Olá!
Nestes dias de implantação em Taubaté, há naturais
dificuldades para quem não é nativo. A localização das coisas, como caixas de
banco, postos de gasolina e comércio em geral nem são tão problemáticas para
quem vem de Sampa. Idem se aplica a serviços públicos: uma semana ou duas são
suficientes para pegar balanço e se arranjar bem. A dificuldade maior, para
este confidente que vos fala, é a comunicação. O pessoal do interior,
especialmente a velha guarda, é de uma simpatia extrema, que conversa contigo
com a naturalidade de quem te conhece há anos. Já conhecemos bem umas dez
pessoas de ir até a casa, com menos de um mês de residência da secundogênita.
Há um probleminha, porém. Essa naturalidade que citei é tão grande que chega a
parecer que você, neófito, mora lá desde sempre, e muitas das referências são
estranhas para mim. Além disso, há uma diferença de linguajar onde nem sempre o
contexto é suficiente para a compreensão. Por exemplo, quando o pedreiro disse
que ia pegar um peruzinho, resolvi fenomenologicamente suspender o meu juízo
para não pensar nenhum tipo de bobagem. No fim, nada mais era do que buscar uma
carriola para carregar a areia para dentro de casa.
A vida tem dessas coisas, que nada mais são que uma questão
de habitualidade. Mas não posso deixar de notar uma certa semelhança nos
linguajares, tanto na sensação
inicial de estranhamento, quanto na percepção de que, estruturalmente, não
há grandes diferenças no modo de falar na terra do raio vívido. Trocam-se as
palavras, trocam-se os sotaques, mas sempre o pedreiro vai buscar alguma coisa,
e conseguimos nos entender. Afinal de contas, carriola, carrinho de mão, tombador,
peruzinho ou galinhota são maneiras regionais de se referir à mesma coisa, sem
nenhuma outra diferença a não ser o nome em si mesmo. É uma questão de se
conhecer sinonímias.
Pensando um pouquinho melhor, relembro de outras quatro
línguas, cada uma presente em mim com seu tanto de história pessoal. Tem o
espanhol da macróbia tia Antônia, que fazia melhor quando não tentava misturar
com o português. Tem o italiano meio sujo do nonno, melhor corrigido quando precisei aprender a norma culta na
marra, para aproveitar textos de Filosofia raros em português. Tem o pouquinho
de francês que aprendi na escola primária, o que é uma prova ainda mais
inequívoca de minha idade do que as rugas que carrego na cara. E também tem o
inglês que a carreira paralela de informata me obriga. Guardadas para cá,
puxadas para lá, todas carregam alguma semelhança, com diferenças
significativas no vocabulário, mas sem tanta variedade em suas estruturas mais
profundas. Afinal de contas, todas elas possuem uma série de fatores que,
dentro de sua variabilidade, cumprem a mesma função dentro do contexto
linguístico. Vejam como são parecidos os exemplos:
Eu sou brasileiro
Io sono brasiliano
Yo soy brasileño
Je suis
brésilien
I am Brazilian
Ou seja, um sujeito e um predicado: alguma coisa e o que
essa alguma coisa recebe de qualificativo, intermediados por um verbo. Isso
significa que há mecanismos na linguagem para designar alguém, para
qualificá-lo e para indicar uma ação ou estado, como no exemplo acima. Em todos
esses idiomas há esses elementos e uma maneira correta de arranjá-los, que são
bastante aparentados entre si.
Claro que sempre poderá ser dito que todos esses idiomas são
do tronco indo-europeu, e por isso as variações são relativamente pequenas. Mas
os dravídicos e uralo-altaicos da vida não são tão distintos assim quando
olhados em sua raiz. Também eles têm diferenças gigantescas quando pensamos nas
palavras e na maneira como são organizadas, mas que possuem muitas coisas
parecidas quando cumprem sua função de refletir o mundo e as manifestações
interiores.
Eu poderia me achar um gênio por ter feito essa descoberta,
mas é claro que não estou com essa bola toda. As diferenças e semelhanças entre
as diversas línguas não são tão difíceis de perceber, e isso não passou ao
largo dos linguistas modernos, sendo que a principal corrente em voga foi
inaugurada pelo filósofo estadunidense Noam Chomsky, um dos maiores ainda
vivos.
