermediados por um verbo. Isso significa que há mecanismos na linguagem para designar alguém, para qualificá-lo e para indicar uma ação ou estado, como no exemplo acima. Em todos esses idiomas há esses elementos e uma maneira correta de arranjá-los, que são bastante aparentados entre si.

Claro que sempre poderá ser dito que todos esses idiomas são do tronco indo-europeu, e por isso as variações são relativamente pequenas. Mas os dravídicos e uralo-altaicos da vida não são tão distintos assim quando olhados em sua raiz. Também eles têm diferenças gigantescas quando pensamos nas palavras e na maneira como são organizadas, mas que possuem muitas coisas parecidas quando cumprem sua função de refletir o mundo e as manifestações interiores.

Eu poderia me achar um gênio por ter feito essa descoberta, mas é claro que não estou com essa bola toda. As diferenças e semelhanças entre as diversas línguas não são tão difíceis de perceber, e isso não passou ao largo dos linguistas modernos, sendo que a principal corrente em voga foi inaugurada pelo filósofo estadunidense Noam Chomsky, um dos maiores ainda vivos.

Não dá para tentar explicar as teses de Chomsky sem passar pelo Estruturalismo reinante na Filosofia e na Antropologia do século XX, portanto é preciso passear um pouco. Segundo diziam estes pensadores, em tudo o que for humano, haverá uma estrutura subjacente que se reproduz em cada caniço pensante que caminhar sobre este combalido planetinha. Fisicamente, isso é fácil de perceber: cabeça, tronco e membros, mesmo que seja para perceber sua ausência. A questão é que não é estrutural somente o corpo, mas tudo o que há nele e emana dele, incluindo a cultura e as sociedades. Isso faz com que esses elementos variem essencialmente em seus conteúdos, mas não em suas formas. É como se os sistemas sociais e culturais fossem estantes, que sempre são compostas por prateleiras, mas que contém seus próprios livros e discos, de acordo com conhecimento e preferências.

No modelo estruturalista, a cultura de um povo é, portanto, diversa de outro em seus preenchimentos, mas não em seus alicerces. Portanto, quando migrada do conjunto social para o indivíduo, o que temos é uma transmissão de conhecimento. Um indivíduo não é nada sem o meio social onde vive, e isso incorpora a linguagem, que é exatamente um dos elementos culturais comuns a todos os povos. Dessa forma, a linguagem seria a coletânea de ajuntamentos de palavras com algum sentido, ou seja, as frases. A linguística, para o estruturalista, é o estudo dessas frases e seus usos. É aqui que entra a critica do velho Noam, que não vincula linguagem à cultura, mas à natureza. A linguagem não é adquirida, mas inata, e essa é uma novidade sem precedentes.

Chomsky diz que a linguagem funciona com se fosse um órgão, que todos nós, bípedes implumes, já nascemos tendo. Essa faculdade da linguagem funciona mais ou menos assim: pensemos em um coração. Ele pode ser perfeito ou ter lá suas escleroses. Seus ventrículos podem ser maiores ou menores, suas aurículas podem estar rígidas ou flexíveis, suas válvulas podem estar em ordem ou em refluxo, as coronárias menos ou mais entupidas, mas fundamentalmente sua função é a mesma: através de um mecanismo de contração e relaxamento, tocados pelos impulsos elétricos do próprio corpo, faz o bombeamento do sangue pelo organismo, o que permite a este espalhar oxigênio coletado nos pulmões. Esse é o funcionamento de qualquer coração. E ele é parte do organismo humano. Quem nasce sem, nasce morto.

O órgão da fala, logicamente uma área cerebral específica, funcionaria de maneira similar. Mesmo que haja variações de humano para humano nas questões do vernáculo, das regras gramaticais, da ortografia e por aí vai, há uma estrutura comum a todas as línguas, principalmente porque elas têm a mesma função comunicativa que deriva de um mesmo modo de funcionamento. Esse órgão da fala é inato, todos nascemos com ele, e por isso as linguagens, em alguma medida, guardam um grau de semelhanças, como se fossem o tal coração.

As línguas possuem uma estrutura interna e outra externa. A estrutura interna é exatamente essa existência da capacidade de se articular uma linguagem em pensamentos, a função principal do tal órgão da fala. Por ser biológica, ela é inespecífica, ou seja, não se aplica a um idioma em especial, mas a todo e qualquer idioma, inclusive nos artificiais. Já a externa é a língua consensual dos grupos de falantes, que são construídas em cima da base dada pela estrutura interna.

O principal erro de foco nas ideias estruturalistas, segundo Chomsky, está naquilo que elas estudam. Se o estudo da linguagem se resumir ao acúmulo das frases geradas em uma determinada cultura, teremos um erro substancial, porque a produção de frases é infinita, e, ao fim e ao cabo, qualquer determinação de regra se torna sem propósito. O que deve ser estudado não é esse acervo infinito de frases, mas o sistema que as gera indefinidamente, com núcleo na sintaxe, e não na ortografia ou no vocabulário.


