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quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 3ª estação: Marmelópolis e as influências da cabeça no nosso linguajar

Olá!


Quando retornei da cidade de Cristina, após tomar uma overdose de café, e ainda melecado de barro até os joelhos, tinha a esperança de que a chuva arrefecesse um pouco. Não que eu não goste de água na cabeça, sei que é um problemão quando há seca, mas o diabo são os impedimentos que a mesma impõe, como já mencionei no precitado texto. Como o desejo não move nada, a não ser nossa depressão, tivemos mais uma madrugada encharcando tudo. Não sou mais criança para achar que há alguma conspiração metafísica contra minha pessoa, e sei que as frustrações são mais fáceis de serem lembradas do que quando o planejamento é bem cumprido. O nome disso é juízo retrospectivo, e sobre ele falarei em melhor momento. O ponto era a sinuca de bico em que eu me encontrava. Onde encontrar algum lugar mais urbano em meio tão caracterizado pelo domínio rural? Mais ainda: em uma boa parte de área protegida? Bom... Segui o princípio geral de que não somente o ambiente nos rege, mas também as relações que temos com as pessoas e parti para a pequenina Marmelópolis.


Meu objetivo ao mirar esta cidade era atacar o pico do Marinzinho, uma formação rochosa a 2432 metros de altitude, bem na divisa com o estado de São Paulo. Até tentei invadir um pedaço da estrada de terra que leva ao seu sopé, mas o lamaçal que se formou era um impeditivo inapelável. Acabei achando melhor diminuir o tamanho do passo e ir atrás de uma trilha mais tranquila. Esse era o aspecto do pico no momento de maior proximidade dele.


Como o que restava essencialmente era a paisagem para ser observada, pude contemplar um grande número de araucárias, um pinheiro muito mais típico da região Sul do Brasil, em um bioma conhecido como Mata de (oh!) Araucárias. Não sou um botânico de renome, mas é uma árvore muito sui generis, alta e de copa pouco encorpada. Fazem um contraste bastante interessante com a tapeçaria verde mais intocada dos seus montes.


O morro onde fica este cruzeiro dá uma boa dimensão da presença destas árvores, além de denunciar o quanto são íngremes as terras desta freguesia. Subimos a pé para tirar umas boas fotos da redondeza. Incompetentemente, a máquina ficou esquecida no carro e não tive pernas para voltar a amassar todo o barro necessário.


Marmelópolis é cortada pelo rio Lourenço Velho, que serpenteia a serra com água extremamente gelada. É possível observar suas margens por todo o trecho urbano e por boa parte da grande zona rural.


Aliás, temos aqui uma rara ocorrência de município onde a população rural se equilibra com a citadina. Essa divisão proporciona a apreciação de coisas que não são mais tão fáceis de se encontrar, como o registro do transporte de cargas por muares (e a indefectível companhia de caninos), algo muito comum na história tropeira destas plagas. De fato, aqui cabe o jargão de que o tempo passa mais devagar.


Estávamos na semana em que se comemora o dia de Nossa Senhora Aparecida, escolhida pelos membros do clero como padroeira do Brasil. Há diversos municípios que a escolheram como protetora local também, exatamente o caso de Marmelópolis. Numa circunstância dessas, era óbvio que a matriz seria dedicada à santa em questão. A igreja nem é tão grande, mas estava bastante agitada com os preparativos para a festa que viria poucos dias depois. Sentamos um pouco na pracinha para observar o agito, e acabamos puxando papo com algumas mulheres que lá estavam trabalhando, com seus jeitos peculiares de falar e de narrar os fatos.


Não quis ficar perturbando muito, já basta o mister de cada uma, para ainda ter que dar atenção a visitante chato, o que elas fazem com maestria. Fui dar uma espiada por dentro da tal igreja, muito simples de fato, mas que tem uma característica digna de nota: um tabernáculo* escavado dentro de um tronco. Normalmente, este objeto fica encravado na parede ou embutido em um altar, o que dá uma ideia da originalidade de quem o bolou.


A fome apertou bastante, e fomos caçar comida, devidamente encontrada em um restaurante que fornecia aquelas coisas bem típicas de região, como carne de porco e muita coisa cozida na banha. A natureza é uma grande fanfarrona: as coisas mais saborosas são as que mais fazem mal. Mas havia também outra especialidade destas terras altas, muito frequente em São Francisco Xavier, no interior de São Paulo – as trutas.


O dono do estabelecimento é o Silvio, que é um sujeito paradigmático do homem do interior. Conversas longas sobre os tempos de menino, da partida para a cidade grande e do retorno à tranquilidade após as agruras e aposentadoria. Nesta casa, mais duas tipicidades que só encontrei aqui: a cachaça com marmelo...


