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sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 2ª estação: Cristina e os velhos laços com a monarquia

Olá!


Chovia. Após minha estada por Maria da Fé, só vi chuva, de madrugada e depois pela manhã, e isso fazia pensar no pobre Bedelho, cognome do carro que me leva para cima e para baixo. Ele não é um 4x4 potente, com pneus largos e boa distância para o piso. Não. É um sedanzinho 1.4, já meio velho, ordinário como outro carro qualquer, que nasceu para comer asfalto, e não terra. Ou, pior ainda, se lambuzar de lama. Quase fiquei atolado em Santo Antonio do Pinhal, quando desafiei uma tormenta para ficar embaixo de uma cachoeira. Na hora de ir embora, os inúmeros poceiros mostraram que o bichinho é valente, mas meu banco ficou todo furado, por conta da compressão dos esfíncteres, meu e da patroa. Além disso, não consegui subir de carro até onde era possível na serra do Picu, em Itamonte, o que me obrigou a andar um bom trecho a mais a pé (o que não foi ruim, no final das contas). Por isso, tenho sido mais conservador nessas coisas de me enfiar no barro estando motorizado. Se o próximo presidente confirmar suas promessas e o Brasil se tornar grande, pretendo trocar o vetusto pangaré por uma macchina mais valente. Por ora, vamos amassar barro com os pés mesmo.

Ainda assim, não seria eu que ficaria sentado no trono de um quartinho de hotel com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar. E, por isso mesmo, segui adiante na direção norte, mais próxima da região do Circuito das Águas Mineiro, em uma pequena cidade chamada pelo singelo nome de Cristina.



Já no caminho, uma grande quantidade de cafezais. Estamos em uma das regiões de Minas Gerais onde o café é consagrado como um dos melhores do mundo. Digo mais. É daqui o café mais bem cotado do planetinha, vencedor do prêmio Cup of Excellence, uma espécie de Oscar da rubiácea. Quem vê, imagina que são grandes fazendeiros com imensas quantidades de terras, mas não. A maioria dos produtores são pequenos. É um café naturalmente doce, como bem pude provar na área urbana da cidade.



Esta última é marcada por um pequeno núcleo, em cuja entrada encontra-se o que resta do antigo conjunto ferroviário da antiga linha de Sapucaí, o mesmo de Maria de Fé, e que hoje se encontra praticamente toda desativada, com esparsos usos turísticos, como em São Lourenço ou Passa Quatro. Na foto abaixo, podemos ver os fundos da lateral da estação à esquerda e o museu ferroviário à direita.



A estação tem a mesma carinha típica das demais, um galpão razoavelmente bem preservado, merecendo apenas uma pintura e uma reforma nas esquadrias, que hoje serve como rodoviária da cidade.



Já o museu tem à sua disposição um exemplar de trem que circulava por aquela linha, mais especificamente a composição de número 423. É um conjunto de locomotiva e vagão para carga do carvão, o combustível competente para a tarefa.



O trem é de fabricação norte-americana, um Baldwin de 1911, como se pode observar na placa lateral de sua caldeira; mais que centenário, portanto. O veículo praticamente é só um casco, já que muitas peças de seus mecanismos estão ausentes. Claro que não sou especialista nas artes ferroviárias, mas eu tenho boca e vou a Roma Cristina.



É informação que obtive na parte interna do museu, onde se encontram vários objetos doados, especialmente pela população local. Algumas das estantes possuem objetos que não são propriamente ferroviários, mas que ajudam a contextualizar a época. Em outras, há artigos mais específicos, como peças, ferramentas, uniformes e até um dos antigos avisos de sinalização que ficavam dispostos aos maquinistas ao longo da linha.



Há também algumas maquetes que reproduzem os antigos trens, como as máquinas a óleo e elétricas que vieram substituir os atávicos aparelhos a vapor que, no entanto, não deixaram de ser retratados. Abaixo, uma miniatura do trem exposto no pátio ao lado, mais completo, com seu vagão de passageiros.



