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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 7ª estação: Wenceslau Braz e a resiliência de quem quer escrever a própria história

Olá!


O feriado de 12 de outubro caiu em uma sexta-feira. Isso significa fim de semana prolongado, com o corolário de estrada cheia. A idade é uma coisa curiosa mesmo. Ganhamos cada vez mais paciência nas relações interpessoais e cada vez menos no trânsito. Não sei exatamente os motivos desta psicologia, mas ouso arriscar. Na medida em que ganhamos experiência, cada vez mais fica consolidado em nós que não adianta dar murro em ponta de faca: as pessoas não são exatamente como gostaríamos e fazem coisas que temos dificuldade em aceitar, mas elas são assim e pronto. Por outro lado, minutos de engarrafamento são tempo absolutamente perdido, o que é coisa preciosa para quem já está no segundo tempo da partida. Por esse motivo, pus-me de regresso no próprio sábado. Desperdicei o domingo? Em tese sim, mas vocês verão que eu tinha motivos para ter cuidados além do próprio porre do retorno congestionado.

Ainda havia boa parte do sábado para curtir. Fizemos um esquema meio louco, que envolvia cronograma e cronometragem precisa. É que a patroa queria levar laticínios para casa, incluindo leite in natura, o que envolve refrigeração. Encontramos uma casa que vendia leite cru, queijo e manteiga à beira da estrada. Reservados os produtos, deveríamos buscá-los às quatro da tarde, hora de encerramento das atividades. A partir daí, era carregar o Bedelho e pegar o beco que leva a São Paulo, visando manter a integridade do alimento transportado. Eu detesto leite, é verdade, mas não moro sozinho e fica muito mais em conta comprar direto do produtor.

O tal do laticínio fica bem na beirada da estrada que leva a Wenceslau Braz, pequeno município fronteiriço ao estado de São Paulo, e que nos contaram possuir uma boa e pouco movimentada cachoeira. É para lá que vamos, gelando as costas enquanto esperamos a hora certa de buscar o acervo lácteo.


O nome do lugar é Cachoeira do Areião, explicado pela quantidade de areia que fica no fundo das águas de seus remansos. Faz parte do curso do Rio das Bicas, o principal do município.


O lugar é propriedade particular, e cobra uma pequena taxa pela visitação. Quando a área é bem mantida, com uma estrutura mínima para quem a procura, acho justo que se faça a cobrança.


Não sei definir bem se o sítio fica localizado de fato em Wenceslau Braz ou se está em Delfim Moreira, mas o que importa é o contexto em que foi inserido em minha viagem. Sendo assim, por concordância geográfica ou licença poética, vai ficar por aqui mesmo.


A Cachoeira do Areião é composta por vários saltos e pedras descobertas, escorregadias até dizer chega, o que exige cuidado. Para chegar à parte alta, existem algumas trilhas mais ou menos fechadas, cheias de vegetação nativa.


A cachoeira principal tem bem a altura de um sobradão, uns dez metros, creio eu. É daquelas cujo volume d’água dá uma bela pancada na cabeça, para gáudio dos que morrem de calor. É um ponto bastante perigoso para quedas, no entanto. Melhor redobrar os cuidados e ser comedido nos atrevimentos.


Como curiosidade, a casa é guardada por um cachorro, que, se não me engano, se chama Tigre. É daqueles que vem correndo que nem louco quando te avista, e você se borra achando que ele vai te atacar. Nada disso, o bicho é boa praça e brincalhão.


Ele só vira fera se achar que o dono está sendo ameaçado. Além disso, foi ensinado a tirar sujeiras de dentro da água, inclusive galhos que por ventura caiam. Foi criado na água desde pequeno e sabe nadar sem muito esforço.


Nas redondezas, há mais algumas coisas a serem vistas. Um fato digno de nota é que Wenceslau Braz possui uma antiga unidade da IMBEL, uma indústria que produz material bélico para o exército. Para tocar sua atividade, foi construída uma pequena hidrelétrica que funciona até hoje, gerida pela REPI – Rede Elétrica Piquete-Itajubá. É considerada ambiente militar e seu acesso não é muito facilitado. Seu lago é formado pelo mesmo Rio das Bicas.


