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sexta-feira, 30 de junho de 2017

Navegar é preciso viver - 3ª ancoragem: São Bento do Sapucaí, por uma Filosofia do azeite

Olá!

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Vamos dar continuidade ao périplo. Após Monteiro Lobato e São Francisco Xavier, eu e a patroa nomeamos a cidade de Santo Antonio do Pinhal como porto seguro para nossas estadias. Como pegamos um hotel bastante razoável a preço amigável, resolvemos fixar âncoras por lá mesmo, ao invés de caçar pouso aqui e ali, como é consuetudinário fazermos. Óbvio que isso acabou por nos levar a muitos endereços do retro citado município, e em diferentes momentos, o que me levará a deixá-lo por último (mas não em último). Então passarei para o próximo passo, a cidade de São Bento do Sapucaí, lugar onde se habituou a construir capelas de mosaicos.


Em primeiro lugar, vamos dar a situação geral. Ao contrário do que ocorreu nos quatro primeiros dias de viagem, o tempo deu uma fechada geral, ficando nublado e garoento (existe essa palavra?). Para quem queria visitar a célebre Pedra do Baú e suas vizinhas, trata-se de um brochante acidente. Vejam a situação da dita cuja:


O mesmo se aplica ao Bauzinho e à Ana Chata, as outras duas formações que compõe o conjunto, do ponto de vista da apícola em que nos encontrávamos:


Estando tudo invisível e indistinguível, nada a fazer senão buscar alternativas. Enquanto a precipitação ainda não estava no nível do encharcante, fomos visitar a parte mais rural da cidade, onde podem ser encontradas muitas trilhas e cachoeiras, dentre as quais a Cachoeira dos Amores.


Ela é subsidiária ao Ribeirão do Paiol Grande, e fica em uma propriedade particular, que cobra (pouco) pela entrada. É uma das mais tranquilas de todas para levar crianças, tendo em vista sua pouca altura e grande piscina natural, com várias pedras para servir de assento.


Quando a chuva apertou, o único rumo a ser seguido era o da região urbana. Seguindo o costume desta região que se ligava no passado às trilhas que levavam às Minas Gerais, há um padrão semelhante às localidades de tropeiros, sendo que, especialmente aqui, há a influência das bandeiras que partiam do universo então habitado, mais próximo ao litoral. Para rememorar este fato, logo no pórtico de entrada de São Bento, encontra-se a estátua de um bandeirante, figura polêmica sobre a qual debateremos oportunamente.


A área possuía todas as características de cidade fundada entre os séculos XVIII e XIX, incluindo a atividade agrícola suportada por mão de obra escrava. Um dos bairros mais célebres é justamente o Quilombo, cujo nome é autoexplicativo. No local onde se situava o dito cujo, foi montado nos dias de hoje um complexo de venda de artesanatos. Na sua entrada, há a reprodução de uma capelinha de pau-a-pique, com os seus simples paramentos.


O lugar é um galpão bastante amplo, de pé direito alto, e é gerido por uma espécie de cooperativa de artesãos, que dividem o espaço em si, mas que possui um caixa centralizado e partilha de gastos para o bem comum dos cooperados.


A principal matéria-prima utilizada é a palha de bananeira, que permeia flores, imagens de santos estilizadas, presépios, recobrem bandejas, guarnecem cortinas, arquitetam cestos e ornamentam caixas de bijuterias, e constituem o casco de inúmeros barquinhos votivos, daqueles que carregam promessas para os santos.


Por falar em artes, no mesmo bairro temos mais duas curiosidades interessantes: a igreja da Imaculada Conceição, em estilo colonial, toda construída em adobe (os famosos tijolos de barro misturado com palha, para dar mais leveza à estrutura), com o característico mastro do Divino cravado logo ao lado ...


... e o atelier do artesão Ditinho Joana, provavelmente o artista mais conhecido da municipalidade, com renome a nível nacional na utilização de esculturas de madeira. Naquele dia nublado, infelizmente fechado.


Em regresso ao trecho central da cidade, chegamos às capelas de mosaicos, de onde se originou o costume local de se produzir obras de arte revestidas pelas coloridas partículas. A primeira delas fica à beira da estradinha que leva ao pé da Pedra do Baú, dedicada à Santa Cruz.


Já a outra fica na porção mais central da cidade, em uma rua do fundo de um quarteirão, colocada ao lado de um atelier, de autoria dos mosaicistas Ângelo Milani e Claudia Villar.