Outro item ligado à ferrovia é uma caixa d’água, muito semelhante à que vi em Maria da Fé. Como se pode perceber pela foto, é um local que atualmente se presta à socialização pós almoço dos munícipes. Em outras palavras, uma boa sombra para o bate-papo e fazer digestão.



Mas Cristina não é só baixio. É morro, e como tem morro nessa terra. À medida que subimos, mais e mais casas antigas podem ser observadas, em especial na longa praça Santo Antonio, quarteirão muito bonito e com várias coisas interessantes para se ver. Percebam o quão íngreme são suas ladeiras, o que fez me lembrar bastante de Queluz.



Há diversas obras de arte espalhadas pela praça. Uma delas é um leão cuja autoria é desconhecida, mas o escultor de seus aparatos é personagem célebre destas cercanias. Trata-se de Chico Cascateiro, cujas obras de concreto imitam madeira e outros elementos, e de quem já vi outras pela redondeza, em especial na praça central de Carmo de Minas.



Outra delas, um pouco mais acima, é do mesmo artista, e é uma fonte que mistura um monte de elementos e referências, contendo inclusive um Manequinho, o moleque pelado tão caro à torcida do Botafogo.



Já no alto da praça Santo Antonio, temos o coreto e um quiosque de informações turísticas/badulaques gerais. Lá, tive a infeliz informação de que a maioria das trilhas, incluindo aquelas da grande Mata da Prefeitura, que garantem mais de três horas de caminhada, estavam fechadas em decorrência das chuvas. Nhé.



Quase no topo do eixo urbano de Cristina, temos o antiquíssimo chafariz público, obra que possibilitou a existência de água na parte mais alta da cidade. É o marco arquitetônico mais antigo do Arraial de Espírito Santo do Cumquibus, seu nome anterior. Apesar da aparência indígena, esse nome é uma expressão latina (cum quibus), que significa “com os quais”. Não entendi o sentido, mas deixa para lá.



Deste ponto, é possível ter noção do contraste entre o meio urbano e os morros ao fundo da paisagem, mostrando o quanto o lugar é alto. Em um segundo plano, o quanto o casario é bem preservado também. A se notar que não se trata de arquitetura tããããããão antiga quanto São Luiz do Paraitinga, por exemplo.



Estando no chafariz, basta se olhar para cima para se ver a igreja do Divino Espírito Santo. Esta matriz não é a igreja original, que seria centenária. Foi uma reconstrução da década de 50, mantendo a originalidade apenas do seu frontão eclético e do arrimo de pedras que pode ser visto ao lado.



É uma igreja que tem um interior bem menos festivo do que costuma acontecer com igrejas barrocas, mas, mesmo assim, podemos destacar a feitura de seu altar e a presença do túmulo do Cônego Artêmio Schiavon, um dos seus mais destacados párocos.



Apesar do barro, fomos ainda dar um pulo na Cachoeira da Gruta, que, na verdade, é um conjunto de saltos que fica onde originalmente existia uma pequena usina hidrelétrica que servia para abastecer a cidade.



É um rio de corredeira, repleto de pedras e com água muito barrenta. Como não tem poços profundos, é sossegado para tomar um banho, embora não haja garantia de que você sairá límpido e brilhante. Sua parte alta, acessível por uma trilha, tem um poço um pouco mais ousado, com uma altura que dá um tombo dos bons. Paisagisticamente, tem o aspecto abaixo.



Não achei onde fica a tal da gruta, talvez se refira a uma das suas reentrâncias, mas o curso se chama Rio do Bode. Próximo à ponte que lhe atravessa, há uma fonte de água mineral. Praticamente não precisamos colher água de lá. No momento em que fomos encher nossas garrafinhas, a chuva voltou a despencar com força, e nada nos restou a não ser tomar café, ora.



