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quinta-feira, 17 de junho de 2021

O café filosófico do quotidiano – a difícil retomada do símbolo sequestrado

Olá!

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Sob pressão. Este poderia ser o slogan da cafeteira Pressca, marca registrada para um tipo de prensa que consegue manter o café quentinho por mais tempo. É uma vantagem considerável, se levarmos em conta a temperatura declinante desses fins de outono, principalmente quando a consorte reclama da frieza do líquido. É um método bacana, que pode ser facilmente levado à beira da cama.

Não deixa de ter seus rituais, apesar da aparência modernosa. O grão vai para o fundo do equipamento, que recebe a água quente e fica lá, expandindo e soltando seus óleos essenciais pelo tempo necessário. O êmbolo oco é pressionado fortemente para ocorrer a transferência, porém sem exageros para que o conjunto não vaze como um todo.

Daí para frente, é só utilizar a biqueira da tampa para derramar a quantidade desejada do líquido, em uma reserva de temperatura mais alta do que outros cafés prensados, dado o isolamento térmico produzido pelo espaço entre o pistão e o êmbolo.


Nome do utensílio: Cafeteira portátil Pressca - prensa térmica

Tipo de técnica: café prensado

Dificuldade: Média

Espessura do pó: Médio a grosso

Dinâmica: o café é colocado no fundo de um pistão e infundido. Para a separação do líquido e do pó, um êmbolo com filtro é pressionado pelo percurso do pistão. A água é transferida para o interior do êmbolo através de um elemento filtrante.

Resíduos: Moderados.

Temperatura de saída: Alta

Nível de ritual: médio

Eu gosto do conjunto como um todo, mas a corzinha amarela predominante me causa uma certa cólica. É que o tom me lembra a camisa da seleção brasileira, uma das mais tradicionais do mundo, mas que virou uniforme de guerra de um tempo para cá. O café que sorvo me faz acordar do ranço que me toma, a ponto de utilizar o método com algum nível de raiva. Uma bobagem completa, mas que guarda seus fundamentos. Vamos a eles.

Nos últimos dias, uma nova polêmica daquelas desnecessárias em Terra Brasilis. Por conta da pandemia infinita, a Argentina e a Colômbia desistiram de sediar a Copa América, competição entre seleções mais antiga do mundo, mas que vem sendo surrada pelas repetições sem critério nos últimos tempos. Sem perda de um segundo, e com amplo apoio do governo federal, o torneio foi transferido para o Brasil, país que não possui um dos melhores índices de controle do mundo. Haveria muito para discutir sobre, mas quero pegar um aspecto mais pessoal: independentemente de coronavírus, não tenho nenhuma vontade de que o torneio aconteça, irrelevante que se tornou.

Ora (direis), mas tu, que buscas futebol nas mais minúsculas circunstâncias, que buscas os pequenos campos das pequenas cidades que visita, que te juntas a cem ou duzentas pessoas para ver o Nacional jogar em casa, que madrugas no domingo para queimar a tampa da cabeça na Javari, que baixaste o app da Federação para acompanhares a série B do Campeonato Paulista, que sentes um véu de angústia em toda véspera de decisão que envolva um time caro ao seu coração, por que desprezas justamente aquela que seria a representante maior do gosto futebolístico?

O assunto é complexo. De fato, sempre gostei de acompanhar jogos da seleção, pelo óbvio motivo de ver ali coligidos os principais atletas dos campeonatos que acompanhava. Não era somente uma questão de ter um suposto futebol de melhor qualidade, mas também de corroborações das minhas opiniões sobre as melhores escalações e, melhor ainda, de ver os ídolos do meu time representar o país. Mais ainda, havia um clima pacífico de união de forças em um mesmo sentido, que não era possível de se obter nos torneios de clubes. Verdes e alvinegros, tricolores e rubro-negros, colorados e mosqueteiros, galos e raposas se juntavam em torno de um só grito, especialmente nas copas do mundo, um dos maiores rituais coletivos da brasilidade.

