Olá!
Quando retornei da cidade de Cristina,
após tomar uma overdose de café, e ainda melecado de barro até os joelhos,
tinha a esperança de que a chuva arrefecesse um pouco. Não que eu não goste de
água na cabeça, sei que é um problemão quando há seca, mas o diabo são os impedimentos que a mesma impõe, como já
mencionei no precitado texto. Como o desejo não move nada, a não ser nossa
depressão, tivemos mais uma madrugada encharcando tudo. Não sou mais criança
para achar que há alguma conspiração metafísica contra minha pessoa, e sei que
as frustrações são mais fáceis de serem lembradas do que quando o planejamento
é bem cumprido. O nome disso é juízo retrospectivo, e sobre ele falarei em
melhor momento. O ponto era a sinuca de bico em que eu me encontrava. Onde
encontrar algum lugar mais urbano em meio tão caracterizado pelo domínio rural?
Mais ainda: em uma boa parte de área protegida? Bom... Segui o princípio geral
de que não somente o ambiente nos rege, mas também as relações que temos com as
pessoas e parti para a pequenina Marmelópolis.
Meu objetivo ao mirar esta cidade era atacar o pico do
Marinzinho, uma formação rochosa a 2432 metros de altitude, bem na divisa com o
estado de São Paulo. Até tentei invadir um pedaço da estrada de terra que leva
ao seu sopé, mas o lamaçal que se formou era um impeditivo inapelável. Acabei
achando melhor diminuir o tamanho do passo e ir atrás de uma trilha mais
tranquila. Esse era o aspecto do pico no momento de maior proximidade dele.
Como o que restava essencialmente era a paisagem para ser
observada, pude contemplar um grande número de araucárias, um pinheiro muito
mais típico da região Sul do Brasil, em um bioma conhecido como Mata de (oh!)
Araucárias. Não sou um botânico de renome, mas é uma árvore muito sui generis, alta e de copa pouco
encorpada. Fazem um contraste bastante interessante com a tapeçaria verde mais
intocada dos seus montes.
O morro onde fica este cruzeiro dá uma boa dimensão da
presença destas árvores, além de denunciar o quanto são íngremes as terras
desta freguesia. Subimos a pé para tirar umas boas fotos da redondeza.
Incompetentemente, a máquina ficou esquecida no carro e não tive pernas para
voltar a amassar todo o barro necessário.
Marmelópolis é cortada pelo rio Lourenço Velho, que
serpenteia a serra com água extremamente gelada. É possível observar suas
margens por todo o trecho urbano e por boa parte da grande zona rural.
Aliás, temos aqui uma rara ocorrência de município onde a
população rural se equilibra com a citadina. Essa divisão proporciona a
apreciação de coisas que não são mais tão fáceis de se encontrar, como o
registro do transporte de cargas por muares (e a indefectível companhia de
caninos), algo muito comum na história tropeira destas plagas. De fato, aqui
cabe o jargão de que o tempo passa mais devagar.
Estávamos na semana em que se comemora o dia de Nossa
Senhora Aparecida, escolhida pelos membros do clero como padroeira do Brasil.
Há diversos municípios que a escolheram como protetora local também, exatamente
o caso de Marmelópolis. Numa circunstância dessas, era óbvio que a matriz seria
dedicada à santa em questão. A igreja nem é tão grande, mas estava bastante
agitada com os preparativos para a festa que viria poucos dias depois. Sentamos
um pouco na pracinha para observar o agito, e acabamos puxando papo com algumas
mulheres que lá estavam trabalhando, com seus jeitos peculiares de falar e de
narrar os fatos.
Não quis ficar perturbando muito, já basta o mister de cada
uma, para ainda ter que dar atenção a visitante chato, o que elas fazem com
maestria. Fui dar uma espiada por dentro da tal igreja, muito simples de fato,
mas que tem uma característica digna de nota: um tabernáculo* escavado dentro
de um tronco. Normalmente, este objeto fica encravado na parede ou embutido em
um altar, o que dá uma ideia da originalidade de quem o bolou.
A fome apertou bastante, e fomos caçar comida, devidamente
encontrada em um restaurante que fornecia aquelas coisas bem típicas de região,
como carne de porco e muita coisa cozida na banha. A natureza é uma grande
fanfarrona: as coisas mais saborosas são as que mais fazem mal. Mas havia
também outra especialidade destas terras altas, muito frequente em São Francisco Xavier, no interior de São Paulo – as trutas.