Bom, quem é a tal Cristina que nomina estas paragens e que substituiu a sua antiga denominação? Trata-se de nada mais, nada menos que a imperatriz do Brasil por ocasião do reinado de Dom Pedro II, Dona Teresa Cristina. De nascimento, era italiana, e pertencia à casa dos Bourbon. Essas uniões entre famílias reais eram comuns e convenientes por essa época, para manter as boas relações exteriores em dia. Seu nome completo era Teresa Cristina Maria Josefa Gaspar Baltasar Melchior Januária Rosália Lúcia Francisca de Assis Isabel Francisca de Pádua Donata Bonosa Andréia de Avelino Rita Liutgarda Gertrude Venância Tadea Spiridione Roca Matilde de Bourbon e Bragança, um verdadeiro catálogo de cartório. Foi dado pela deferência da sua filha, a famosa Princesa Isabel, que se encantou pela viagem que fez a Lambari e a Caxambu, onde tratava-se com as águas medicinais tidas como milagrosas. A referência régia é um orgulho para a cidade, que se autoproclama “Cidade Imperatriz”.

Hoje em dia, após anos na claudicante república tupiniquim, é um pouco estranho que ainda façamos remissões à monarquia com tanta deferência. Se perguntarmos um a um, veremos que são poucos os malucos que optariam por um novo reinado, ainda mais se levarmos em conta o perfil absolutista que este regime teve no país tropical. Basta se lembrar do plebiscito de 1993, quando era possível optar entre monarquia e república, em mais uma dessas jabuticabas constitucionais da Ilha de Vera Cruz. Apenas 7,58% do eleitorado total disse preferir ter um rei, ainda que se leve em conta se tratar de uma monarquia constitucional, onde o monarca não exerce o poder governamental, que fica a cargo do congresso. Se fosse um imperador absoluto, provavelmente teríamos menos de 1% dos votos. Não sei.

Mas o fato é que a figura real povoa o imaginário das pessoas. Um exemplo bem simples, vindo da religião: os deuses são representados como reis, e não como presidentes. Já vi retratados senhores com coroas, sentados em tronos e de cetros nas mãos, nunca com uma faixa verde-amarela a tiracolo, sentado em uma escrivaninha com luminária. Poder-se-ia dizer que é apenas uma tradição, mas uma ousadia da representação mais moderna poderia causar imenso desconforto, ainda que não fosse desrespeitosa, de modo algum. Portanto, o buraco é mais embaixo.

As monarquias eram predominantes na política mundial da Idade Moderna, e assim se mantiveram até a Revolução Francesa, ocorrida em 1789. Não que os reinados não existissem antes, mas o mundo antigo testemunhava grandes prevalências de determinados impérios, como o Romano, enquanto na época medieval os reinos eram fragmentados nos feudos, onde cada senhor era uma espécie de rei do seu próprio castelo. O advento das grandes navegações e a decorrente expansão comercial fez com que o poder se concentrasse muito fortemente na mão de poucas pessoas. Os palácios e seus frequentadores eram cercados de grande aparato e riqueza, cujos recursos saíam da mão da grande massa de agricultores, artesãos e, principalmente, dos burgueses, uma classe emergente de mercadores que tinha muito dinheiro e pouco poderio decisório. A base da manutenção de tal sistema se dava pela doutrina do direito divino. Deus seria um rei maior, que rege todo o universo, e que legava a alguns escolhidos a prerrogativa da administração de seus sacramentos e do exercício do poder temporal. Aos primeiros, damos o nome de clero; aos outros, de nobreza.

Acontece que florescia na Europa, impulsionado pelo avanço científico e tecnológico, o movimento conhecido como Iluminismo, cuja principal base era a substituição de um pensamento metafísico e religioso (como era o caso do direito divino) por um espírito crítico, baseado na comprovação de muitos fenômenos como derivações naturais, em relação de causa e efeito, e não pelas predisposições de uma divindade. Se o mundo girava por conta própria, por exemplo, porque o mandato régio deveria ser explicado por legado divino? O que dava direito a monarcas de se apartarem da imensa maioria de destinos humanos?

