Olá!
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Sob pressão. Este poderia ser o slogan da cafeteira Pressca,
marca registrada para um tipo de prensa que consegue manter o café quentinho
por mais tempo. É uma vantagem considerável, se levarmos em conta a temperatura
declinante desses fins de outono, principalmente quando a consorte reclama da
frieza do líquido. É um método bacana, que pode ser facilmente levado à beira
da cama.
Não deixa de ter seus rituais, apesar da aparência modernosa. O grão vai para o fundo do equipamento, que recebe a água quente e fica lá, expandindo e soltando seus óleos essenciais pelo tempo necessário. O êmbolo oco é pressionado fortemente para ocorrer a transferência, porém sem exageros para que o conjunto não vaze como um todo.
Daí para frente, é só utilizar a biqueira da tampa para derramar a quantidade desejada do líquido, em uma reserva de temperatura mais alta do que outros cafés prensados, dado o isolamento térmico produzido pelo espaço entre o pistão e o êmbolo.
Nome do utensílio: Cafeteira portátil Pressca - prensa térmica
Tipo de técnica: café prensado
Dificuldade: Média
Espessura do pó: Médio a grosso
Dinâmica: o café é colocado no fundo de um pistão e infundido. Para
a separação do líquido e do pó, um êmbolo com filtro é pressionado pelo
percurso do pistão. A água é transferida para o interior do êmbolo através de
um elemento filtrante.
Resíduos: Moderados.
Temperatura de saída: Alta
Nível de ritual: médio
Eu gosto do conjunto como um todo, mas a corzinha amarela predominante me causa uma certa cólica. É que o tom me lembra a camisa da seleção brasileira, uma das mais tradicionais do mundo, mas que virou uniforme de guerra de um tempo para cá. O café que sorvo me faz acordar do ranço que me toma, a ponto de utilizar o método com algum nível de raiva. Uma bobagem completa, mas que guarda seus fundamentos. Vamos a eles.
Nos últimos dias, uma nova polêmica daquelas desnecessárias
em Terra Brasilis. Por conta da pandemia infinita, a Argentina e a Colômbia
desistiram de sediar a Copa América, competição entre seleções mais antiga do
mundo, mas que vem sendo surrada pelas repetições sem critério nos últimos
tempos. Sem perda de um segundo, e com amplo apoio do governo federal, o
torneio foi transferido para o Brasil, país que não possui um dos melhores
índices de controle do mundo. Haveria muito para discutir sobre, mas quero
pegar um aspecto mais pessoal: independentemente de coronavírus, não tenho
nenhuma vontade de que o torneio aconteça, irrelevante que se tornou.
Ora (direis), mas tu, que buscas futebol nas mais minúsculas
circunstâncias, que buscas os pequenos campos das pequenas cidades que visita,
que te juntas a cem ou duzentas pessoas para ver o Nacional jogar em casa, que
madrugas no domingo para queimar a tampa da cabeça na Javari, que baixaste o app
da Federação para acompanhares a série B do Campeonato Paulista, que sentes um
véu de angústia em toda véspera de decisão que envolva um time caro ao seu
coração, por que desprezas justamente aquela que seria a representante maior do
gosto futebolístico?
O assunto é complexo. De fato, sempre gostei de acompanhar
jogos da seleção, pelo óbvio motivo de ver ali coligidos os principais atletas
dos campeonatos que acompanhava. Não era somente uma questão de ter um suposto
futebol de melhor qualidade, mas também de corroborações das minhas opiniões
sobre as melhores escalações e, melhor ainda, de ver os ídolos do meu time
representar o país. Mais ainda, havia um clima pacífico de união de forças em
um mesmo sentido, que não era possível de se obter nos torneios de clubes.
Verdes e alvinegros, tricolores e rubro-negros, colorados e mosqueteiros, galos
e raposas se juntavam em torno de um só grito, especialmente nas copas do
mundo, um
dos maiores rituais coletivos da brasilidade.
Acontece que esse espírito foi todo perdido progressivamente
através dos anos, e agravado recentemente. Quando eu tinha meus dez anos, a
imensa maioria dos jogadores que compunham o onze canarinho jogava no Brasil, e
a mítica seleção de 82 tinha gente do São Paulo, do Flamengo, do Atlético, do
Corinthians, do Vasco, do Palmeiras, do Inter, da Ponte, do Grêmio, do
Fluminense, do Botafogo, quase todos os grandes tinham seu representante. Os “estrangeiros”
Falcão e Dirceu já eram consagradíssimos em solo nacional. Times como Portuguesa,
Guarani, América e Bangu forneciam suas revelações constantemente ao escrete.