Não dá para tentar explicar as teses de Chomsky sem passar
pelo Estruturalismo
reinante na Filosofia e na Antropologia do século XX, portanto é preciso
passear um pouco. Segundo diziam estes pensadores, em tudo o que for humano, haverá
uma estrutura subjacente que se reproduz em cada caniço pensante que caminhar
sobre este combalido planetinha. Fisicamente, isso é fácil de perceber: cabeça,
tronco e membros, mesmo que seja para perceber sua ausência. A questão é que
não é estrutural somente o corpo, mas tudo o que há nele e emana dele,
incluindo a cultura e as sociedades. Isso faz com que esses elementos variem
essencialmente em seus conteúdos, mas não em suas formas. É como se os sistemas
sociais e culturais fossem estantes, que sempre são compostas por prateleiras,
mas que contém seus próprios livros e discos, de acordo com conhecimento e
preferências.
No modelo estruturalista, a cultura de um povo é, portanto,
diversa de outro em seus preenchimentos, mas não em seus alicerces. Portanto,
quando migrada do conjunto social para o indivíduo, o que temos é uma
transmissão de conhecimento. Um indivíduo não é nada sem o meio social onde
vive, e isso incorpora a linguagem, que é exatamente um dos elementos culturais
comuns a todos os povos. Dessa forma, a linguagem seria a coletânea de
ajuntamentos de palavras com algum sentido, ou seja, as frases. A linguística,
para o estruturalista, é o estudo dessas frases e seus usos. É aqui que entra a
critica do velho Noam, que não vincula linguagem à cultura, mas à natureza. A
linguagem não é adquirida, mas inata, e essa é uma novidade sem precedentes.
Chomsky diz que a linguagem funciona com se fosse um órgão,
que todos nós, bípedes implumes, já nascemos tendo. Essa faculdade da linguagem
funciona mais ou menos assim: pensemos em um coração. Ele pode ser perfeito ou
ter lá suas escleroses. Seus ventrículos podem ser maiores ou menores, suas
aurículas podem estar rígidas ou flexíveis, suas válvulas podem estar em ordem
ou em refluxo, as coronárias menos ou mais entupidas, mas fundamentalmente sua
função é a mesma: através de um mecanismo de contração e relaxamento, tocados
pelos impulsos elétricos do próprio corpo, faz o bombeamento do sangue pelo
organismo, o que permite a este espalhar oxigênio coletado nos pulmões. Esse é
o funcionamento de qualquer coração. E ele é parte do organismo humano. Quem
nasce sem, nasce morto.
O órgão da fala, logicamente uma área cerebral específica,
funcionaria de maneira similar. Mesmo que haja variações de humano para humano
nas questões do vernáculo, das regras gramaticais, da ortografia e por aí vai,
há uma estrutura comum a todas as línguas, principalmente porque elas têm a
mesma função comunicativa que deriva de um mesmo modo de funcionamento. Esse
órgão da fala é inato, todos nascemos com ele, e por isso as linguagens, em
alguma medida, guardam um grau de semelhanças, como se fossem o tal coração.
As línguas possuem uma estrutura interna e outra externa. A
estrutura interna é exatamente essa existência da capacidade de se articular
uma linguagem em pensamentos, a função principal do tal órgão da fala. Por ser
biológica, ela é inespecífica, ou seja, não se aplica a um idioma em especial,
mas a todo e qualquer idioma, inclusive nos artificiais. Já a externa é a
língua consensual dos grupos de falantes, que são construídas em cima da base
dada pela estrutura interna.
O principal erro de foco nas ideias estruturalistas, segundo
Chomsky, está naquilo que elas estudam. Se o estudo da linguagem se resumir ao
acúmulo das frases geradas em uma determinada cultura, teremos um erro
substancial, porque a produção de frases é infinita, e, ao fim e ao cabo, qualquer
determinação de regra se torna sem propósito. O que deve ser estudado não é
esse acervo infinito de frases, mas o sistema que as gera indefinidamente, com
núcleo na sintaxe, e não na ortografia ou no vocabulário.
Vamos fazer uma analogia usando os esportes com bola. Se
compararmos futebol, basquete e vôlei, veremos que as regras de um nada têm a
ver com os outros. Tudo é diferente: duração, critério para anotação dos
pontos, quantidade de jogadores ativos e reservas, dimensões do espaço,
possibilidade de empate, arbitragem, equipamentos e uniformes, material do
piso, formato da meta, função de cada atleta, interrupções dos períodos e
muitas outras coisas. Além da existência da bola (que também é diferente para
cada esporte), nada parece coincidir nas suas práticas.