O tal rio é tão presente na cidade que corta inclusive seu pequeno núcleo urbano, exatamente na altura onde fica a antiga construção da retro mencionada fábrica. Estando na cidade ou nas estradas, o rio é facilmente localizável.


De saída do Areião, fomos dar uma passadinha pela cidade. O núcleo urbano é muuuuuuuuuuito pequenininho, e se assemelha a uma vila. Só tinha um lugar para almoçar, mas ok. Sua igreja matriz tem uma torre em curioso formato piramidal, e é nomeada para homenagear Sant’Anna. Só tirei fotos medíocres, peço perdão.


O adro da igreja fica em nível mais alto em relação à rodovia, e tem o de sempre: canteiros, bancos, bandeirolas para a recém terminada festa de Aparecida e coreto.


Por fim, há uma outra construção que pontua o centro, próximo à matriz. É um castelo. Seria um desejo exótico como o castelo Pioli de Brazópolis? Ou um templo, como faz antever a cruz inserida em uma de suas torres? Ou ainda a sede de alguma sociedade não bem especificada? Uma casa de shows temática? Não, é algo mais simples. É uma pousada, a Pousada Castelinho.


Wenceslau Braz foi um presidente do Brasil, já me repeti muito sobre isto nesta série. Mas o nome original da povoação era outro, remissivo mais uma vez ao rio: Bicas do Meio. Sendo parte da Estrada Real, e, por consequência, caminho de tropeiros, a presença de vários pontos onde se podia coletar água tornava a localidade importante e lhe explica o antigo topônimo. Já expressei neste texto todo o meu desalento com essas mudanças de nome, porque acho que infringem a nossa história. Tudo bem, pode ser um orgulho para uma região pequena ter um filho tão ilustre (muito embora seu nascimento tenha sido na atual Brazópolis), e eu não tenho nada a condenar nos anseios de quem tem o direito de legislar sobre o próprio nome, mas insisto que isso é tolher a história das gerações futuras, mas é coisa minha. E la nave va...

Wenceslau Braz é definitivamente uma cidade pequena. O núcleo urbano é reduzidíssimo e mesmo a extensão rural não é das maiores. Está na posição nº 5122 nos tamanhos em área do Brasil. Para um município predominantemente agrícola, é bem pouco. Conversei com o pessoal da cachoeira e da pequena lanchonete, e ouvimos o mesmo que em tantos outros lugares campesinos. Os velhos adoram o lugar, os jovens o abominam. A fórmula é bem conhecida. Muitos daqueles que moram aqui por prazer o fazem depois de ter habitado em cidades grandes, e optaram por um lugar tranquilo para passar os restos dos seus dias. Valorizam sobremaneira a paz que não tinham em São Paulo, Belo Horizonte, São José dos Campos, Curitiba... Enfim, fazem-no por escolha. Já os moços têm diante de si uma carência completa de oportunidades. Além dos estabelecimentos que citei, há terra e mais terra, com o agravante de estar inserida em área de preservação, o que é um bem para o patrimônio ecológico, mas um atravanco para quem quer mais do que colher ou extrair. Ainda que se esforcem muito em universidades, o exercício de suas profissões será limitadíssimo em uma cidade pouco maior que uma povoação. Ora, direis, São Caetano do Sul tem quatro páginas no guia Mapograf (alguém ainda sabe o que é guia Mapograf?) e é cidade riquíssima; Águas de São Pedro é menor ainda e ostenta um dos melhores índices de desenvolvimento humano do Brasil, perdendo somente para o precitado município do ABC. Tenho a dizer ao nobre e suposto interlocutor que uma das quatro páginas de São Caetano, sozinha, é preenchida por uma montadora gigantesca, o que garante emprego em grande quantidade e indubitável qualificação. Com relação a Águas de São Pedro, é movida por intenso turismo, provido por abundantes recursos naturais. Wenceslau Braz não tem, por enquanto, estes panoramas à sua frente. O que há de perspectiva em seu futuro?

