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terça-feira, 29 de junho de 2021

O embate entre linguistas causado por uma pequena tribo do Amazonas (um bom exemplo do funcionamento da falseabilidade)

Olá!

Nesses dias invernais, em que eu fico filosofando na varanda para tomar um pouco de sol, lembro às vezes dos tempos de eu-menino. Eram dias em que ainda se justificava o epíteto de Terra da Garoa a este pedaço de território, com dias frios de fazer pena e aquela chuvinha incessante. Existiam as férias de julho, que seriam inúteis se não fossem as brincadeiras caseiras. Ah, sim, existiam também as odiosas lições de férias, mas essas eram liquidadas no último final de semana antes do retorno. Para os outros dias, o povo que não tinha celular ficava vendo desenhos, tomando café quente ou brincando de joguinhos, dos quais o meu favorito era o futebol de botão.

Eu morava perto da fábrica de brinquedos Canindé, que não, não ficava perto do campo da Portuguesa, mas na Vila Ema, bairro operário de segunda geração. Eles produziam caixas de times de botão que não eram dos melhores, mas eram MUITO baratos. Uma caixinha amarela típica custava menos de um quarto do preço de um time Brianezi ou Craks da Pelota, escrito assim mesmo, que eram mais sofisticados e profissionais.

As caixas da Canindé traziam dez jogadores, uma trave, uma palheta, e um disco à guisa de bola (bolinhas de feltro só vinham em conjuntos profissionais), além de um goleiro móvel. Este era o único item que eu não utilizava, lançando mão de uma caixa de fósforo recheada de pregos, na qual eu indulgentemente colava o adesivo do escrete em questão. Normalmente, brincava no chão de tacos da sala, embora não morasse na Santa Cecília. Dava para se divertir um bocado nos dias de geleira pública, mas tinha um menino na rua que tinha um Estrelão. Pergunte a qualquer moleque da década de 70 o que era ter um Estrelão.

Deixem que eu mesmo conto. Um Estrelão era uma tábua de madeirite verde, onde era estampado um campo de futebol, e que servia de estádio para as pelejas imaginárias. Esqueça das mesas profissionais, que emulavam um gramado. Um Estrelão era uma espécie de sonho, perfeito para aquela modalidade proletária de futebol de botão, principalmente porque tinha a moldura alta, o que dava a vantagem de tabelar os jogadores com a lateral, algo impossível nas mesas mais sérias. Outras coisas ajudavam: era um piso mais regular que os tacos, vinha com os desenhos das áreas, tinha a versatilidade de ser posto em qualquer piso, ou na mesa da cozinha, ou no sofá, ou até no capô de um carro.

O Estrelão permitia, portanto, que se depurassem as jogadas, de forma a aperfeiçoá-las. Toques secos para tirar a bolinha do chão, chutes longos para arrastar adversários junto e outras mumunhas tornavam possíveis jogadas que um teco simples não permitiam, como encobrir o goleiro ou aproveitar um botão rival mal posicionado. Mas existia uma jogada que era impossível de realizar: o gol olímpico.

Para quem não sabe, gol olímpico é aquele feito batendo-se diretamente um escanteio para o gol, sem tocar em nenhum jogador do time adversário. Se não entra direto, não é gol olímpico. Conta-se que esse nome vem do fato de que o primeiro time a levar um gol dessa forma tenha sido o Uruguai, cujo epônimo é Celeste Olímpica. No futebol real, o gol olímpico é possível porque o batedor põe uma rosca na bola e o goleiro falha. Já no botão amador, esse efeito não é possível de obter, penso que por conta da pequena distância percorrida. Sem a curva, é praticamente impossível fazer a pelotinha entrar, pelo pouco ângulo disponível. Se você treinar bastante, até consegue bater a gol direto do córner, mas a bolinha só entra se não tiver goleiro. Minha fórmula para me defender de um gol olímpico era simples: deixar a caixinha-arqueiro paralela e adjacente à linha de fundo, do lado de dentro do gol, encostada na trave oposta ao canto de onde partia a cobrança. Podia até haver algumas tentativas, mais pelo desafio, mas o resultado era sempre o mesmo: a defesa do goleiro.

Um dia, o dono do tabuleiro apareceu com uma novidade na hora de um escanteio. Ao invés de deixar a bolinha na posição deitada, deixou-a de lado, como se fosse um daqueles pneus de descer a ladeira. Achei ridículo, e armei meu goleiro Fiat Lux como de costume, rente à linha. A bolinha veio toda esquisita, e repicou torta antes do goleiro, indo parar no fundo da rede, para surpresa minha e gáudio do colega.