Mas essa sensação se dá porque nos atentamos ao modo com o
qual se pratica o jogo, e não como essa prática dá conta dos seus objetivos. Em
todos eles, há um substrato comum composto pelo que nós vamos apelidar de
sintaxe. A linguagem do jogo é que haverá uma disputa, com o seguimento de
regras e que inclui o atingimento de metas. Não importa se serão usados chutes
para fazer gols, arremessos para fazer cestas ou cortadas par cravar pontos...
essas são variações de sintaxe, mecanismos que são utilizados para atingir o
objetivo. Estruturalmente, os jogos são os mesmos. Nas frases, temos a mesma
coisa. Cada sintagma tem um objetivo, e, se ele é cumprido, cumpriu também sua
função sintática.
O órgão da linguagem, por conseguinte, já é geneticamente
construído para dispor as estruturas de linguagem de maneira que sejam
compreensíveis, e, como se aplica a qualquer ser humano, é igual em toda parte
do globo. Como a pele, que pode ser negra, branca ou amarela, mas que é, antes
de tudo, pele: formada por tecido epitelial de revestimento, em duas camadas,
com escassa matriz extracelular e que serve para evitar ações microbiológicas
patogênicas, manter a umidade do organismo e reduzir os impactos mecânicos. A
essas estruturas sintáticas que regem todas as linguagens, Chomsky deu o nome
de gramática universal. Embora os
estudos sobre as suas características sejam bastante complexos, vou elencar as
mais comuns, tentando, do meu jeito, traduzir o que significa cada uma delas:
As línguas possuem sistemas de numeração
Em todas as línguas existe alguma maneira de se produzir
contagens e numerações. A principal maneira se dá através de numerais, que
indicam ordem, multiplicidade, fracionamento, quantidade e ademais mas há
também outras palavras que, apesar de não identificar números com exatidão, dão
noções mais ou menos aproximadas de quantidades, como “muito”, “pouco”,
“demais” e assim sucessivamente.
As línguas têm sujeitos e predicados
Boa parte de qualquer sistema comunicativo envolve uma
relação entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido. Pensemos em
nossos filhos quando eram nenês. Apontávamos para as coisas e dizíamos qual era
o seu nome, falando bem devagar e separando as sílabas. Quando fazíamos isso,
nada mais estávamos exercitando a faculdade de qualificação da linguagem em
nossas crianças. Em todas as línguas existe uma correlação entre um agente e
uma ação, ou seja, um sujeito e um predicado. É dessa predicação que a
linguagem reflete a dinâmica do mundo.
As línguas derivam de herança genética
A formação do léxico se dá de maneira muito semelhante aos
mecanismos de seleção natural da Teoria da Evolução. Isso significa que as
línguas têm ancestrais comuns, que foram se transformando na medida em que as
necessidades linguísticas dos povos foram exigindo que os usos mais bem
adaptados prevalecessem sobre os demais. Assim, o português tem uma montanha de
línguas aparentadas, mas pelo fato de ser descendente do ibérico, tem conexões
que são exclusivas com sua língua irmã, o espanhol. Num movimento ascendente,
chega ao românico, ao latim, ao indo-europeu e a alguma forma de uga-uga
primordial. Ora (direis), mas há palavras que são completamente desconexas
entre si, não sendo detectável qualquer tipo de parentesco. É verdade, mas, se
é fato que a faculdade da linguagem é inata, é de se esperar que ela surgisse
onde houvesse qualquer humano, e não seria muito correto imaginar que os homens
de Java falassem da mesma forma que aqueles da África, gerando raízes
linguísticas diferentes. Portanto, não é a existência de um tronco linguístico
único que caracteriza a herança genética, mas a capacidade de um idioma
redundar de outros, em escala evolutiva.
As línguas usam elementos negativos para inverter o sentido das frases
Sempre existem nos idiomas maneiras de inverter o sentido de
uma frase, fazendo com que ela se torne negativa. Em português, temos os
advérbios de negação, como não, nunca, jamais e etc. Por exemplo, se eu digo
“Vou ao cinema”, basta inserir a partícula “não” para que se negue a afirmação.
Todas as línguas têm vogais e consoantes
As vogais são os elementos básicos da fonação, porque não
dependem de nada mais do que o ar que passa e do formato que a boca adota. Uma
língua que somente adotasse vogais pareceria um amontoado de vagidos infantis.