Percebo que, em certos momentos, as pessoas têm uma propensão a ocultar suas origens. Não estou pensando em ninguém especificamente daqui, mas já ouvi muitos depoimentos de gente que parece ter um constrangimento de dizer de onde veio, seja pela pobreza da região, por um ar de provincianismo, por outro motivo qualquer. É uma forma de renegação da própria história, o que é sempre triste. Parece que há um trauma a ser carregado em ponto menor, e isso me remete à questão da resiliência, um tema que foi bastante desenvolvido pela psicologia dos últimos tempos, mais especificamente por Boris Cyrulnik, francês de ascendência judaica. Boris sofreu uma das experiências mais traumáticas que alguém pode ter tido. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando era uma criança, toda a sua família foi conduzida para um campo de concentração, onde foi violentamente assassinada. O menino foi o único que conseguiu fugir, em uma perspectiva altamente destrutiva. Isso foi inspiração para toda a sua carreira, até os dias de hoje.

A pergunta que cerca as teses de Cyrulnik é a seguinte: por que pessoas diferentes reagem de maneiras diferentes aos seus traumas? Por que há quem define sua história a partir de eventos prejudiciais e há quem não o faça?

Vamos colocar um caso hipotético, daqueles quase tolos. Dois torcedores de um mesmo time vão presenciar a final de um campeonato, justamente contra seu adversário mais ferrenho. O resultado é um desastre – lavada fora o baile. Ambos sofrem na hora, mas um deles, já nos próximos dias, retoma sua rotina normal: reage às gozações com outras tiradas e promete “vingança” para o próximo torneio. Vai trabalhar normalmente, participa das resenhas, mesmo que contrariado, almoça no mesmo lugar e não fica casmurro em casa, para a incompreensão de esposa e filhos. Já o outro apaga o assunto “futebol” de sua agenda. Consome seu banco de horas para faltar por uns três dias (o que aumenta a zoeira dos colegas), não come direito e deixa de ir ao estádio por uns bons anos. As camisetas do time vão parar no fundo da gaveta, quando não no bazar de uma igreja qualquer, e sua reação tende a ser explosiva. Aos mais íntimos, incluindo os familiares, reserva uma raivosa distância.

Ora, para o primeiro, o futebol representa um esporte e nada mais, uma diversão fugaz, que lhe afeta, mas não muda seu modus vivendi. Para o segundo, afeta a honra e tem um significado que lhe atinge em cheio a personalidade. O fato que ocasionou o prejuízo é exatamente o mesmo, mas as reações são diferentes porque o que está em jogo em sua consciência são separadas por um desvão abissal. O dano é uma coisa, a representação do dano é outra completamente distinta. Como isso se formou? Através da vivência de cada um dos nossos infelizes torcedores.

Saindo da brincadeira e lidando com questões mais dolorosas, podemos pensar em termos de abusos infantis, sejam lá quais forem. Um pai agressivo, por exemplo, causa lesões em uma criança. O dano em si pode ser curado com alguns unguentos, mas a representação do dano como um todo pode marcar a vida inteira. Se a mãe opta pelo silêncio ou por defender a atitude do pai (às vezes por conta do próprio medo), a criança se sentirá desamparada. Desenvolverá suas próprias defesas sem contar com mais ninguém, e, a partir daí, sua personalidade será moldada – arredia, desconfiada ou coisas piores, incapaz de traduzir em palavras suas próprias aflições. Afinal, ao tentar reproduzi-las, encontrará um paredão à sua frente, e o ato de reavivar as memórias só se consistirá em uma dupla dor. Toda a sua vida ficará crivada pelo ato violento, do qual terá dificuldade em se desvencilhar. Caso encontre apoio, poderá ter nesses efeitos e, mais precisamente, na representação da violência, uma redução significativa, deixando de atribuir a todo e qualquer adulto uma possibilidade de ressurgimento do trauma. Notem como a história de uma e de outra será marcada pelo trauma.