Mas, e aí? A organização sintática das frases nas diferentes línguas é tão variável quanto os demais fatores. Há idiomas em que o sujeito aparece à frente do predicado, intermediados pelo verbo, enquanto há outros em que a ordem é invertida, ou ainda terceiros onde o verbo aparece por último, só para citar uma amostra. Como essa tese se sustenta?

Vamos fazer uma analogia usando os esportes com bola. Se compararmos futebol, basquete e vôlei, veremos que as regras de um nada têm a ver com os outros. Tudo é diferente: duração, critério para anotação dos pontos, quantidade de jogadores ativos e reservas, dimensões do espaço, possibilidade de empate, arbitragem, equipamentos e uniformes, material do piso, formato da meta, função de cada atleta, interrupções dos períodos e muitas outras coisas. Além da existência da bola (que também é diferente para cada esporte), nada parece coincidir nas suas práticas.

Mas essa sensação se dá porque nos atentamos ao modo com o qual se pratica o jogo, e não como essa prática dá conta dos seus objetivos. Em todos eles, há um substrato comum composto pelo que nós vamos apelidar de sintaxe. A linguagem do jogo é que haverá uma disputa, com o seguimento de regras e que inclui o atingimento de metas. Não importa se serão usados chutes para fazer gols, arremessos para fazer cestas ou cortadas par cravar pontos... essas são variações de sintaxe, mecanismos que são utilizados para atingir o objetivo. Estruturalmente, os jogos são os mesmos. Nas frases, temos a mesma coisa. Cada sintagma tem um objetivo, e, se ele é cumprido, cumpriu também sua função sintática.

O órgão da linguagem, por conseguinte, já é geneticamente construído para dispor as estruturas de linguagem de maneira que sejam compreensíveis, e, como se aplica a qualquer ser humano, é igual em toda parte do globo. Como a pele, que pode ser negra, branca ou amarela, mas que é, antes de tudo, pele: formada por tecido epitelial de revestimento, em duas camadas, com escassa matriz extracelular e que serve para evitar ações microbiológicas patogênicas, manter a umidade do organismo e reduzir os impactos mecânicos. A essas estruturas sintáticas que regem todas as linguagens, Chomsky deu o nome de gramática universal. Embora os estudos sobre as suas características sejam bastante complexos, vou elencar as mais comuns, tentando, do meu jeito, traduzir o que significa cada uma delas:

 

As línguas possuem sistemas de numeração

Em todas as línguas existe alguma maneira de se produzir contagens e numerações. A principal maneira se dá através de numerais, que indicam ordem, multiplicidade, fracionamento, quantidade e ademais mas há também outras palavras que, apesar de não identificar números com exatidão, dão noções mais ou menos aproximadas de quantidades, como “muito”, “pouco”, “demais” e assim sucessivamente.

 

As línguas têm sujeitos e predicados

Boa parte de qualquer sistema comunicativo envolve uma relação entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido. Pensemos em nossos filhos quando eram nenês. Apontávamos para as coisas e dizíamos qual era o seu nome, falando bem devagar e separando as sílabas. Quando fazíamos isso, nada mais estávamos exercitando a faculdade de qualificação da linguagem em nossas crianças. Em todas as línguas existe uma correlação entre um agente e uma ação, ou seja, um sujeito e um predicado. É dessa predicação que a linguagem reflete a dinâmica do mundo.


As línguas derivam de herança genética

A formação do léxico se dá de maneira muito semelhante aos mecanismos de seleção natural da Teoria da Evolução. Isso significa que as línguas têm ancestrais comuns, que foram se transformando na medida em que as necessidades linguísticas dos povos foram exigindo que os usos mais bem adaptados prevalecessem sobre os demais. Assim, o português tem uma montanha de línguas aparentadas, mas pelo fato de ser descendente do ibérico, tem conexões que são exclusivas com sua língua irmã, o espanhol. Num movimento ascendente, chega ao românico, ao latim, ao indo-europeu e a alguma forma de uga-uga primordial. Ora (direis), mas há palavras que são completamente desconexas entre si, não sendo detectável qualquer tipo de parentesco. É verdade, mas, se é fato que a faculdade da linguagem é inata, é de se esperar que ela surgisse onde houvesse qualquer humano, e não seria muito correto imaginar que os homens de Java falassem da mesma forma que aqueles da África, gerando raízes linguísticas diferentes. Portanto, não é a existência de um tronco linguístico único que caracteriza a herança genética, mas a capacidade de um idioma redundar de outros, em escala evolutiva.


