Olá!
Mais uma vez estou sentado em minha mesa ao ar livre no
Parque da Água Branca, enquanto a patroa corre atrás de couves e maçãs. Estou
diante da habitual xícara já gelada de café, pelo motivo mais simples de todos:
está frio bagarai. Blusa fofa e minhocão por baixo das calças dão-me a alegre e
exagerada impressão de astronauta. A gola alta me permite tapar o rosto até a
altura dos olhos, mas a ausência de uma touca limpa me fez apelar para o meu
boné confederado.
Algo não está me deixando confortável. Minha mãe, minha avó,
minha madrinha e mesmo minha esposa sempre me disseram que não se senta à mesa
de chapéu. Isso me dá a desaconchegante sensação de que todos me olham e
inquirem: um homem tão velho, dando esse péssimo exemplo às crianças em lugar público.
Ora, direis, boné não é chapéu, ao que responderei se tratar de mero
subterfúgio. Sentar-se à mesa e não tirar o chapéu é falta de educação. Entre
tímido e ressabiado, retiro o boné e tenho o primeiro arrependimento: como eu
já disse, está um frio digno dos tempos que fizeram esta cidade ficar conhecida
como Terra da Garoa.
Mas o segundo arrependimento é pior. Pego o celular e,
discretamente, faço de conta que estou lendo qualquer coisa. Aciono a câmera e
a configuro para selfie,
transformando-a em espelho. Bom, quem tem cabelos crespos já deve ter uma ideia
da imagem – um ninho de mafagafas, sem as sete mafagafinhas. Uma massa informe,
compacta, com fiapos grudados uns aos outros mas em luta por independência.
Chego à conclusão de que falta de educação é deixar aquilo exposto. Reponho o chapéu
azul de pala curva preta, alteado por dois rifles cruzados. Tenho a revigorante
sensação de que o mundo ao redor compreendeu o “foda-se” que acabo de aplicar
aos bons modos e retorno a essas mal digitadas linhas.
Estranho como temos uma quase opressão sobre o que pensam de
nossa aparência. Eu seria capaz de me colocar a chapa do coco a frio pelo
simples fato de que outros me veem, algo que seguramente não faria se estivesse
sozinho em casa. E me ponho a refletir em outras situações em que o mesmo
ocorre, e de modo ainda mais arraigado.
Uma dessas situações vai nos deslocar para o extremo oposto
das condições climáticas. Lembro-me de mim no mês de janeiro, sol a pino, e eu
enfurnado dentro de um paletó. Tudo acrescenta fatores ao contrassenso: o terno
é escuro, a camisa tem mangas compridas e a gravata aperta a garganta, não
deixando passar nem uma formiga, quanto mais um pouco de vento. O nó tem que
ser legítimo, já que é brega usar aqueles prontos, com ajuste por zíper. Não
consigo encontrar nenhum tipo de explicação racional para o uso de terno em um
país tropical como o Brasil. Isso ainda porque falo de São Paulo, Capital. Fico
pensando no pessoal de São José do Rio Preto, do Rio de Janeiro, de Salvador,
de Brasília, de Cuiabá... Deveríamos receber adicional por insalubridade.
Bem, já está claro que estou colocando em confronto as
questões de ética e etiqueta. Os casos do boné e do terno já nos remetem à
dúvida: é ético proporcionar sofrimento a uma pessoa em nome de sua aparência?
Há aspecto positivo possível?
Vamos lá. A princípio, vamos já separar coentro de salsinha.
Ética e etiqueta são palavras semelhantes, inclusive dando a ideia de que a
segunda seria um diminutivo da primeira. Mas não, nada a ver. Ética vem do
grego ethos, que tem definição
bastante ampla, mas que pode ser resumida pelo conjunto de costumes de uma
pessoa ou povo, que extrapola as contingências e lhe caracteriza. Já a etiqueta
vem do francês étiquette, que
significa, em sua origem, uma tira de papel esticada em um produto qualquer
para identificá-lo; o bom e velho rótulo.
Mas é muito bem possível encontrar relações entre ambas, que
vão além da semelhança ortográfica. Como já falei acima, a etiqueta serve para
rotular. E, como se pode perceber, temos uma tendência a distinguir não apenas
os objetos, mas também e principalmente as pessoas. E isso se dá em seus modos
de vestir, falar, comer e così via.
Os mecanismos de distinção são muito eficazes. Nós
interiorizamos as coincidências entre determinados membros de um grupo e as
diferenças com os demais de forma tão aprofundada que este processo é quase
automático.