Ambas não são compostas apenas de peças aleatórias. Os mosaicistas aproveitaram a superstição popular de não jogar cacos de imagens de santos no lixo, sob pena de sacrilégio, e agregaram ao revestimento toda sorte de pedaços de estátuas. O resultado final é curioso e belo, apesar de um pouco lúgubre.


E a moda pegou de tal forma que é possível ver mosaicos pela cidade inteira. Como era de se esperar, eles estão nos ateliers...


... nas praças...


... nos estabelecimentos comerciais (como o bom restaurante Sabor da Serra – não estou ganhando um tostão pela propaganda... rá, rá, rá)...


... também nas placas e faixas das ruas...


... e até mesmo nos marcos da via sacra que levam às proximidades da igreja matriz, de forma a terem serventia nas solenidades e procissões da Semana Santa.


Por falar nela, a igreja matriz é dedicada, como não poderia deixar de ser, a São Bento, que fundou a Ordem dos Beneditinos, rigorosa com seus claustros. A igreja em si possui as típicas estruturas em arcos abobadados, o que confere ar magnânimo à obra.


Um dos seus mais conhecidos párocos foi o Monsenhor Pedro do Vale Monteiro, cuja estatua fica situada na praça de mesmo nome. Dizem que foi intensamente dedicado à educação das crianças, em especial as mais carentes.


Fomos embora após um sorvete de queijo. Mas resolvemos voltar no dia seguinte, com a melhora das condições do clima. Novamente fomos amassar barro com nosso pobre carrinho, já devidamente amarronzado. Ainda impossibilitados de buscar as alturas das pedras, fomos caçar algo diferente: uma fábrica de azeite situada no meio dos campos. Trata-se da Oliq (também não estou ganhando nada aqui).


Fomos recebidos pelo Ademilson e pela Natália, que recebem os visitantes com fatias de pão italiano e muitos goles de azeite puro, divididos entre azeitonas de origem espanhola, portuguesa e italiana, além dos óleos de abacate. Eles têm a paciência de demonstrar todas as etapas da produção, que no mês de abril não está ativa. O motivo disto é a sazonalidade do negócio. As azeitonas ficam prontas no fim do ano, e a colheita e prensagem ocorrem por essa época.


Eu sempre tive curiosidade de ver as oliveiras. Há tantos significados por trás delas e de seu produto principal que não resisti à vontade de lidar com elas filosoficamente.


Esse é o tema, portanto. Tenho um livro chamado “A Filosofia na Cozinha”, escrito pela professora italiana Francesca Rigotti, muito interessante e fácil de ler. É daqueles que, abaixo de uma boa árvore e acompanhado de um queijo com um fio de azeite, é possível ler de uma só sentada. Um dos tópicos do livro diz respeito aos alimentos filosóficos. A professora inclui quatro na lista: leite, ovos, pão e vinho. Vou adicionar mais um – o tal do azeite.

Lipídeos. Isso é o que buscamos, basicamente, quando abrimos uma garrafa de bom óleo. Em geral, não estamos aqui muito preocupados com sua composição molecular, mas com aquilo que se pode extrair de seu imo. De fato, ao pensar no azeite de oliva, o mais tradicional de todos, temos uma espécie de correspondência metafísica com uma anima, ou até mesmo de uma arché, uma essência que explica a sua existência. Quem conhece um lagar certamente sabe do que estou falando.

Uma azeitona, vista individualmente e por fora, não faz supor nada mais do que uma fruta pequena, pouco apetitosa se comparada a uma ameixa ou uma manga. Só que a aparência modesta precisa ser descortinada para que se chegue ao paroxismo do azeite. Vejam: a mesma ameixa ou a mesma manga citadas, uma vez premidas, gerarão um sumo e basta – algo efêmero, tão passageiro quanto uma estrela cadente.  Já a azeitona passa por um processo que se assemelha a um rito de passagem – da destruição de sua forma perfeita no processo de moagem ao estertor da prensagem a frio que lhe rouba a essência, um líquido extraído como se extrai uma verdade, com dor. Mas deste parto o sumo resultante fará com que a mágica aconteça: os químicos dirão se tratar de uma diferença de polaridades entre substâncias, mas os estetas pensarão se tratar de uma espécie de epifania, como se o próprio produto do esmagamento pudesse dizer: “Se queres minha substância autêntica, se queres minha característica distintiva, se queres aquilo que me torna único, eu vos darei sozinho”. E eis que óleo e água se isolam sem intervenção, como se a legitimação do processo se desse por essa manifestação volitiva – da oliva, claro. E da desnaturação da moagem e da prensagem, desprendida da água da vulgaridade, nasce a essência mais pura, mais original, mais espontânea e franca – o fruto da oliveira tem agora sua verdadeira natureza exposta – o azeite.