As línguas usam elementos negativos para inverter o sentido das frases

Sempre existem nos idiomas maneiras de inverter o sentido de uma frase, fazendo com que ela se torne negativa. Em português, temos os advérbios de negação, como não, nunca, jamais e etc. Por exemplo, se eu digo “Vou ao cinema”, basta inserir a partícula “não” para que se negue a afirmação.

 

Todas as línguas têm vogais e consoantes

As vogais são os elementos básicos da fonação, porque não dependem de nada mais do que o ar que passa e do formato que a boca adota. Uma língua que somente adotasse vogais pareceria um amontoado de vagidos infantis. Já as consoantes passam por algum tipo de obstáculo no aparelho fonador, e são muito mais variáveis. Línguas compostas unicamente de consoantes são impossíveis, porque elas necessitam das complementações das vogais. Notem que não existem sílabas sem a presença de vogais.

 

As línguas funcionam em um esquema de dupla articulação

Articulação significa a maneira como elementos diferentes interagem entre si, como se fizessem uma única unidade. Na linguagem, essa articulação é dupla: primeiramente, das palavras entre si; depois, dos fonemas que compõem as palavras. Assim, sempre que se objetiva expressar uma ideia, há uma maneira correta como as palavras devem ser introduzidas em uma frase e como os fonemas devem ser ordenados em uma palavra. Exemplo: se colocarmos as palavras "terrário de precisando minhocas água as do estão", teremos uma mera explosão de palavras com um sentido impossível de se obter. Se a ordem for "as minhocas do terrário estão precisando de água", teremos uma boa articulação entre as palavras, e a ideia estará expressa corretamente. Idem com os fonemas: “nhasimoc”, foneticamente falando, não quer dizer nada, ao contrário de m/i/nh/o/k/a/s, onde os fonemas estão perfeitamente articulados para denotar os simpáticos anelídeos.


Todas as línguas denotam temporalidade

As línguas sempre possuem sintagmas que servem para situar um acontecimento no tempo, com maior ou menor sofisticação. Isso significa que há mecanismos que possibilitam saber se uma determinada ação ou evento estão ocorrendo agora, no passado ou no futuro.

 

As línguas possuem recursividade

Vou lembrar aqui daquelas alegres senhorinhas que vivem nas janelas criando calos nos cotovelos, e nos quintais fazendo as reportagens das vizinhanças. Minha mãe me mandava entregar suas costuras não só quando estava apinhada de serviço, mas quando queria evitar uma delas. Quando a charla começava, tendia ao infinito. Que “a calça era pra filha, que tinha uma amiga que (meniiiiiiina!!!) era mais espevitada que aquela atriz, lembra?, que fez um filme com aquele galã que parecia tanto com o filho da quitandeira, e por falar nisso a balança dela rouba pelo menos metade do peso... também, com o marido dela que está mais preocupado em olhar os rabos de saia da rua do Toco, sabe aquela rua que a prefeitura só asfaltou pela metade, onde vai parar esse país”...

A ideia aqui é a seguinte: diante de uma quantidade finita de elementos, como as letras e as palavras, a linguagem consegue encaminhar as possibilidades de expressão ao infinito. As línguas, para fazerem isso, possuem uma ferramenta conhecida como recursividade, que é a capacidade de mesclar frases, tanto em sequência, quanto interiormente. Se dissermos o seguinte...

Minha mãe fez uma calça que serviu bem na filha da dona Toninha

...temos duas ideias concatenadas, a da feitura da roupa e a do bom ajuste à menina. Mas podemos inserir uma outra frase entre elas, que só tem um sentido prolixo, mas que enriquece o conteúdo expressado:

Minha mãe fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha.

E isso pode seguir ao infinito:

Minha mãe varou a noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha.

Minha mãe varou a noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha, que tem 12 anos de idade.

Minha mãe varou a noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha, que, assim como minha irmã, tem 12 anos de idade.

A recursividade é a grande pedra de toque da Teoria Gerativista de Noam Chomsky, de modo que esta característica acaba sendo a mais bem acabada expressão do que ele queria dizer. Os níveis de criatividade da linguagem correspondem à própria criatividade da espécie, que domina essa ferramenta a tal ponto que esta não encontra limites, e a grande novidade chomskyana e de seus seguidores foi vincular a linguagem às instâncias psicológicas, de modo a deduzir os mecanismos que fazem com que a língua seja gerada. Essas ideias todas construíram uma teoria sólida, que é grandemente adotada até hoje pela academia.

Mas há problemas, e nós vamos abordá-los no próximo texto. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É leitura fácil? Não exatamente. Mas também não é uma esfinge pronta para te engolir. E é um grande escritor... Voltarei a ele para outras temáticas.

CHOMSKY, Noam. Estruturas Sintáticas. Petrópolis: Vozes, 2015.

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