... e o suco de marmelo, feito a partir de um purê processado da fruta, já que a mesma, in natura, é impossível de comer, dura, fibrosa, amargosa, apesar de seu parentesco com a maçã e a pera, bem mais amigáveis. Não era época, não tinha marmelo.


O nome da cidade é curioso e óbvio. O antigo distrito de Queimada, pertencente ao município de Delfim Moreira, começou a se especializar no cultivo do marmelo, planta oriunda da Ásia Menor, e que se adaptava muito bem às condições climáticas daquela área. Até a década de 80, o negócio da marmelada era bastante próspero na região, e a fruta virou uma espécie de mascote, como pode ser vista no Marmelus Club e em todo o comércio.


A pujança do negócio de marmelo levou fábricas grandes para o município. Na praça em frente à matriz, onde hoje permanecem um coreto e um quiosque de artesanato, estava situada a CICA, uma das maiores empresas de produtos alimentícios da época, conhecida em todo o Brasil e uma grande exportadora. O elefante Jotalhão, por exemplo, era utilizado em suas embalagens para fazer propaganda. Todo mundo acima dos trinta lembra da marca, que foi absorvida por outra gigante do ramo em meados da década de 90.


Mas os tempos não seriam generosos para todo o sempre. O marmeleiro é uma árvore enjoada, difícil de cuidar, e, com o país economicamente em frangalhos, os produtores rurais foram mudando as culturas que produziam. Por toda a cidade, encontramos fábricas abandonadas.


A diminuição da taxação de importações foi uma pá de cal nessa atividade econômica. Ficava muito mais barato para os grandes fabricantes importar as frutas diretamente da Ásia do que manter as plantações no Brasil.


Neste caso, perdia o sentido manter pequenas fábricas em rincões mais longínquos, não servidos de transporte eficiente. Ferrovia por aqui foi apenas um projeto. Hoje em dia, apenas há o testemunho de construções já deterioradas, quase inexistentes, como é o caso desta chaminé próxima ao rio.


Nos tempos atuais, a produção de marmelo na cidade somente permite a existência de uma última fábrica, bem acanhada, pertencente ao Moisés e sua família. Fomos até lá para ver como é feita a coisa, e se poderíamos conseguir alguns de seus produtos.


O doce é feito a partir de uma pasta bruta armazenada em latas, a mesma utilizada para fazer o suco que tomamos no almoço, que é cozida e mexida até pegar o ponto de corte, para depois ser moldada em seu formato próprio. Além disso, é produzida na cidade uma geleia que mistura marmelo com laranja.


Como nós, diabéticos, somos colocados em um plano meio que esquecido no mercado, não havia marmelada diet. E é um doce que eu simplesmente adoro. A solução foi conseguir uns três quilos de pasta bruta na fabriquinha. Corremos até uma loja no centrinho e compramos um pote com tampa, que preenchemos à plenitude com tal produto, para depois ser preparado com frutose, menos proibitiva à espécime de sangue doce.


Bom... Durante esta breve estada, constatei um fenômeno interessante. Eu confesso que sou altamente influenciável no quesito sotaque. Se eu conviver com alguém que puxe um “S” com som de “X”, lá vou eu puxar um “S” com som de “X”; se eu ficar uns dias no Paraná, já chamo todo mundo de piá, e leite queNte dá dor de deNte na geNte. Idem nos meus rolês pelo interior, como neste de agora. Mas, em geral, o efeito se sente ao cabo de alguns dias, especialmente quando confrontado ao retorno de minha paulistana realidade. Só que dessa vez, a coisa foi sentida logo.

Imediatamente após o almoço, quando ficamos mais de uma hora papeando com o precitado Silvio, fomos dar uma volta, para fazer o resto do quilo e procurar o tal pote para guardar a pasta de marmelo. Nos diálogos do caminho, a constatação da esposa: “Percebeu que a gente já tá falando igual mineiro?”. De pronto, lembrei da mocinha da padaria de Jesuânia, e sua enciclopédia de mineirês. Mas, no nosso caso, a coisa estava mais para a melodia entrecortada de desistências silábicas do que propriamente no linguajar, coisa de sotaque mesmo. Que coisa... Por que será que isso acontece? E por que cada vez mais rápido?

Vou me escorar na Psicologia Social do polonês Robert Zajonc para tentar entender. Mas, para isso, vou ter que passear por uma das principais correntes psicológicas de todos os tempos, o behaviorismo (ou comportamentalismo).