Processo análogo ocorre com os demais óleos, embora de outros seja necessário ainda o cozimento, o refino, a filtragem, mas o objetivo é sempre o mesmo: retirar o cerne do vegetal. Só que o azeite de oliva é ainda mais delicado. Sob pena de alterações na sua acidez e na oxidação, o processo precisa ser, paradoxalmente, delicado e rápido. Não se pense em acrescer aditivos para mantê-lo estável, isso não é coisa de azeite. No máximo, pondere espécies diferentes de azeitona para se chegar ao melhor sabor – todas elas de alma entregue.

Diferentemente da água que cai célere, o azeite escorre. Ele reluz e brilha como se fosse um verniz pelo qual o alimento precisa passar para se tornar ainda mais nobre. Enquanto Heráclito usava a água dos rios para simbolizar o devir, Parmênides perdeu a excelente oportunidade para trazer ao azeite o privilégio de representar a permanência. Qualquer um que precise lavar a louça sabe bem do que estou falando. Um suco, um vinho ou outro líquido privado de viscosidade causam um resíduo que basta uma boa enxaguada para resolver. Vá fazer isso com algo impregnado de azeite. É preciso água quente e saponificação adequada para que desprenda do objeto em que se instalou. O azeite (e gorduras em geral) se agarra tenazmente em seus invólucros e recipientes, e por isso mesmo é tão utilizado em medicina e ritos religiosos.

Peguemos o exemplo da liturgia cristã. Enquanto nos batizados a água representa uma limpeza dos pecados, do azeite se espera representar a graça divina que para sempre se funde ao fiel. É também fármaco que aquece os ungidos em seu leito de morte. Aliás, os unguentos e pomadas aproveitam justamente essa característica de adesão para que sejam mantidas no corpo do enfermo as mezinhas que lhe darão efeito curativo.

Além disso, o azeite doa seu pendor lubrificante para o quotidiano dos homens. Espalhado pelo corpo é proteção e estratégia de luta. Os antigos gladiadores se besuntavam de azeite para dificultar o agarre pelos seus adversários. Se o azeite quase se funde amorosamente com o que se toca, também o faz com o guerreiro que lhe busca o socorro.

E a noite... O azeite é o combustível das lamparinas que nossas avós e todas as enfermeiras buscavam para cuidar de seus entes. Não é por ventura a lamparina acesa o símbolo do cuidado solidário? Que vale a lamparina sem seu azeite para queimar? A candeia nada é sem seu azeite; já o azeite permanece o que é. O azeite, aqui mais uma vez, é símbolo de persistência e da paciência, da chama que queima lentamente, consumida aos poucos por um pavio que parece inerte, como se fosse seu dever não ser notada. Uma espécie de desafio ao próprio tempo.

O azeite é tudo isso e muito mais que possamos pensar. Ele se agarra à nossa mente da mesma forma que à nossa pele. Lembro ainda hoje dos dias em que não havia muita coisa para entreter o estômago, como hoje em dia podemos encontrar em nutellas e cream-cheeses. A copa pouco cheia não chegava a exaltar o ânimo, mas uma bem imiscuída garrafa de bom azeite parecia reluzir quando encontrada. Eram poucas as coisas de qualidade máxima adquiridas pela minha operária família. O arroz precisava de escolha, a carne nem sempre servia para bife, os ovos dependiam do bel-prazer das galinhas da redondeza; economizava-se em tudo isso para que se pudesse ter o melhor azeite. Um pouco de sal, um fio de azeite e um pão honesto: era isso o necessário para aplacar a ira estomacal com um prazer um tanto raro de encontrar.

No final das contas, fiz mais poesia do que filosofia, mas quem disse que essa última precisa ser desprovida de emoção e boas lembranças? É isso que espero de meu azeite e da minha visita a São Bento do Sapucaí, a quem espero rememorar nos dias em que estiver mais contando histórias do que propriamente as vivendo.

Recomendação de leitura:

Como mencionei acima, a professora Francesca teve uma boa ideia ao reunir os princípios filosóficos que podemos encontrar ao redor de um fogão e à beira de uma mesa. Segue a referência.


RIGOTTI, Francesca. A Filosofia na Cozinha. São Paulo: Ideias e Letras, 2016.

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