Vamos fazer um exercício, que vai começar maneiro e vai
apertar na medida em que andamos. Imagine uma garota com uma sapatilha, meia
fina, saia tutu e collant. Bem, temos
uma bailarina, ok? Agora vamos imaginar um rapaz qualquer, com camiseta,
bermuda, chinelão, barba malfeita. Ele é... um rapaz qualquer! Pensemos agora
em um homem sério, de paletó, gravata, sapato tinindo de lustrado, com um
celular no ouvido. O que temos? Um executivo.
Bem, agora vamos acrescentar um elemento a cada descrição, e
ver no que isso vai modificar nossa percepção sobre cada uma delas. No caso da
bailarina, vamos inseri-la em um determinado ambiente; um banco, digamos. O que
faz uma bailarina em um banco? A estranheza nos moverá para uma nova
conceituação, já que só esperaríamos ver uma bailarina em um teatro ou, vá lá,
em um circo. O espaço por excelência daquilo que escapa a um padrão é a
loucura; portanto, já não consideraremos a mocinha como uma bailarina, mas uma
louca.
Pois bem. Passemos ao rapaz qualquer. No caso, não vamos
inseri-lo em um ambiente específico, mas acrescentar uma única peça em sua
indumentária. Vamos pegar uma daquelas toucas multicoloridas, com as cores da
bandeira da Jamaica, feitas de tricô e com uma copada enorme, adequada para os
cabelos rastafári. Desta forma, transformaremos nosso rapaz qualquer em um
maconheiro qualquer. Não adianta insistir. Reggae e maconha estão tão fortemente
associados em nosso imaginário que nem precisamos ver nosso amigo ouvindo o
estilo ou com um cigarrinho de artista na mão para reputá-lo como usuário da
ervinha com cheiro de pano queimado. Ou seja, uma única peça e, no limite, um
único ato é suficiente para modificar todo o juízo que fazemos de uma pessoa.
O caso do executivo vai ser mais breve, e ainda mais
dramático. Vamos pegar a descrição feita
e apenas acrescentar o fato de que o homem em questão é negro. Desculpe,
mas tanto eu quanto você já pensamos: ele não é o executivo, mas o motorista do
executivo. Não é?
Portanto, fatores extrínsecos, como ações e ambientes; ou
intrínsecos, como cor e sexo, fazem com que as pessoas sejam qualificadas de
uma forma ou de outra, em maior ou menor grau. Esse é um processo social que
ficou conhecido como Teoria do Rótulo, conforme denominada pelo sociólogo
norte-americano Howard S. Becker. Segundo ele, nossa identidade e nosso
comportamento são o espelho das descrições e classificações que fazem de nós.
Segundo nosso emérito ianque, os rótulos são produtos de um caminho de duas
vias: um que o forma e outro que o aceita. Vamos ver.
A rotulagem funciona assim: em uma sociedade onde algumas
classes detêm melhores condições de vida do que as outras, evidentemente seu modus vivendi e suas opiniões acabam
sendo vistas como referenciais. São os moldes para onde todos os outros grupos
devem convergir. Evidentemente, o grupo paradigma exerce essa atratividade à
aderência através do poder, seja ele objetivo, como o poder político e
econômico, seja ele tácito, como os detentores dos meios de comunicação e os
dirigentes religiosos. As classes que lhes são subalternas podem buscar se
amoldar aos seus ditames, mas, em seus extremos, sempre existirão usos e
costumes que não se adequam totalmente ao padrão, o que Becker chama de desviantes, aqueles cujo comportamento
escapa da norma estabelecida pelo acordo comum da classe dominante.
Mas os atos desviantes são praticados apenas por indivíduos
ou grupos desviantes? Nem sempre. Lembremos que a norma é estabelecida por quem
detem o poder, mas há sempre a possibilidade de um dos seus membros, como os
políticos, juízes e etc praticar o ato desviante. E a maneira como a sociedade
vai olhar para esse indivíduo é muito subjetiva, mas com a tendência de apontar
a culpabilidade da própria pessoa nos casos em que este pertencer a um grupo
subalterno, ou a outras condições, como uma situação esporádica, caso o membro
seja da classe poderosa.
Uma maneira fácil de reconhecer isso é comparar como os
noticiários tratam as duas situações. Por exemplo, um delinquente juvenil é
acorrentado a um poste após levar uma bela de uma surra. Alguns jornalistas
consideram a atitude dos agressores compreensível, dada a impunidade reinante
no país. Já um astro da música resolve, sabe-se lá por que, quebrar tudo no
hotel em que se hospeda. Os mesmos jornalistas entendem ser um ato de rebeldia
típica da juventude. Um é bandido, o outro é inconsequente. Um pratica o crime
porque é mau e o outro porque é levado a fazê-lo pelas circunstâncias
eventuais. Percebem o rótulo sendo preso no pescoço? Esse é o cidadão que
Becker chama de outsider, aquele que
está do lado de fora.