Grosso modo, os comportamentalistas não estão interessados no funcionamento mais profundo da mente, como fazem os adeptos da psicanálise, mas em quais são os aspectos práticos do que faz com que indivíduos se comportam de maneira X ou Y. Por exemplo, passo pelo corredor de bolachas de um determinado mercado. Meu comportamento padrão é passar batidos pelas doces, sendo eu gordo e diabético, e caçar alguma coisa inocente pelas salgadas. Todavia, algo pode modificá-lo: há novas bolachas diet, ou novos sabores, ou seus preços baixaram. Isso me estimula a comprar mais bolachas, mas o inverso também é verdadeiro. Um preço que sobe, uma marca que some, uma consciência de excesso de peso, tudo isso me reprime o ato da compra. O primeiro é um estímulo positivo; o segundo, negativo. Esses reforços são utilizados largamente em educação, até mesmo quando estamos em casa, tentando estimular nossos filhos a fazer a chatíssima lição de casa. Algumas vezes isso é feito de forma ética, elogiando as boas notas; em outras, tenta-se comprar o fedelho, oferecendo-se algum mimo pelo bom desempenho. De uma forma ou de outra, o objetivo é reforçar o comportamento, através de uma recompensa. Ou, ao contrário, desestimulá-lo, com a aplicação de castigos.

Pois bem. O comportamento, assim colocado, fica obviamente movido por estímulos, aos quais damos algum tipo de resposta. Mas isso nem sempre está tão na cara, como nos exemplos acima. A mente humana é capaz de perceber estímulos muito mais sutis, e, às vezes, involuntários. É aí que entra o objeto da pesquisa de Zajonc, chamado de mera exposição.

Nosso psicólogo queria pesquisar porque temos situações em que nos sentimos mais confortáveis do que em outras, sem que haja um motivo explícito para tanto. É claro que um forte estimulante, seja positivo ou negativo, vai produzir efeitos imediatos e evidentes. Eu, por exemplo, sinto-me incomodado em qualquer ambiente onde haja música (ou algo assim chamado) em volume que me impeça de conversar, a não ser que eu me proponha a ir a um show. Mas isso tudo está no campo da racionalidade. Acontece que há lugares extremamente agradáveis sem que percebamos logo de cara o porquê. Zajonc apostou em uma familiaridade inconsciente. E, a julgar pelo resultado de suas pesquisas, acertou.

Os experimentos de Zajonc eram extremamente simples. Em um deles, era exibida a um grupo de voluntários uma sequência rápida de imagens geométricas, de modo que não fosse possível fixar-se demoradamente sobre nenhuma delas. Ao final, eram exibidas em um quadro todas as imagens que fizeram parte da sequência, sem, no entanto, aparecerem repetidas. A pergunta era: Qual destas imagens lhe é mais agradável? A imensa maioria dos pesquisados apontava para as figuras que haviam sido repetidas mais vezes. Junto com outras investigações do mesmo tipo, Zajonc concluiu que a simples exposição de algum objeto com maior frequência, por si só, era capaz de produzir um efeito de familiaridade, sem que tal objeto tivesse algum destaque extraordinário sobre os demais. Em cima desta constatação, uma série de especulações passou a ser feita.

Algumas delas: a afetividade não é racional, muito pelo contrário. Passamos a gostar cada vez mais de um objeto qualquer à medida que aumenta nossa exposição a ele pelo fato de que esse acréscimo nos dá uma sensação de estabilidade. Sabe aquele minúsculo quadrinho no corredor, que foi repassado de sua avó para a sua mãe? Pois é. O dia em que ele for retirado da parede, seu subconsciente vai captar e te provocar uma sensação estranha, mesmo que você nem se desse conta da sua existência. É que o quadrinho, pela sua constância, é uma sensação estável, de que tudo está no seu lugar, algo que lhe indica a segurança de seu lar. E, atavicamente, temos um certo conservadorismo, porque essa é a vida que está dando certo. Afinal de contas, estamos vivos, não é mesmo? Sim, esse é o tipo de percepção que vem lá do fundinho. Novidades, nesse sentido, não são bem-vindas, até que o efeito da mera exposição opere mais uma vez e também elas se tornem estáveis. Isso pode ser visto em inúmeras espécies, que ficam tremendamente ariscas perante algo desconhecido.