Já as consoantes passam por algum tipo de obstáculo no aparelho fonador, e são
muito mais variáveis. Línguas compostas unicamente de consoantes são
impossíveis, porque elas necessitam das complementações das vogais. Notem que
não existem sílabas sem a presença de vogais.
As línguas funcionam em um esquema de dupla articulação
Articulação significa a maneira como elementos diferentes
interagem entre si, como se fizessem uma única unidade. Na linguagem, essa
articulação é dupla: primeiramente, das palavras entre si; depois, dos fonemas
que compõem as palavras. Assim, sempre que se objetiva expressar uma ideia, há
uma maneira correta como as palavras devem ser introduzidas em uma frase e como
os fonemas devem ser ordenados em uma palavra. Exemplo: se colocarmos as
palavras "terrário de precisando minhocas água as do estão", teremos
uma mera explosão de palavras com um sentido impossível de se obter. Se a ordem
for "as minhocas do terrário estão precisando de água", teremos uma
boa articulação entre as palavras, e a ideia estará expressa corretamente. Idem
com os fonemas: “nhasimoc”, foneticamente falando, não quer dizer nada, ao
contrário de m/i/nh/o/k/a/s, onde os fonemas estão perfeitamente articulados
para denotar os simpáticos anelídeos.
Todas as línguas denotam temporalidade
As línguas sempre possuem sintagmas que servem para situar
um acontecimento no tempo, com maior ou menor sofisticação. Isso significa que
há mecanismos que possibilitam saber se uma determinada ação ou evento estão
ocorrendo agora, no passado ou no futuro.
As línguas possuem recursividade
Vou lembrar aqui daquelas alegres senhorinhas que vivem nas
janelas criando calos nos cotovelos, e nos quintais fazendo as reportagens das
vizinhanças. Minha mãe me mandava entregar suas costuras não só quando estava
apinhada de serviço, mas quando queria evitar uma delas. Quando a charla começava,
tendia ao infinito. Que “a calça era pra filha, que tinha uma amiga que
(meniiiiiiina!!!) era mais espevitada que aquela atriz, lembra?, que fez um
filme com aquele galã que parecia tanto com o filho da quitandeira, e por falar
nisso a balança dela rouba pelo menos metade do peso... também, com o marido
dela que está mais preocupado em olhar os rabos de saia da rua do Toco, sabe
aquela rua que a prefeitura só asfaltou pela metade, onde vai parar esse país”...
A ideia aqui é a seguinte: diante de uma quantidade finita
de elementos, como as letras e as palavras, a linguagem consegue encaminhar as
possibilidades de expressão ao infinito. As línguas, para fazerem isso, possuem
uma ferramenta conhecida como recursividade, que é a capacidade de mesclar frases,
tanto em sequência, quanto interiormente. Se dissermos o seguinte...
Minha mãe fez uma
calça que serviu bem na filha da dona Toninha
...temos duas ideias concatenadas, a da feitura da roupa e a
do bom ajuste à menina. Mas podemos inserir uma outra frase entre elas, que só
tem um sentido prolixo, mas que enriquece o conteúdo expressado:
Minha mãe fez uma
calça que, como se podia esperar,
serviu bem na filha da dona Toninha.
E isso pode seguir ao infinito:
Minha mãe varou a noite e fez uma calça que, como
se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha.
Minha mãe varou a
noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona
Toninha, que tem 12 anos de idade.
Minha mãe varou a
noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona
Toninha, que, assim como minha irmã,
tem 12 anos de idade.
A recursividade é a grande pedra de toque da Teoria Gerativista de Noam Chomsky, de
modo que esta característica acaba sendo a mais bem acabada expressão do que
ele queria dizer. Os níveis de criatividade da linguagem correspondem à própria
criatividade da espécie, que domina essa ferramenta a tal ponto que esta não
encontra limites, e a grande novidade chomskyana e de seus seguidores foi
vincular a linguagem às instâncias psicológicas, de modo a deduzir os
mecanismos que fazem com que a língua seja gerada. Essas ideias todas
construíram uma teoria sólida, que é grandemente adotada até hoje pela
academia.
Mas há problemas, e nós vamos abordá-los no próximo texto.
Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
É leitura fácil? Não exatamente. Mas também não é uma
esfinge pronta para te engolir. E é um grande escritor... Voltarei a ele para
outras temáticas.
CHOMSKY, Noam. Estruturas
Sintáticas. Petrópolis: Vozes, 2015.
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