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quinta-feira, 28 de julho de 2016

A ética da etiqueta: sobre o modo como ela aparta e quando ela reúne

Olá!

Mais uma vez estou sentado em minha mesa ao ar livre no Parque da Água Branca, enquanto a patroa corre atrás de couves e maçãs. Estou diante da habitual xícara já gelada de café, pelo motivo mais simples de todos: está frio bagarai. Blusa fofa e minhocão por baixo das calças dão-me a alegre e exagerada impressão de astronauta. A gola alta me permite tapar o rosto até a altura dos olhos, mas a ausência de uma touca limpa me fez apelar para o meu boné confederado.

Algo não está me deixando confortável. Minha mãe, minha avó, minha madrinha e mesmo minha esposa sempre me disseram que não se senta à mesa de chapéu. Isso me dá a desaconchegante sensação de que todos me olham e inquirem: um homem tão velho, dando esse péssimo exemplo às crianças em lugar público. Ora, direis, boné não é chapéu, ao que responderei se tratar de mero subterfúgio. Sentar-se à mesa e não tirar o chapéu é falta de educação. Entre tímido e ressabiado, retiro o boné e tenho o primeiro arrependimento: como eu já disse, está um frio digno dos tempos que fizeram esta cidade ficar conhecida como Terra da Garoa.

Mas o segundo arrependimento é pior. Pego o celular e, discretamente, faço de conta que estou lendo qualquer coisa. Aciono a câmera e a configuro para selfie, transformando-a em espelho. Bom, quem tem cabelos crespos já deve ter uma ideia da imagem – um ninho de mafagafas, sem as sete mafagafinhas. Uma massa informe, compacta, com fiapos grudados uns aos outros mas em luta por independência. Chego à conclusão de que falta de educação é deixar aquilo exposto. Reponho o chapéu azul de pala curva preta, alteado por dois rifles cruzados. Tenho a revigorante sensação de que o mundo ao redor compreendeu o “foda-se” que acabo de aplicar aos bons modos e retorno a essas mal digitadas linhas.

Estranho como temos uma quase opressão sobre o que pensam de nossa aparência. Eu seria capaz de me colocar a chapa do coco a frio pelo simples fato de que outros me veem, algo que seguramente não faria se estivesse sozinho em casa. E me ponho a refletir em outras situações em que o mesmo ocorre, e de modo ainda mais arraigado.

Uma dessas situações vai nos deslocar para o extremo oposto das condições climáticas. Lembro-me de mim no mês de janeiro, sol a pino, e eu enfurnado dentro de um paletó. Tudo acrescenta fatores ao contrassenso: o terno é escuro, a camisa tem mangas compridas e a gravata aperta a garganta, não deixando passar nem uma formiga, quanto mais um pouco de vento. O nó tem que ser legítimo, já que é brega usar aqueles prontos, com ajuste por zíper. Não consigo encontrar nenhum tipo de explicação racional para o uso de terno em um país tropical como o Brasil. Isso ainda porque falo de São Paulo, Capital. Fico pensando no pessoal de São José do Rio Preto, do Rio de Janeiro, de Salvador, de Brasília, de Cuiabá... Deveríamos receber adicional por insalubridade.

Bem, já está claro que estou colocando em confronto as questões de ética e etiqueta. Os casos do boné e do terno já nos remetem à dúvida: é ético proporcionar sofrimento a uma pessoa em nome de sua aparência? Há aspecto positivo possível?

Vamos lá. A princípio, vamos já separar coentro de salsinha. Ética e etiqueta são palavras semelhantes, inclusive dando a ideia de que a segunda seria um diminutivo da primeira. Mas não, nada a ver. Ética vem do grego ethos, que tem definição bastante ampla, mas que pode ser resumida pelo conjunto de costumes de uma pessoa ou povo, que extrapola as contingências e lhe caracteriza. Já a etiqueta vem do francês étiquette, que significa, em sua origem, uma tira de papel esticada em um produto qualquer para identificá-lo; o bom e velho rótulo.


Mas é muito bem possível encontrar relações entre ambas, que vão além da semelhança ortográfica. Como já falei acima, a etiqueta serve para rotular. E, como se pode perceber, temos uma tendência a distinguir não apenas os objetos, mas também e principalmente as pessoas. E isso se dá em seus modos de vestir, falar, comer e così via.