O dono do estabelecimento é o Silvio, que é um sujeito
paradigmático do homem do interior. Conversas longas sobre os tempos de menino,
da partida para a cidade grande e do retorno à tranquilidade após as agruras e
aposentadoria. Nesta casa, mais duas tipicidades que só encontrei aqui: a
cachaça com marmelo...
... e o suco de marmelo, feito a partir de um purê processado
da fruta, já que a mesma, in natura,
é impossível de comer, dura, fibrosa, amargosa, apesar de seu parentesco com a
maçã e a pera, bem mais amigáveis. Não era época, não tinha marmelo.
O nome da cidade é curioso e óbvio. O antigo distrito de
Queimada, pertencente ao município de Delfim Moreira, começou a se especializar
no cultivo do marmelo, planta oriunda da Ásia Menor, e que se adaptava muito
bem às condições climáticas daquela área. Até a década de 80, o negócio da
marmelada era bastante próspero na região, e a fruta virou uma espécie de
mascote, como pode ser vista no Marmelus Club e em todo o comércio.
A pujança do negócio de marmelo levou fábricas grandes para
o município. Na praça em frente à matriz, onde hoje permanecem um coreto e um
quiosque de artesanato, estava situada a CICA, uma das maiores empresas de
produtos alimentícios da época, conhecida em todo o Brasil e uma grande
exportadora. O elefante Jotalhão, por exemplo, era utilizado em suas embalagens
para fazer propaganda. Todo mundo acima dos trinta lembra da marca, que foi
absorvida por outra gigante do ramo em meados da década de 90.
Mas os tempos não seriam generosos para todo o sempre. O
marmeleiro é uma árvore enjoada, difícil de cuidar, e, com o país
economicamente em frangalhos, os produtores rurais foram mudando as culturas
que produziam. Por toda a cidade, encontramos fábricas abandonadas.
A diminuição da taxação de importações foi uma pá de cal
nessa atividade econômica. Ficava muito mais barato para os grandes fabricantes
importar as frutas diretamente da Ásia do que manter as plantações no Brasil.
Neste caso, perdia o sentido manter pequenas fábricas em
rincões mais longínquos, não servidos de transporte eficiente. Ferrovia por
aqui foi apenas um projeto. Hoje em dia, apenas há o testemunho de construções
já deterioradas, quase inexistentes, como é o caso desta chaminé próxima ao
rio.
Nos tempos atuais, a produção de marmelo na cidade somente
permite a existência de uma última fábrica, bem acanhada, pertencente ao Moisés
e sua família. Fomos até lá para ver como é feita a coisa, e se poderíamos
conseguir alguns de seus produtos.
O doce é feito a partir de uma pasta bruta armazenada em
latas, a mesma utilizada para fazer o suco que tomamos no almoço, que é cozida
e mexida até pegar o ponto de corte, para depois ser moldada em seu formato
próprio. Além disso, é produzida na cidade uma geleia que mistura marmelo com
laranja.
Como nós, diabéticos, somos colocados em um plano meio que
esquecido no mercado, não havia marmelada diet. E é um doce que eu simplesmente
adoro. A solução foi conseguir uns três quilos de pasta bruta na fabriquinha.
Corremos até uma loja no centrinho e compramos um pote com tampa, que
preenchemos à plenitude com tal produto, para depois ser preparado com frutose,
menos proibitiva à espécime de sangue doce.
Bom... Durante esta breve estada, constatei um fenômeno
interessante. Eu confesso que sou altamente influenciável no quesito sotaque.
Se eu conviver com alguém que puxe um “S” com som de “X”, lá vou eu puxar um “S”
com som de “X”; se eu ficar uns dias no Paraná, já chamo todo mundo de piá, e
leite queNte dá dor de deNte na geNte. Idem nos meus rolês pelo interior, como
neste de agora. Mas, em geral, o efeito se sente ao cabo de alguns dias,
especialmente quando confrontado ao retorno de minha paulistana realidade. Só
que dessa vez, a coisa foi sentida logo.
Imediatamente após o almoço, quando ficamos mais de uma hora
papeando com o precitado Silvio, fomos dar uma volta, para fazer o resto do
quilo e procurar o tal pote para guardar a pasta de marmelo. Nos diálogos do
caminho, a constatação da esposa: “Percebeu que a gente já tá falando igual
mineiro?”. De pronto, lembrei da mocinha da padaria de Jesuânia,
e sua enciclopédia de mineirês. Mas, no nosso caso, a coisa estava mais para a
melodia entrecortada de desistências silábicas do que propriamente no linguajar,
coisa de sotaque mesmo. Que coisa... Por que será que isso acontece? E por que
cada vez mais rápido?