O termo resiliência vem do efeito mecânico de retorno à forma original após um corpo sofrer uma deformação. O processo de vulcanização, por exemplo, visa causar uma deformação permanente em um artigo de borracha, o que o torna resiliente a novas modificações em sua forma. Este termo foi emprestado pela psicologia como uma metáfora da resistência da personalidade a impactos. Ser resiliente, portanto, é uma maneira de não deixar que as adversidades da vida influenciem no jeito de ser de um ser humano. Como descrito acima, o processo de autoestima é o primeiro a ir para o vinagre: há uma tendência em se culpabilizar a si mesmo quando não se encontra eco na tentativa de reagir. A resiliência, neste caso, é sempre fomentada por agentes externos – o meio familiar e social. Relatos de outras pessoas que passaram por traumas semelhantes são bastante eficazes nestes casos. Basta para que o indivíduo não se enquadre solitariamente perante a sua dor. Não se trata de mero estoicismo.

Agora, podemos pensar em uma resiliência coletiva? Penso que sim. Tudo depende da maneira como uma comunidade constrói suas defesas aos próprios sofrimentos. É muito comum perceber que certos povos são mais sofridos, seja pela predisposição geográfica dos locais onde se desenvolveram, seja pelos relatos de conflitos que atravessam suas histórias. A reação perante um terremoto, por exemplo, pode ser um grande salve-se-quem-puder ou uma teia de solidariedade. No primeiro caso, as pessoas com certeza não aprendem a lidar com situações que podem voltar a ocorrer no futuro: diante de uma hecatombe, há bem pouco a se fazer individualmente. Já no segundo, o elo social se fortalece e as próximas ocorrências vão encontrar um povo mais estruturado para encarar as mesmas adversidades. Vejam como os japoneses se organizam para os frequentes sismos que ocorrem em seus territórios. Todos sabem exatamente o que fazer, ainda que o desastre seja grande.

E é aí que eu quero reduzir o ponto, como propus lá no início. Entendo que o mesmo princípio geral da resiliência possa ser aplicado não a traumas propriamente ditos, mas aos rótulos que são impostos a pessoas e a nichos sociais. Como já descrevi neste texto, o meio social tem uma tendência a se prender a descrições precisas sobre seus componentes, e o mais incrível é que os próprios indivíduos procuram se adequar à discricionariedade do rótulo. Roqueiros têm que andar de preto, emos têm que ter franja, hippies têm que ter flores no cabelo, grunges têm que usar camisas de flanela. Enquanto elemento de identificação das tribos urbanas, tudo bem. O problema se dá quando o rótulo vem de fora: nordestinos são extravagantes, negros são malandros, gays são lascivos, índios são incultos, interioranos são matutos. Ou seja, o preconceito vem travestido de distintivos de fracasso: fracasso em tentar se colocar como cultura válida, fracasso em se encontrar no meio do progresso, fracasso em se ver reconhecido como um cidadão como outro qualquer. Da mesma forma que diante do trauma, há duas maneiras em que podemos nos colocar diante do problema, vinculado à representação que se dá ao dano. Podemos nos conformar em receber a pecha e nos comportar como a mesma preconiza, ou podemos dizer um “não” ao rótulo, que, em última instância, nos tenta causar prejuízo. O morador da cidade pequena não pode e não deve se reduzir àquilo que constitui seu estereótipo. Não são jecas que andam de chapelão e pé descalço, que estão condenados a uma cultura rasteira, e a uma cidade sem perspectiva de progresso. Essa é uma história escrita por quem vê de fora, por quem não lhes conhece a realidade e que se fixa a uma visão de julgamento antecipado. Ninguém conhece o destino de ninguém, mesmo que seja de uma coletividade. Pode parecer autoajuda, mas a caneta que escreve a história está na mão de cada um. Se eu tiver que recomendar a cada um desses jovens que não veem expectativa alguma em suas vilas, é que estas serão aquilo que eles, moços que tem a vida inteira pela frente, fizerem delas. Achar ou criar um novo propósito na existência é a principal virtude da resiliência. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

O título parece de romance, e há outros do autor que remetem à autoajuda, mas é um ledo engano. Sua escrita é séria e trata de problemas delicados, conforme descrevi neste texto. Vale a pena conhecer.

CYRULNIK, Boris. Falar de Amor à Beira do Abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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