Nesse ambiente pontuam as ideias de inúmeros intelectuais, mas vamos falar aqui mais especificamente de François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire. Muitas vezes apontado como um dos grandes precursores da Revolução Francesa, a verdade é que a oposição dele à monarquia não era tão empedernida assim. O princípio que o leva a essa posição mais moderada tem um nome: tolerância. Essa é a grande chave do seu pensamento.

É verdade que ele era um crítico mordaz dos reis, imperadores e clérigos, mas justamente pela posição reacionária dos mesmos. A semente de toda a intolerância reside no fato destes quererem ser deuses em ponto pequeno – possuidores de onisciência. Mas o imperador é um humano como outro qualquer, limitado em seu conhecimento. A questão é epistemológica: se toda a Ciência, que conta com o acúmulo de experiências e saberes, com observações e com instrumentações, ainda assim produz resultados sujeitos a erro, como alguém como indivíduo, pelo simples fato de possuir uma origem nobre, pode se arrogar o direito de deter toda a sabedoria?

A tolerância está na base dos direitos humanos, e esses pertencem a todos, independentemente de condição estamental. Tem direito à vida e a condições minimamente aceitáveis todo aquele que vive, independentemente de crenças e preferências. O cerne deste pensamento é o exato oposto do que aquele que mata por crer em algo que o outro não crê, como no caso das religiões institucionalizadas, contra quem Voltaire era extremamente ácido, um motivo absolutamente torpe.

Voltaire tinha a tolerância tão arraigada nos fundamentos de sua filosofia que, por esse motivo e apesar de sua virulência, era menos favorável à República do que outros precursores da Revolução Francesa. A ele, bastaria que o soberano soubesse agir com indulgência e tolerância com o seu povo, naquilo que ficou conhecido mais tarde por despotismo esclarecido. Isso porque, para ele, a monarquia se adapta melhor ao cérebro humano e sua busca por estabilidade. É muito difícil para os homens tratar da transitoriedade das coisas, mesmo que elas possam, nesse regime, ser melhores do que são. Bastaria que o monarca agisse guiado pela razão, e não pela ideia de direito perene e de “última batata do pacote”, alguém colocado à parte. Nesse sentido, Voltaire não poderia ser chamado de revolucionário, mas reformista. Uma unificação simbólica do poder em uma pessoa que soubesse dosar sua sede de poder seria mais conveniente que a disputa de diferentes elementos pelo mesmo encargo, seja pelo alcance dado a novos pretensos déspotas, seja pela dificuldade em ampliar as instâncias participativas de uma população mais ampla. Desta forma, Voltaire não deseja derrubar os reis, mas impor-lhes limites, exatamente na medida em que os direitos naturais deveriam se espraiar para todos os membros da sociedade.

Esse encantamento pela monarquia, por conseguinte, e já voltando para o caso de Cristina, é normal. Há uma aura nos reis que vão além da pompa e da circunstância, que, por si só, já possuem muita força simbólica, mas que afetam o psicológico no sentido de caráter permanente da condição real, e na reprodução do âmbito divino que se espalha pelo lugar onde o monarca rege, o que lhe dá uma certa dimensão sagrada. Cristina se orgulha de seu nome por causa da sensação de ser inigualável que isso lhe traz, uma cidade real, uma cidade imperatriz.

É isso por enquanto. Vamos logo mais às próximas estações. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

A obra de Voltaire é muito extensa. Demorei muito para citá-lo neste espaço, e não devo perder outras oportunidades. Por ora, recomendo o livro abaixo, que é muito útil para compreender o sentido geral de seu pensamento.

VOLTAIRE. Dicionário filosófico. São Paulo: Martin Claret, 2006.

As autoridades de Cristina têm procurado expandir as atividades culturais do município. Tem um festival literário e uma festa musical, que ainda estão fixando tradição. Gostaria de recomendar um livro que adquiri em uma casa de artesanato da cidade, para que mais e mais pessoas tomem conhecimento da cultura praticada no interior deste meu Brasil.

TEIXEIRA, Luiz Gonzaga. Cristina. História. Belo Horizonte: Edição do autor, 2013.


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