Zajonc produz teses que se assemelham bastante ao voluntarismo de Arthur Schopenhauer (leiam mais aqui). Este último dizia que os pensadores se enganavam quando diziam ser o homem um ser racional. A primazia ficava pela vontade informe e eterna, insaciável e perturbadora, algo que atuava no nível irracional. Muito antes de pensar, o ser humano deseja, e isso lhe move. Para Zajonc, por sua vez, temos uma anterioridade dos afetos com relação ao raciocínio. Nosso cérebro precisa muitas vezes de respostas rápidas, e, para tanto, lança mão do que está mais prático. A própria heurística usa esse mesmo dispositivo (já falei aqui sobre este tema), mas o fato é que temos muito mais coisas ao nosso redor do que podemos processar racionalmente. Por isso, as coisas que nos reconfortam e acomodam são percebidas primeiramente neste nível, para somente depois serem ponderadas.

Para demonstrar bem as assertivas acima, basta que pensemos que qualquer coisa que percebamos sempre é acompanhada por um julgamento do âmbito afetivo. Olho para uma pessoa e sempre colo a ela um conceito de beleza ou feiura, simpatia ou arrogância, cara de bobo ou de malandro. Como estas percepções não são objetivas, e variam de pessoa para pessoa, são claramente movidas por nossos afetos. E não adianta: eu passo do lado de uma praça mal cuidada, lá vou eu ter a sensação de desagrado, automaticamente.

Essa moção do afeto em precedência à cognição explica porque a quantidade de vezes a que somos meramente expostos a uma coisa qualquer faz com que tenhamos essa tendência a uma conformidade gradualmente maior. E isso nos faz migrar da Psicologia Cognitiva, que estuda como apreendemos o mundo ao nosso redor, para a Psicologia Social, que tenta entender como a cabeça influencia nosso convívio com o outro. Quem usa muitíssimo bem essa característica é a publicidade. Esse é um dos motivos pelos quais as marcas se tornaram cada vez mais expostas e mais movidas pela imagem em si do que pela escolha racional (como eu já escrevi neste post). Só que isso não está adstrito aos limites ambientais, mas na própria relação interpessoal. Temos uma propensão natural em desenvolver amizades com pessoas que vemos com mais regularidade. Ora, direis, é óbvio, né? Se eu tenho mais contato com uma pessoa, eu terei mais facilidade de falar com ela, pelo próprio contato visual. Mas não é essa a questão. Se você estiver perdido e encontrar na rua duas pessoas, sendo uma que você nunca viu mais gordo, e outra que você vê todo dia, ainda que nunca tenha conversado com ela, terá uma inclinação a confiar mais na segunda. Você não sabe absolutamente nada sobre ela, além do fato de que a vê sempre. Independentemente de racionalizações, isso já é uma informação subconsciente: essa pessoa pertence ao seu universo, e você ainda subsiste no seu universo, mesmo com todos os seus problemas.

Não seria o efeito da mera exposição uma explicação para a facilidade com que mudo o meu modo de falar? Percebem como tendemos a aproximar nossas atitudes e gestuais dos membros de nossa família? Outro dia, estava assistindo o programa Linha de Passe, da ESPN, e, participando da mesa redonda estava o jornalista André Kfouri, filho de Juca Kfouri. Em um determinado momento, dei-me conta de que a semelhança das expressões faciais de ambos é ainda mais marcante do que as semelhanças físicas, coisa esperada entre pai e filho. Duvido que Juca tenha ensinado ao André “faça a cara assim e assim”. É algo que é absorvido pelo contato e pela habitualidade, irracionalmente, exatamente como preconiza a tese da mera exposição. Um ser gregário mimetiza aqueles que o rodeiam, especialmente quando se sente em posição confortável. Por isso, não seria estranho pensar que, à proporção que viajo para regiões com aspectos semelhantes, que me agradam bastante, que ocorrem em momentos de descontração e relaxamento, alguns dos efeitos psicológicos aqui descritos sejam disparados, e eu comece a engolir vogais, puxar erres, trocar “O” fechado por “U” e assim sucessivamente.

Tudo isso eu percebi em Marmelópolis. Caramba! Bons ventos a todos...

Recomendação de leitura:

Um livro bem antigo, normalmente encontrado somente em sebos ou em bibliotecas de universidades.

ZAJONC, Robert. Psicologia Social. São Paulo: Herder, 1969

* No Catolicismo, é uma caixa onde se guardam as hóstias já consagradas, ou, conforme sua doutrina, o pão já transubstanciado no corpo de Cristo. É possível saber se o tabernáculo (ou sacrário) está sendo usado ou não, através de uma luminária chamada de lâmpada do santíssimo. Se está acesa, tem hóstia. Na foto, está no canto alto do lado esquerdo. Normalmente fica mais próxima do próprio tabernáculo, mas acho que não há uma regra muito rígida para a sua colocação.

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