Os mecanismos de distinção são muito eficazes. Nós interiorizamos as coincidências entre determinados membros de um grupo e as diferenças com os demais de forma tão aprofundada que este processo é quase automático.
Vamos fazer um exercício, que vai começar maneiro e vai apertar na medida em que andamos. Imagine uma garota com uma sapatilha, meia fina, saia tutu e collant. Bem, temos uma bailarina, ok? Agora vamos imaginar um rapaz qualquer, com camiseta, bermuda, chinelão, barba malfeita. Ele é... um rapaz qualquer! Pensemos agora em um homem sério, de paletó, gravata, sapato tinindo de lustrado, com um celular no ouvido. O que temos? Um executivo.
Bem, agora vamos acrescentar um elemento a cada descrição, e ver no que isso vai modificar nossa percepção sobre cada uma delas. No caso da bailarina, vamos inseri-la em um determinado ambiente; um banco, digamos. O que faz uma bailarina em um banco? A estranheza nos moverá para uma nova conceituação, já que só esperaríamos ver uma bailarina em um teatro ou, vá lá, em um circo. O espaço por excelência daquilo que escapa a um padrão é a loucura; portanto, já não consideraremos a mocinha como uma bailarina, mas uma louca.

Pois bem. Passemos ao rapaz qualquer. No caso, não vamos inseri-lo em um ambiente específico, mas acrescentar uma única peça em sua indumentária. Vamos pegar uma daquelas toucas multicoloridas, com as cores da bandeira da Jamaica, feitas de tricô e com uma copada enorme, adequada para os cabelos rastafári. Desta forma, transformaremos nosso rapaz qualquer em um maconheiro qualquer. Não adianta insistir. Reggae e maconha estão tão fortemente associados em nosso imaginário que nem precisamos ver nosso amigo ouvindo o estilo ou com um cigarrinho de artista na mão para reputá-lo como usuário da ervinha com cheiro de pano queimado. Ou seja, uma única peça e, no limite, um único ato é suficiente para modificar todo o juízo que fazemos de uma pessoa.

O caso do executivo vai ser mais breve, e ainda mais dramático. Vamos pegar a descrição feita  e apenas acrescentar o fato de que o homem em questão é negro. Desculpe, mas tanto eu quanto você já pensamos: ele não é o executivo, mas o motorista do executivo. Não é?

Portanto, fatores extrínsecos, como ações e ambientes; ou intrínsecos, como cor e sexo, fazem com que as pessoas sejam qualificadas de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau. Esse é um processo social que ficou conhecido como Teoria do Rótulo, conforme denominada pelo sociólogo norte-americano Howard S. Becker. Segundo ele, nossa identidade e nosso comportamento são o espelho das descrições e classificações que fazem de nós. Segundo nosso emérito ianque, os rótulos são produtos de um caminho de duas vias: um que o forma e outro que o aceita. Vamos ver.

A rotulagem funciona assim: em uma sociedade onde algumas classes detêm melhores condições de vida do que as outras, evidentemente seu modus vivendi e suas opiniões acabam sendo vistas como referenciais. São os moldes para onde todos os outros grupos devem convergir. Evidentemente, o grupo paradigma exerce essa atratividade à aderência através do poder, seja ele objetivo, como o poder político e econômico, seja ele tácito, como os detentores dos meios de comunicação e os dirigentes religiosos. As classes que lhes são subalternas podem buscar se amoldar aos seus ditames, mas, em seus extremos, sempre existirão usos e costumes que não se adequam totalmente ao padrão, o que Becker chama de desviantes, aqueles cujo comportamento escapa da norma estabelecida pelo acordo comum da classe dominante.

Mas os atos desviantes são praticados apenas por indivíduos ou grupos desviantes? Nem sempre. Lembremos que a norma é estabelecida por quem detem o poder, mas há sempre a possibilidade de um dos seus membros, como os políticos, juízes e etc praticar o ato desviante. E a maneira como a sociedade vai olhar para esse indivíduo é muito subjetiva, mas com a tendência de apontar a culpabilidade da própria pessoa nos casos em que este pertencer a um grupo subalterno, ou a outras condições, como uma situação esporádica, caso o membro seja da classe poderosa.