Acontece que esse espírito foi todo perdido progressivamente através dos anos, e agravado recentemente. Quando eu tinha meus dez anos, a imensa maioria dos jogadores que compunham o onze canarinho jogava no Brasil, e a mítica seleção de 82 tinha gente do São Paulo, do Flamengo, do Atlético, do Corinthians, do Vasco, do Palmeiras, do Inter, da Ponte, do Grêmio, do Fluminense, do Botafogo, quase todos os grandes tinham seu representante. Os “estrangeiros” Falcão e Dirceu já eram consagradíssimos em solo nacional. Times como Portuguesa, Guarani, América e Bangu forneciam suas revelações constantemente ao escrete. Depois, a partir da década de 90, os melhores jogadores foram saindo do país cada vez mais jovens, ao ponto de nem passarem por aquele ciclo de despontar em um time menor, ser contratado por um grandão e daí sair para o exterior. Além disso, países antes exóticos no sentido futebolístico passaram a integrar o circuito, fazendo com que promessas da base simplesmente sumissem da mídia. Sem nenhuma ofensa, mesmo eu, que sigo o futebol miúdo, não faço a menor ideia do que rola nos campeonatos da Tailândia ou do Vietnã. Mas há brasileiros lá, e não são poucos.

O resultado foi a formação de seleções com legítimos desconhecidos. Em um time de copa, há dois ou três jogadores realmente famosos, com outros dois ou três que ainda dá para se lembrar, e o resto é só de gente que eu nunca ouvi falar, que saiu muito cedo do Brasil, como foi o caso dos relacionados para a malograda copa de 2014. É muito difícil criar identidade com atletas que não comeram da nossa grama, embora nos sejam conterrâneos.

Há outro elemento, porém. E muito mais significativo. Quem não vive em um buraco de tatu sabe que, desde 2013, vivemos em Terra Brasilis um momento de polarização insuportável. As positivas manifestações contra um aumento de tarifa foram, como eu temia, apropriados por um discurso muito mais difuso e inespecífico, que, se por um lado continua trazendo uma indignação justa, por outro fez brotar uma espécie de erva daninha que, ao fim e ao cabo, chegou ao Planalto. Junto com ela, veio uma forma de representar que simplesmente assaltou os símbolos pátrios, notadamente as cores da bandeira, o que inclui a camisa amarela do escrete tupiniquim, como se eles fossem os únicos patriotas do Brasil.

Isso está longe de ser verdade, haja vista a intensa submissão aos Estados Unidos e a Israel, principalmente*. Por outro lado, as ditas esquerdas, o centro e mesmo a direita menos raivosa não são contrárias ao país, mesmo que se possam abrir infinitos parênteses. Acontece que uma sutileza pouco perceptível a princípio abriu uma brecha monumental para a apropriação dos símbolos brasileiros: a vinculação a outro símbolo, o do PT, o principal partido da esquerda, junto de seus asseclas CUT e MST, todos com suas bandeiras e camisetas vermelhas. Com os casos de corrupção e sede de poder, ficou fácil de vincular toda uma camada de pensamento à cor vermelha, que representaria uma ameaça comunista, porque isso mexe com os medos mais entranhados da casta conservadora - a ameaça ao sagrado direito da propriedade. Além disso, outros motores foram acionados, dada a corrupção e ineficiência no trato estatal, o que aumentou o poder do símbolo: são entidades contrárias ao país, ao ponto de rejeitar nossas cores, no dizer dos retrocitados.

E com isso tivemos a tomada do símbolo, e a própria indisposição com a seleção me faz pensar na precisão das constatações de Pierre Bourdieu, sociólogo francês que compreendeu muito bem o que é esse poder simbólico, representado, no seu mais alto ponto, pela bandeira estrelada do Brasil. Somos marcados pelo poder que os símbolos têm sobre nós. E nos reconhecemos como subordinados a esses símbolos, porque estamos em um polo passivo. Nem mesmo percebemos isso. Esfregam a bandeira na nossa cara como se ela não fosse nossa também, como se quem a brandisse estivesse dizendo que não temos direito a ela, até que, de saco tão cheio, queremos nos afastar dela, porque passa a nos oprimir, e não nos representar.

Esse poder simbólico é tão imperceptível assim? É, sim. Se alguém acha que eu escrevo bem, enxerga em mim alguém que vem da academia, e desde os tempos do império a universidade é um distintivo de elitismo, a quem é reconhecida uma autoridade que não vem das armas, mas da interiorização de uma inferioridade. A palavra de um acadêmico tem mais autoridade que a de um leigo, não porque de fato aquele tem uma carga maior de conhecimentos, mas porque pertence à classe dominante. Criam-se mecanismos de acesso às pessoas mais pobres, como quotas, financiamentos e exames, e o que se tem é o jus sperniandi de quem precisa ceder espaço. E, de volta, essas coisas não são berradas nas esquinas, mas tratadas como se fossem naturais.