Vou me escorar na Psicologia Social do polonês Robert Zajonc
para tentar entender. Mas, para isso, vou ter que passear por uma das
principais correntes psicológicas de todos os tempos, o behaviorismo (ou
comportamentalismo).
Grosso modo, os
comportamentalistas não estão interessados no funcionamento mais profundo da
mente, como fazem os adeptos da psicanálise, mas em quais são os aspectos
práticos do que faz com que indivíduos se comportam de maneira X ou Y. Por
exemplo, passo pelo corredor de bolachas de um determinado mercado. Meu
comportamento padrão é passar batidos pelas doces, sendo eu gordo e diabético,
e caçar alguma coisa inocente pelas salgadas. Todavia, algo pode modificá-lo:
há novas bolachas diet, ou novos sabores, ou seus preços baixaram. Isso me
estimula a comprar mais bolachas, mas o inverso também é verdadeiro. Um preço
que sobe, uma marca que some, uma consciência de excesso de peso, tudo isso me
reprime o ato da compra. O primeiro é um estímulo positivo; o segundo,
negativo. Esses reforços são utilizados largamente em educação, até mesmo
quando estamos em casa, tentando estimular nossos filhos a fazer a chatíssima
lição de casa. Algumas vezes isso é feito de forma ética, elogiando as boas
notas; em outras, tenta-se comprar o fedelho, oferecendo-se algum mimo pelo bom
desempenho. De uma forma ou de outra, o objetivo é reforçar o comportamento,
através de uma recompensa. Ou, ao contrário, desestimulá-lo, com a aplicação de
castigos.
Pois bem. O comportamento, assim colocado, fica obviamente
movido por estímulos, aos quais damos algum tipo de resposta. Mas isso nem sempre
está tão na cara, como nos exemplos acima. A mente humana é capaz de perceber
estímulos muito mais sutis, e, às vezes, involuntários. É aí que entra o objeto
da pesquisa de Zajonc, chamado de mera
exposição.
Nosso psicólogo queria pesquisar porque temos situações em
que nos sentimos mais confortáveis do que em outras, sem que haja um motivo
explícito para tanto. É claro que um forte estimulante, seja positivo ou
negativo, vai produzir efeitos imediatos e evidentes. Eu, por exemplo, sinto-me
incomodado em qualquer ambiente onde haja música (ou algo assim chamado) em
volume que me impeça de conversar, a não ser que eu me proponha a ir a um show.
Mas isso tudo está no campo da racionalidade. Acontece que há lugares
extremamente agradáveis sem que percebamos logo de cara o porquê. Zajonc
apostou em uma familiaridade inconsciente. E, a julgar pelo resultado de suas
pesquisas, acertou.
Os experimentos de Zajonc eram extremamente simples. Em um
deles, era exibida a um grupo de voluntários uma sequência rápida de imagens
geométricas, de modo que não fosse possível fixar-se demoradamente sobre
nenhuma delas. Ao final, eram exibidas em um quadro todas as imagens que
fizeram parte da sequência, sem, no entanto, aparecerem repetidas. A pergunta
era: Qual destas imagens lhe é mais agradável? A imensa maioria dos pesquisados
apontava para as figuras que haviam sido repetidas mais vezes. Junto com outras
investigações do mesmo tipo, Zajonc concluiu que a simples exposição de algum
objeto com maior frequência, por si só, era capaz de produzir um efeito de
familiaridade, sem que tal objeto tivesse algum destaque extraordinário sobre
os demais. Em cima desta constatação, uma série de especulações passou a ser
feita.
Algumas delas: a afetividade não é racional, muito pelo contrário.
Passamos a gostar cada vez mais de um objeto qualquer à medida que aumenta
nossa exposição a ele pelo fato de que esse acréscimo nos dá uma sensação de
estabilidade. Sabe aquele minúsculo quadrinho no corredor, que foi repassado de
sua avó para a sua mãe? Pois é. O dia em que ele for retirado da parede, seu
subconsciente vai captar e te provocar uma sensação estranha, mesmo que você
nem se desse conta da sua existência. É que o quadrinho, pela sua constância, é
uma sensação estável, de que tudo está no seu lugar, algo que lhe indica a
segurança de seu lar. E, atavicamente, temos um certo conservadorismo, porque
essa é a vida que está dando certo. Afinal de contas, estamos vivos, não é
mesmo? Sim, esse é o tipo de percepção que vem lá do fundinho. Novidades, nesse
sentido, não são bem-vindas, até que o efeito da mera exposição opere mais uma
vez e também elas se tornem estáveis. Isso pode ser visto em inúmeras espécies,
que ficam tremendamente ariscas perante algo desconhecido.