Mas o outsider não
é totalmente passivo nesse processo. Ele absorve a classificação e acomoda-se a
ela, aceitando, ainda que inconscientemente, o rótulo que lhe é imposto. Esse é
o segundo aspecto do processo de rotulagem. Alguém impinge o rótulo, como
descrevi acima, e outro o aceita. Quase todos os executivos se vestem de terno,
ainda que sofrendo – porque precisam informar ao mundo que são executivos.
Quase todos os delinquentes se adaptam ao modelito função (ou leleque, para os
tempos atuais), ainda que isso denuncie sua “profissão”. Todo metaleiro se
veste de preto, mas é impossível gostar de heavy metal vestindo-se de branco,
ou azul, ou rosa, ou sépia, ou siena, ou solferino? Claro que não, mas não é só
o establishment que nos determina;
nós mesmos nos ajustamos. Nós mesmos buscamos nos adequar ao molde que nos é
colocado. Em suma, somos convencidos que somos mesmo passíveis de rotulagem.
Estou me apegando muito à questão da indumentária, e o faço
por se tratar da casca, da questão mais aparente de todas. Mas, evidentemente,
a moldagem não se limita a isso. A etiqueta é um dos aspectos conformadores das
classificações, porque indica normas de conduta predeterminadas e um forte
elemento de distinção: o costume. Bem resumidamente, somente quem adere ao
protocolo é capaz de ter acesso à elite que é representada por esses costumes.
É preciso saber sentar-se à mesa, vestir-se adequadamente, usar o tom correto
de voz, conhecer gestuais de apresentação e despedida, etc. Enquanto estes são
sinais de boa educação, tudo bem. O problema é quando dominar a etiqueta
significa colar o rótulo da diferenciação na testa; não dominar é ser expulso
da festa.
Bom. Se a rotulação não tem nada de ético e aplicar etiqueta
nada mais faz do que criar preconceitos, em que aspecto ela pode ser positiva?
Vamos tentar uma resposta.
Todas as vezes que eu chamo uma pessoa na minha casa,
procuro recebe-la da melhor forma possível. Isso significa que prepararei boa
comida, comprarei boa bebida e as deixarei na temperatura certa, limparei a
casa, forrarei a mesa, providenciarei alguma alternativa para
veganos/vegetarianos/hipertensos/ diabéticos e tentarei ser pontual para
recebê-los. Posso tomar todos esses cuidados por dois motivos: causar uma boa
impressão ou demonstrar meu apreço por quem me visita.
Ter todo esse trabalho para receber pessoas não quer
necessariamente dizer que eu queira exibir meus dotes culinários e minha
elegante porcelana, ou que eu saiba montar pratos, talheres e copos à mesa.
Mais que isso. Quer dizer que eu não me importo em proporcionar o que eu tenho
de melhor para as pessoas com as quais eu tenha ou queira ter afinidade. O seu
lugar à mesa está reservado, não porque eu queira me mostrar, mas porque eu me
importo com você, ainda que a mesa seja apenas um elemento figurado: mesmo que
sentemos ao chão, teremos uma etiqueta ética pelo simples fato de eu
respeitá-lo, e por isso mesmo não vim recebê-lo pelado, com um monte de pelo de
cachorro espalhado pela casa, com o banheiro sujo e comida de micro-ondas. Esse
é o verdadeiro ponto de inflexão da etiqueta – quando ela é inclusiva, prova de
cuidado e acolhimento, quando temos o zelo para que todos que nos rodeiam se
sintam a vontade.
A etiqueta é ética, finalmente, como elemento de
aproximação. Não precisa ser um elemento de distinção, mas justamente do
contrário. Dessa forma, a etiqueta foge do protocolo e se aproxima de uma
democrática celebração do respeito. Mas aí uma coisa não parece ter nada a ver
com a outra. Só que temos de lembrar-nos da etiqueta como norma de conduta, e
pensar onde esta norma nos ajunta ou nos afasta.
Recomendação de leitura:
Becker é um dos principais sociólogos vivos que temos hoje.
Embora contestada por muitos, sua teoria do rótulo é muito rica, e que está bem
exposta na obra abaixo:
BECKER, Howard S. Outsiders.
Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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