É um aprendizado, meus amigos. Se minha partidinha de futebol de botão fosse uma teoria científica, ela estaria falseada. Vejam: a posição do goleiro sempre impede o gol olímpico, era a tese. Ao ocorrer o fenômeno, ela está provada falsa, e a solução é descartá-la ou modificá-la.

Acontece nas melhores famílias, e põe melhores nisso. No meu último texto, que recomendo fortemente a leitura, falei do Gerativismo, teoria que pressupõe a existência de uma sintaxe comum a todas as línguas humanas, chamada de Gramática Universal, que foi desenvolvida a partir dos estudos de um dos maiores gênios vivos do planetinha, Noam Chomsky. O que a boa Filosofia da Ciência manda que se faça quando uma teoria é criada? Ora, que se encontre ao menos um ponto em que esta pode ser provada falsa. Teorias não falseáveis não são científicas, e a do gerativismo tem estes pontos. Bastaria que se encontrasse uma língua que não atende aos critérios gramáticos universais. E pasmem, ela foi encontrada, em uma tribo seminômade perdida nas margens do rio Maici, no meio do Amazonas, com menos de 500 viventes. Trata-se da tribo pirahã, uma espécie de inferno dos antropólogos.


Eu já mencionei os pirahãs de raspão neste e neste texto, e eu devia para vocês, meus inusuais leitores, alguma coisa mais robusta sobre sua cultura única. O começo está na sua língua, estudada a fundo pelo linguista estadunidense Daniel Everett, que viveu por trinta anos com os membros desta insólita comunidade.

Everett encontrou uma língua totalmente estranha ao padrão costumeiro entre os povos indígenas, que fugia em alguns pontos da gramática universal proposta pelos gerativistas. Alguns deles são raros, mas não são exclusivos, como a questão da entonação, que muda por completo o sentido de certas palavras. Além disso, há um número limitado de consoantes e, mais estranho, de vogais na produção de seus fonemas. Também desenvolveram um sofisticado método de comunicação que utiliza assovios, especialmente útil quando saem para a caça. Mas a coisa entorta mais seriamente quando nos pegamos a confrontos diretos com o gerativismo.

Primeiro, os pirahãs não possuem cores nos seus vocabulários, no máximo utilizando noções de mais claro e mais escuro. Pior ainda, eles não possuem sistemas de numeração. Dois, dez ou setenta e sete não trazem nenhum significado para eles, e as contagens não fazem parte de sua cultura, incluindo aí qualquer noção de aritmética. O que há é só uma noção de quantificação: eles compreendem que há “muito” ou “pouco” de uma coisa qualquer, além da noção de unidade – “um” é o único numeral que eles utilizam, mas em um sentido próximo a “sozinho”, e não de elemento de contagem.

Até aí, é estranho, mas seriam apenas excentricidades acessórias.  A coisa vai ficando mais exótica quando se sabe que os pirahãs, apesar de possuírem verbos, não possuem conjugações fora do presente, ou seja, não há tempo passado, nem futuro, o que já é um caso único entre as línguas do mundo. Mas o pior ainda é a falta de recursividade, o elemento linguístico que mais bem fundamenta a teoria de Noam Chomsky. Ela diz que todas as línguas humanas possuem a capacidade de concatenar e embutir frases dentro de frases, produzindo combinações que podem chegar ao infinito. Por exemplo:

O locutor ficou com tanta raiva durante o jogo que estava narrando que chegou a quebrar seu microfone.

Ao contrário, as sentenças em pirahã são todas isoladas e trazidas para o presente, mais ou menos assim:

Há jogo. Locutor narra. Locutor fica com raiva. Locutor quebra o microfone.

Everett dá um desfecho para seus estudos dizendo que a configuração da linguagem pirahã é mais simples do que diz a teoria gerativista. Como funcionam outros mecanismos evolutivos, a língua destes índios se adaptou às circunstâncias ambientais em que sua cultura se desenvolveu. Ou seja, o centro do desenvolvimento linguístico não está em um órgão da fala, mas no ambiente que forja a cultura de uma comunidade. Todos esses elementos mencionados faltam à linguagem simplesmente porque não possuem utilidade no universo às margens do Rio Maici.

Tudo bem. Até aqui, eu só mencionei casos que perturbam a cabeça dos linguistas, mas uma das explicações possíveis é o tormento dos antropólogos estruturalistas: é que os pirahãs tem uma característica singular, inesperada para qualquer povo do qual se estude a cultura. E talvez isso explique até mesmo as discrepâncias de sua linguagem.