Zajonc produz teses que se assemelham bastante ao
voluntarismo de Arthur Schopenhauer (leiam mais aqui). Este último
dizia que os pensadores se enganavam quando diziam ser o homem um ser racional.
A primazia ficava pela vontade informe e eterna, insaciável e perturbadora,
algo que atuava no nível irracional. Muito antes de pensar, o ser humano
deseja, e isso lhe move. Para Zajonc, por sua vez, temos uma anterioridade dos
afetos com relação ao raciocínio. Nosso cérebro precisa muitas vezes de
respostas rápidas, e, para tanto, lança mão do que está mais prático. A própria
heurística usa esse mesmo dispositivo (já falei aqui
sobre este tema), mas o fato é que temos muito mais coisas ao nosso redor do
que podemos processar racionalmente. Por isso, as coisas que nos reconfortam e
acomodam são percebidas primeiramente neste nível, para somente depois serem
ponderadas.
Para demonstrar bem as assertivas acima, basta que pensemos
que qualquer coisa que percebamos sempre é acompanhada por um julgamento do
âmbito afetivo. Olho para uma pessoa e sempre colo a ela um conceito de beleza
ou feiura, simpatia ou arrogância, cara de bobo ou de malandro. Como estas
percepções não são objetivas, e variam de pessoa para pessoa, são claramente movidas
por nossos afetos. E não adianta: eu passo do lado de uma praça mal cuidada, lá
vou eu ter a sensação de desagrado, automaticamente.
Essa moção do afeto em precedência à cognição explica porque
a quantidade de vezes a que somos meramente expostos a uma coisa qualquer faz
com que tenhamos essa tendência a uma conformidade gradualmente maior. E
isso nos faz migrar da Psicologia Cognitiva, que estuda como apreendemos o
mundo ao nosso redor, para a Psicologia Social, que tenta entender como a
cabeça influencia nosso convívio com o outro. Quem usa muitíssimo bem essa
característica é a publicidade. Esse é um dos motivos pelos quais as marcas se
tornaram cada vez mais expostas e mais movidas pela imagem em si do que pela
escolha racional (como eu já escrevi neste post). Só que isso não está adstrito aos limites ambientais, mas na própria
relação interpessoal. Temos uma propensão natural em desenvolver amizades com
pessoas que vemos com mais regularidade. Ora, direis, é óbvio, né? Se eu tenho
mais contato com uma pessoa, eu terei mais facilidade de falar com ela, pelo
próprio contato visual. Mas não é essa a questão. Se você estiver perdido e encontrar
na rua duas pessoas, sendo uma que você nunca viu mais gordo, e outra que você
vê todo dia, ainda que nunca tenha conversado com ela, terá uma inclinação a
confiar mais na segunda. Você não sabe absolutamente nada sobre ela, além do
fato de que a vê sempre. Independentemente de racionalizações, isso já é uma
informação subconsciente: essa pessoa pertence ao seu universo, e você ainda
subsiste no seu universo, mesmo com todos os seus problemas.
Não seria o efeito da mera exposição uma explicação para a
facilidade com que mudo o meu modo de falar? Percebem como tendemos a aproximar
nossas atitudes e gestuais dos membros de nossa família? Outro dia, estava
assistindo o programa Linha de Passe, da ESPN, e, participando da mesa redonda
estava o jornalista André Kfouri, filho de Juca Kfouri. Em um determinado
momento, dei-me conta de que a semelhança das expressões faciais de ambos é ainda
mais marcante do que as semelhanças físicas, coisa esperada entre pai e filho.
Duvido que Juca tenha ensinado ao André “faça a cara assim e assim”. É algo que
é absorvido pelo contato e pela habitualidade, irracionalmente, exatamente como
preconiza a tese da mera exposição. Um ser gregário mimetiza aqueles que o
rodeiam, especialmente quando se sente em posição confortável. Por isso, não
seria estranho pensar que, à proporção que viajo para regiões com aspectos
semelhantes, que me agradam bastante, que ocorrem em momentos de descontração e
relaxamento, alguns dos efeitos psicológicos aqui descritos sejam disparados, e
eu comece a engolir vogais, puxar erres, trocar “O” fechado por “U” e assim
sucessivamente.
Tudo isso eu percebi em Marmelópolis. Caramba! Bons ventos a
todos...
Recomendação de leitura:
Um livro bem antigo, normalmente encontrado somente em sebos
ou em bibliotecas de universidades.
ZAJONC, Robert. Psicologia
Social. São Paulo: Herder, 1969
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