Uma maneira fácil de reconhecer isso é comparar como os noticiários tratam as duas situações. Por exemplo, um delinquente juvenil é acorrentado a um poste após levar uma bela de uma surra. Alguns jornalistas consideram a atitude dos agressores compreensível, dada a impunidade reinante no país. Já um astro da música resolve, sabe-se lá por que, quebrar tudo no hotel em que se hospeda. Os mesmos jornalistas entendem ser um ato de rebeldia típica da juventude. Um é bandido, o outro é inconsequente. Um pratica o crime porque é mau e o outro porque é levado a fazê-lo pelas circunstâncias eventuais. Percebem o rótulo sendo preso no pescoço? Esse é o cidadão que Becker chama de outsider, aquele que está do lado de fora.

Mas o outsider não é totalmente passivo nesse processo. Ele absorve a classificação e acomoda-se a ela, aceitando, ainda que inconscientemente, o rótulo que lhe é imposto. Esse é o segundo aspecto do processo de rotulagem. Alguém impinge o rótulo, como descrevi acima, e outro o aceita. Quase todos os executivos se vestem de terno, ainda que sofrendo – porque precisam informar ao mundo que são executivos. Quase todos os delinquentes se adaptam ao modelito função (ou leleque, para os tempos atuais), ainda que isso denuncie sua “profissão”. Todo metaleiro se veste de preto, mas é impossível gostar de heavy metal vestindo-se de branco, ou azul, ou rosa, ou sépia, ou siena, ou solferino? Claro que não, mas não é só o establishment que nos determina; nós mesmos nos ajustamos. Nós mesmos buscamos nos adequar ao molde que nos é colocado. Em suma, somos convencidos que somos mesmo passíveis de rotulagem.

Estou me apegando muito à questão da indumentária, e o faço por se tratar da casca, da questão mais aparente de todas. Mas, evidentemente, a moldagem não se limita a isso. A etiqueta é um dos aspectos conformadores das classificações, porque indica normas de conduta predeterminadas e um forte elemento de distinção: o costume. Bem resumidamente, somente quem adere ao protocolo é capaz de ter acesso à elite que é representada por esses costumes. É preciso saber sentar-se à mesa, vestir-se adequadamente, usar o tom correto de voz, conhecer gestuais de apresentação e despedida, etc. Enquanto estes são sinais de boa educação, tudo bem. O problema é quando dominar a etiqueta significa colar o rótulo da diferenciação na testa; não dominar é ser expulso da festa.

Bom. Se a rotulação não tem nada de ético e aplicar etiqueta nada mais faz do que criar preconceitos, em que aspecto ela pode ser positiva? Vamos tentar uma resposta.

Todas as vezes que eu chamo uma pessoa na minha casa, procuro recebe-la da melhor forma possível. Isso significa que prepararei boa comida, comprarei boa bebida e as deixarei na temperatura certa, limparei a casa, forrarei a mesa, providenciarei alguma alternativa para veganos/vegetarianos/hipertensos/ diabéticos e tentarei ser pontual para recebê-los. Posso tomar todos esses cuidados por dois motivos: causar uma boa impressão ou demonstrar meu apreço por quem me visita.

Ter todo esse trabalho para receber pessoas não quer necessariamente dizer que eu queira exibir meus dotes culinários e minha elegante porcelana, ou que eu saiba montar pratos, talheres e copos à mesa. Mais que isso. Quer dizer que eu não me importo em proporcionar o que eu tenho de melhor para as pessoas com as quais eu tenha ou queira ter afinidade. O seu lugar à mesa está reservado, não porque eu queira me mostrar, mas porque eu me importo com você, ainda que a mesa seja apenas um elemento figurado: mesmo que sentemos ao chão, teremos uma etiqueta ética pelo simples fato de eu respeitá-lo, e por isso mesmo não vim recebê-lo pelado, com um monte de pelo de cachorro espalhado pela casa, com o banheiro sujo e comida de micro-ondas. Esse é o verdadeiro ponto de inflexão da etiqueta – quando ela é inclusiva, prova de cuidado e acolhimento, quando temos o zelo para que todos que nos rodeiam se sintam a vontade.

A etiqueta é ética, finalmente, como elemento de aproximação. Não precisa ser um elemento de distinção, mas justamente do contrário. Dessa forma, a etiqueta foge do protocolo e se aproxima de uma democrática celebração do respeito. Mas aí uma coisa não parece ter nada a ver com a outra. Só que temos de lembrar-nos da etiqueta como norma de conduta, e pensar onde esta norma nos ajunta ou nos afasta.

Recomendação de leitura:

Becker é um dos principais sociólogos vivos que temos hoje. Embora contestada por muitos, sua teoria do rótulo é muito rica, e que está bem exposta na obra abaixo:


BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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