Depois, a partir da década de 90, os melhores jogadores foram saindo do país
cada vez mais jovens, ao ponto de nem passarem por aquele ciclo de despontar em
um time menor, ser contratado por um grandão e daí sair para o exterior. Além
disso, países antes exóticos no sentido futebolístico passaram a integrar o
circuito, fazendo com que promessas da base simplesmente sumissem da mídia. Sem
nenhuma ofensa, mesmo eu, que sigo o futebol miúdo, não faço a menor ideia do
que rola nos campeonatos da Tailândia ou do Vietnã. Mas há brasileiros lá, e
não são poucos.
O resultado foi a formação de seleções com legítimos
desconhecidos. Em um time de copa, há dois ou três jogadores realmente famosos,
com outros dois ou três que ainda dá para se lembrar, e o resto é só de gente
que eu nunca ouvi falar, que saiu muito cedo do Brasil, como foi o caso dos
relacionados para a malograda
copa de 2014. É muito difícil criar identidade com atletas que não comeram
da nossa grama, embora nos sejam conterrâneos.
Há outro elemento, porém. E muito mais significativo. Quem
não vive em um buraco de tatu sabe que, desde 2013, vivemos em Terra Brasilis
um momento de polarização insuportável. As positivas manifestações contra um
aumento de tarifa foram, como
eu temia, apropriados por um discurso muito mais difuso e inespecífico,
que, se por um lado continua trazendo uma indignação justa, por outro fez
brotar uma espécie de erva daninha que, ao fim e ao cabo, chegou ao Planalto.
Junto com ela, veio uma forma de representar que simplesmente assaltou os
símbolos pátrios, notadamente as cores da bandeira, o que inclui a camisa
amarela do escrete tupiniquim, como se eles fossem os únicos patriotas do
Brasil.
Isso está longe de ser verdade, haja vista a intensa
submissão aos Estados Unidos e a Israel, principalmente*. Por outro lado, as
ditas esquerdas, o centro e mesmo a direita menos raivosa não são contrárias ao
país, mesmo que se possam abrir infinitos parênteses. Acontece que uma sutileza
pouco perceptível a princípio abriu uma brecha monumental para a apropriação
dos símbolos brasileiros: a vinculação a outro símbolo, o do PT, o principal
partido da esquerda, junto de seus asseclas CUT e MST, todos com suas bandeiras
e camisetas vermelhas. Com os casos de corrupção e sede de poder, ficou fácil
de vincular toda uma camada de pensamento à cor vermelha, que representaria uma
ameaça comunista, porque isso mexe com os medos mais entranhados da casta
conservadora - a ameaça ao sagrado direito da propriedade. Além disso, outros
motores foram acionados, dada a corrupção e ineficiência no trato estatal, o
que aumentou o poder do símbolo: são entidades contrárias ao país, ao ponto de
rejeitar nossas cores, no dizer dos retrocitados.
E com isso tivemos a tomada do símbolo, e a própria
indisposição com a seleção me faz pensar na precisão das constatações de Pierre
Bourdieu, sociólogo francês que compreendeu muito bem o que é esse poder
simbólico, representado, no seu mais alto ponto, pela bandeira estrelada do
Brasil. Somos marcados pelo poder que os símbolos têm sobre nós. E nos
reconhecemos como subordinados a esses símbolos, porque estamos em um polo
passivo. Nem mesmo percebemos isso. Esfregam a bandeira na nossa cara como se
ela não fosse nossa também, como se quem a brandisse estivesse dizendo que não
temos direito a ela, até que, de saco tão cheio, queremos nos afastar dela,
porque passa a nos oprimir, e não nos representar.
Esse poder simbólico é tão imperceptível assim? É, sim. Se
alguém acha que eu escrevo bem, enxerga em mim alguém que vem da academia, e
desde os tempos do império a universidade é um distintivo de elitismo, a quem é
reconhecida uma autoridade que não vem das armas, mas da interiorização de uma
inferioridade. A palavra de um acadêmico tem mais autoridade que a de um leigo,
não porque de fato aquele tem uma carga maior de conhecimentos, mas porque
pertence à classe dominante. Criam-se mecanismos de acesso às pessoas mais
pobres, como quotas, financiamentos e exames, e o que se tem é o jus sperniandi de quem precisa ceder
espaço. E, de volta, essas coisas não são berradas nas esquinas, mas tratadas
como se fossem naturais.