Por isso o poder simbólico é também um gerador de violência simbólica. Quando dizemos que a bandeira nos é arrancada das mãos, e que a camisa da seleção não serve para quem não se alinha ao atual mandatário, temos um ato de violência contra nós; não porque nos faça sangrar ou crie hematomas, mas porque nos tira liberdade, tira-nos a identificação, tira-nos o direito de usar os símbolos pátrios de maneira legítima, ou, pior ainda, de maneira confortável. Eu confesso que morro de vergonha de lhes contar que há, no fundo da minha gaveta, uma camisa da seleção brasileira, já cheirando a naftalina. Mas é direito legítimo meu utilizá-la. Não é violento que eu não o possa fazer? Que isso represente um peso para mim?

O caso é que o governo atual vem fracassando miseravelmente. Há muito contrassenso desde o começo de suas ações, como indicações nepotistas e vínculos a (ora vejam) ações corruptas, como rachadinhas e distribuição de verbas parlamentares, tão combatidas no discurso eleitoral. Dessa forma, todo mundo que já não está fanatizado vê o tamanho da esparrela em que se meteu.

Mas, como eu disse, há os fanáticos, e estes ainda seguram a peteca do atual mandatário, principalmente porque o barulho que produzem é intenso, em especial nas redes sociais. O símbolo da seleção canarinho ainda é tão intenso que qualquer coisa de duas pernas trafegando na rua com a camisa verde-amarela já identifica um deles, mesmo que não seja. Com isso, mesmo que a camisa da seleção esteja perante nós para a pegarmos de volta, há tanta vontade no polo oposto que ainda não se consegue esquecer que seu sentido é cada vez mais pejorativo. Agora não seríamos somente patriotas; seríamos radicais.

E como fazer para resgatar o símbolo perdido? Esta é a pergunta que evola junto ao fumegar do meu café?

As manifestações de rua poderiam ser um começo de solução, porque temos comportamentos de manada. Contudo, algo me fez coçar o piolho. No dia 29 de maio último, a oposição saiu do buraco e resolveu afrontar a pandemia. O que poderia ser uma espécie de alento imprudente me trouxe uma preocupação muito grande: lá estava o mar vermelho de novo, pronto para tomar as mesmas pedradas de antes. Qualquer pessoa que discorde do mandatário atual et magna comitante caterva, mas não se alinhe com PT e congêneres, não se sentirá minimamente compungido a aderir à rediviva causa. Mais do mesmo, dirão.

O caso é de se pensar o que se quer de mais imediato, e, a partir disso, deixar as cores identitárias de lado pelo tempo necessário não só para a coalisão, mas para a retomada do que nunca deveria ter deixado de ser nosso. É preciso deixar claro que essa ambiguidade entre as cores de uma causa e as cores nacionais simplesmente não existe, e que o uso da camisa da seleção não fornece a ninguém um atestado de patriotismo. Mas não basta vestir a camisa e sair por aí. É preciso que o verde-amarelo esteja lado a lado com as causas que se pretendem defender, inclusive (e principalmente) as manifestações de desagrado com aqueles que nos tungaram o direito ao símbolo.

Se acaso o rumo não mudar drasticamente, será um processo lento, disso não tenho nenhuma dúvida, e que incluirá uma boa parte da proverbial memória curta atribuída ao brasileiro. Talvez a próxima copa que já se avizinha, mas que será realizada após o pleito presidencial no Brasil, seja uma boa oportunidade para o resgate desse símbolo, já devidamente livre daqueles que o tomou como seu.

Perdi a bronca da cafeteira amarela, mas senti um certo gosto de pimenta no café sorvido. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

A obra de Bourdieu é extensa e toda cheia de concatenações. Inevitavelmente vou voltar a ele, mas, por ora, recomendo este libreto, que pode ser lido rapidamente.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

* Embora a associação fosse mais com pessoas do que propriamente com países, como Trump e Netanyahu, que, aliás, já caíram. Vejam como a posse de Joe Biden reduziu dramaticamente a quantidade de referências à terra do Tio Sam.

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