Everett era um missionário cristão, e, como tal, tinha que praticar os mandamentos de sua religião. Um deles é seu caráter apostólico, ou seja, não basta que exista uma comunidade específica de crentes, mas é preciso buscar convencer outros povos e outras culturas da validade de sua religião. Os indígenas em geral são animistas, têm vários deuses que estão relacionados diretamente a elementos naturais e com ritos de curas espiritualizados. Em suma, um terreno fertilíssimo para desenvolver proselitismo religioso. É claro que um missionário não chega chegando, mas trata de primeiramente conhecer os ritos e cultos locais para depois oferecer as vantagens de sua própria religião. Como vem de países tecnológicos, costumam assombrar os povos autóctones, de modo a passar neles algum tipo de sensação de vantagem na conversão. E com isso vai se descortinando a cadeia de convencimento.

Acontece que Everett encontrou dificuldades em encaixar seu cristianismo aos pirahãs. Primeiramente, não conseguiu traçar paralelos entre os mitos de criação cristãos, porque estes não existem entre os pirahãs. Depois, percebeu que, embora os indígenas conhecessem meios de cura através do uso de plantas e outros subterfúgios naturais, eles estavam completamente desvinculados de rituais. Mais para frente, notou que não havia ritos mortuários entre eles. Na morte, os defuntos são enterrados e pronto. Nenhuma marca, nenhuma forma de lembrar o local do enterro, nada. Mais importante: não há entre os pirahãs nenhuma expectativa de post mortem. Acabou, acabou; punto e finito.

Os pirahãs, até que se tenha notícia, são o único povo ateu do mundo. Pessoas ateias existem aos montes no mundo, mas sempre inseridos em uma cultura geral que possui divindades, e que acabam sendo influenciadas por ela. Uma das grandes bandeiras do estruturalismo está na presença de formas religiosas em todas as sociedades do mundo, e uma exceção como essa traz o mesmo problema trazido à questão linguística. A questão é tão controversa que até mesmo teses como a teoria dos arquétipos de Jung recebem seus espirros.

Talvez isso explique muita coisa. Se não há mitos de criação, isso denota um desinteresse pelo passado. E se não há expectativa de vida após a morte, parece possível pensar em um desapreço pelo futuro. Os pirahãs vivem para o presente e os acessos a passado e futuro são curtos, tipo preocupações com a janta. Esse desligamento com uma ancestralidade e com uma posteridade tornou inútil a criação de elementos linguísticos que representem tempos distantes. Se eu não estou preocupado com o preço do dólar, por que raios eu quereria aprender sua origem nas moedas de prata de Joachimsthal? Sendo assim, buscar o passado ao ponto de elaborar um mito de criação seria um contrassenso, e isso se espelha na linguagem, ora essa. Como é um povo do concreto, do real, do tangível, os pirahãs não acreditam em nada que não possa ser presenciado. A partir do momento em que um relato não parte ao menos de um testemunho ocular, tudo vai por água abaixo. Eles não se apegam à história do “sentir no coração”. Sentido, para eles, é o que eles veem, ouvem, tocam. Pode parecer algo primitivo, mas não é, não. Não é exatamente o que se espera da Ciência?

Há muita controvérsia nos trabalhos de Everett, e há um grande mal-estar entre ele e os acadêmicos adeptos da tese consagrada, que usam todas as formas de esperneio contra o ianque. É preciso colocar muitas coisas à mesa. Sua longa vivência entre os nativos é uma das grandes ferramentas ao seu favor, e, embora tenha se dedicado ao estudo da linguística com mais profundidade somente após seu contato inicial com os índios, não há motivos para acreditar que seu trabalho não seja, ao menos, sincero.

Minha resposta ao embate é a mais honesta possível: não sou linguista, então não tenho competência suficiente para me posicionar. O que tiro disso tudo é filosófico: a Filosofia da Ciência prega que a verdade não é eterna, e que só é possível se aproximar dela. Resistir a uma tese oposta é saudável, mas devemos lembrar que teorias podem ser ajustadas. No caso em tela mesmo temos uma grande lição. Se Everett estiver certo, há duas escolhas possíveis: ou descartamos a teoria da gramática universal como está, ou desqualificamos os pirahãs como seres humanos. O que você prefere?

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Segue a citação do livro mais popular de Daniel Everett.

EVERETT, Daniel. Linguagem: a História da Maior Invenção da Humanidade. São Paulo: Contexto, 2019.

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