Por isso o poder simbólico é também um gerador de violência
simbólica. Quando dizemos que a bandeira nos é arrancada das mãos, e que a
camisa da seleção não serve para quem não se alinha ao atual mandatário, temos
um ato de violência contra nós; não porque nos faça sangrar ou crie hematomas,
mas porque nos tira liberdade, tira-nos a identificação, tira-nos o direito de
usar os símbolos pátrios de maneira legítima, ou, pior ainda, de maneira
confortável. Eu confesso que morro de vergonha de lhes contar que há, no fundo
da minha gaveta, uma camisa da seleção brasileira, já cheirando a naftalina.
Mas é direito legítimo meu utilizá-la. Não é violento que eu não o possa fazer?
Que isso represente um peso para mim?
O caso é que o governo atual vem fracassando miseravelmente.
Há muito contrassenso desde o começo de suas ações, como indicações nepotistas
e vínculos a (ora vejam) ações corruptas, como rachadinhas e distribuição de
verbas parlamentares, tão combatidas no discurso eleitoral. Dessa forma, todo
mundo que já não está fanatizado vê o tamanho da esparrela em que se meteu.
Mas, como eu disse, há os fanáticos, e estes ainda seguram a
peteca do atual mandatário, principalmente porque o barulho que produzem é
intenso, em especial nas redes sociais. O símbolo da seleção canarinho ainda é
tão intenso que qualquer coisa de duas pernas trafegando na rua com a camisa
verde-amarela já identifica um deles, mesmo que não seja. Com isso, mesmo que a
camisa da seleção esteja perante nós para a pegarmos de volta, há tanta vontade
no polo oposto que ainda não se consegue esquecer que seu sentido é cada vez
mais pejorativo. Agora não seríamos somente patriotas; seríamos radicais.
E como fazer para resgatar o símbolo perdido? Esta é a
pergunta que evola junto ao fumegar do meu café?
As manifestações de rua poderiam ser um começo de solução, porque
temos comportamentos
de manada. Contudo, algo me fez coçar o piolho. No dia 29 de maio último, a
oposição saiu do buraco e resolveu afrontar a pandemia. O que poderia ser uma
espécie de alento imprudente me trouxe uma preocupação muito grande: lá estava
o mar vermelho de novo, pronto para tomar as mesmas pedradas de antes. Qualquer
pessoa que discorde do mandatário atual et
magna comitante caterva, mas não se alinhe com PT e congêneres, não se
sentirá minimamente compungido a aderir à rediviva causa. Mais do mesmo, dirão.
O caso é de se pensar o que se quer de mais imediato, e, a
partir disso, deixar as cores identitárias de lado pelo tempo necessário não só
para a coalisão, mas para a retomada do que nunca deveria ter deixado de ser
nosso. É preciso deixar claro que essa ambiguidade entre as cores de uma causa
e as cores nacionais simplesmente não existe, e que o uso da camisa da seleção
não fornece a ninguém um atestado de patriotismo. Mas não basta vestir a camisa
e sair por aí. É preciso que o verde-amarelo esteja lado a lado com as causas
que se pretendem defender, inclusive (e principalmente) as manifestações de
desagrado com aqueles que nos tungaram o direito ao símbolo.
Se acaso o rumo não mudar drasticamente, será um processo
lento, disso não tenho nenhuma dúvida, e que incluirá uma boa parte da
proverbial memória curta atribuída ao brasileiro. Talvez a próxima copa que já
se avizinha, mas que será realizada após o pleito presidencial no Brasil, seja
uma boa oportunidade para o resgate desse símbolo, já devidamente livre daqueles
que o tomou como seu.
Perdi a bronca da cafeteira amarela, mas senti um certo
gosto de pimenta no café sorvido. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
A obra de Bourdieu é extensa e toda cheia de concatenações.
Inevitavelmente vou voltar a ele, mas, por ora, recomendo este libreto, que
pode ser lido rapidamente.
BOURDIEU, Pierre. O
Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
* Embora a associação fosse mais com pessoas do que
propriamente com países, como Trump e Netanyahu, que, aliás, já caíram. Vejam
como a posse de Joe Biden reduziu dramaticamente a quantidade de referências à
terra do Tio Sam.
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